VIOLÊNCIA JUVENIL
Carlos Alberto Lungarzo (*)
Na edição 252 deste Observatório, no debate sobre maioridade penal, foram repetidas algumas opiniões recorrentes que o público assimila da grande mídia.
É possível perceber três assuntos básicos sobre os quais se está fabricando a atual desinformação: a proporção de menores na autoria de homicídios, a comparação das leis brasileiras com as de países “avançados” e a viabilidade da pena de morte.
Proporção de jovens assassinos
As estatísticas da Interpol <http://www.interpol.int/Public/Statistics> são colhidas em países que usam diferentes metodologias e incluem algumas variáveis não-explícitas. Não obstante, a discrepância entre as proporções, nos exemplos que seguem, é maior do que qualquer erro de amostragem.
Vejamos os exemplos mais recorrentes:
** Na Inglaterra e País de Gales houve, em 1998, um total de 1.428 homicídios dolosos, dos quais 92% foram elucidados. Dos 607 autores, 9,10% eram mulheres adultas e 5,10% menores em geral.
** Nesse mesmo ano, no Brasil houve 34.205 assassinatos, desconhecendo-se o número de casos resolvidos. De 23.487 autores, 3,21% eram mulheres e 1,02% menores.
** Vejamos o caso dos Estados Unidos. Para tomar o exemplo que menos favorece meu argumento, vou considerar o ano de 2001, em plena era Bush, quando o espírito repressivo americano alcançou seu maior ponto desde 1957. Nesse ano houve 15.980 homicídios dolosos, dos quais 62,40% foram resolvidos. Os autores foram, no total, 13.653, dos quais as mulheres eram 12,50% e os menores, 10,20%.
Admitindo, então, que a taxa de encobrimento (desconhecida para o Brasil) seja irrelevante, temos que a proporção de menores homicidas no Brasil é, no mesmo ano, cinco vezes menor do que a da Inglaterra, e 10 vezes menor, três anos depois, do que a dos Estados Unidos, apesar de ambos os países permitirem a convicção criminal de crianças.
A minoridade penal
Outro aspecto que fascina a grande mídia é o fato de que nos países “avançados” (eles querem dizer “industrializados”) existiriam leis que permitem mandar as crianças à cadeia. Do que pude acompanhar, SBT, Band e Record veiculam tais notícias como se fossem verdadeiras. Já a Rede TV! se limita a entrevistar pessoas que afirmam este tipo de coisas, mas seus programas de notícias não aderem a este ponto vista. A Rede Globo, científica como sempre, mostra as duas faces. Relata o estrago que a prisão faz nos jovens, mas também menciona a rigidez penal de Estados Unidos e Inglaterra. “Esquece”, porém, até onde eu pude perceber, o que acontece em outros países industrializados.
Qualquer que seja o motivo, isto é verdade apenas nos Estados Unidos, na Inglaterra e no Canadá (neste último, só para adolescentes, não para crianças).
Um ponto importante é que a mídia comete um erro, involuntário ou não, entre o que se considera na Europa “responsabilidade penal” e a possibilidade de ser julgado.
Ser considerado “penalmente responsável” significa que o crime não pode ser ignorado ou atribuído aos pais do autor, e que é necessária alguma ação que condicione a conduta do infrator. Não significa, porém, que ele deva enfrentar um tribunal. De fato, a ação pública contra menores existe no Brasil a partir dos 12 anos, e de maneira menos humana e racional do que na União Européia.
As idades mínimas que se apresentam na grande mídia não são aquelas em que o menor pode ser preso. São os limites, por baixo das quais o autor é totalmente não-imputável, ficando as decisões por conta absoluta dos pais.
Vamos ver as diferenças entre vários países, a partir de um relatório do Youth Justice Board <http://www.youth-justice-board.gov.uk/NR/rdonlyres/8AD3FF20-1534-4F93-A9D3-B1B40F3FBBA2/0/YJB_ER_March_2001.pdf>, do Reino Unido.
** Na Bélgica, um jovem é responsável por crime desde os 16 anos, mas a ação assumida pelo Estado consiste em outorgar-lhe proteção: tratamento psicológico e educativo, ludoterapia, socialização etc. Antes dos 16 anos, o adolescente é totalmente não-imputável (no Brasil o é só antes dos 12) e o Estado assume apenas medidas preventivas, se couber.
** A Espanha tem sistema semelhante, mas considera que o menor deve ser tratado desde os 12 anos. A não-imputabilidade total é antes dessa idade.
** Na Alemanha, os jovens são parcialmente imputáveis desde os 14, mas só podem receber tratamento educativo e terapêutico. Aos 18 podem ser julgados pela chamada “lei juvenil”, administrada por um tribunal especializado em jovens, cujos critérios são totalmente diferentes. Só é 100% imputável e pode ser colocado num tribunal penal quem tiver 21 anos ou mais.
** Na Suíça, se um menor de 7 anos ou mais comete um crime, ele não é ignorado. É submetido a tratamento familiar com supervisão do Estado. Mas não pode ser colocado numa casa de custódia, tipo Febem, até os 15 anos. Observe que a lei é bem menos cruel do que no Brasil, onde, pelo artigo 101 da ECA, o adolescente infrator pode ser internado em abrigo (item VII).
Sem pensar na ironia que significa chamar “abrigo” à Febem paulista, deve notar-se que na União Européia a custódia do menor infrator é considerada medida extrema. Um exaustivo estudo sobre estes casos e remissão a fontes mais detalhadas se encontra, por exemplo, em Walgrave, L. (1998), Restorative Justice for Juveniles: Potentialities, Risks and Problems for Research, Leuven: Leuven University Press. (2? ed., 2002).
Mesmo nos países que responsabilizam o adolescente muito cedo a ação é de tipo tutelar, e não significa reservar-lhe uma creche em Presidente Bernardes, como sugere o criativo governador Alckmin. Para que os gostam de imitar outros países, talvez isto sirva de estímulo: o único exemplo na América do Sul com limite de 16 anos é a Bolívia <http://www.iin.oea.org/Edad%20de%20responsabilidad%20penal_ingles.pdf>.
** Finalmente, cabe mencionar o exemplo do Japão, que é difícil de comparar à tradição ocidental. Por um lado, o Japão admite a pena de morte, o que o coloca junto aos Estados Unidos entre os que praticam formas bárbaras de punição. Não obstante, cabe reconhecer que seu uso da execução é bastante raro e, nos últimos tempos, só foi aplicada a crimes massivos, como no caso do terrorista que atacou o metrô de Tóquio com gás Sarin.
Mas, por outro lado, o Japão não responsabiliza penalmente adolescentes. Um jovem pode ser julgado por um tribunal normal só depois de ter completado os 21 anos. Talvez este paradoxo seja o resultado de uma combinação das violentas tradições imperiais, que teriam mantido a pena de morte, com a entrada de idéias humanitárias européias depois da Segunda Guerra.
A pena de morte
Na Europa Ocidental, a pena capital está extinta e há um forte movimento para que a ONU adote uma declaração universal contra ela. Os esforços para incluir a abolição na agenda da ONU têm esbarrado na oposição de governos que dificilmente poderiam ser considerados “avançados”, como a Nigéria, mas contam com a simpatia parcial até de sociedades tradicionalmente autoritárias.
Qualquer leitor da Bíblia sabe que Israel tem uma rica tradição de vingança social, que os países cristãos herdaram e só arrefece parcialmente depois de 1950. A pena de morte foi estabelecida logo depois da fundação do Estado de Israel, incorporada à lei penal de 1977 e mantida pela emenda de 2000. Entretanto, ela foi aplicada só uma vez, em 1962, ao autor de genocídio Adolf Eichman.
Ainda, na lei de 1977 a pena de morte só é contemplada para o caso de crimes contra a segurança nacional: terrorismo, traição, sedição etc. Na comunidade judia mundial (em geral, não estou necessariamente incluindo a brasileira) há um forte movimento contra a pena de morte, os tratos cruéis, a discriminação racial e religiosa e contra a homofobia. Um de seus mais conhecidos representantes é o rabino Daniel Polish. Ver em <http://www.isrinfo.demon.co.uk/index.htm>.
A Convenção Européia, em seu protocolo 13 sobre a defesa dos direitos humanos, propõe que a pena de morte seja abolida em todos os casos, inclusive o de guerra, o que não está contemplado na Constituição brasileira.
Em resumo: dos países “avançados”, o único que pode levar crianças ao cadafalso são os Estados Unidos.
Rescaldos do nazismo
Nos governos teocráticos e absolutistas anteriores à Revolução Francesa, o crime não era um ato contra a sociedade, mas contra a divindade ou o poder real. Daí que delitos como a blasfêmia ou a falsificação tivessem penas atrozes. Entre os séculos 18 e 20, por influência dos movimentos democráticos e socialistas, a situação mudou na Europa Ocidental. O nazismo, em convergência com outros fenômenos, projetou a volta ao sistema da vingança social, transferindo o caráter sagrado perdido pelas monarquias decadentes à massa marginalizada e ávida de truculências.
O nazismo foi derrotado militarmente, mas seus princípios, vinculados com os componentes psicológicos hediondos que todos temos (em diversa medida, é claro) foram mantidos vivos em outras formas. O crime não é julgado pelo dano humanitário e social, mas pela imagem que a vítima e o criminoso têm. Essas variáveis serão as que a grande mídia usará para decidir qual é a forma de explorar o fato.
Há um exemplo que é o inverso do recente crime contra os jovens paulistas. Em 16/8/1996, o filho do ministro Klein, aparentemente sob efeitos do álcool e com o pai na carona, atropelou um bóia-fria que caminhava pelo acostamento. Imediatamente, a classe política de Brasília, incluindo o então presidente, se solidarizou com o homicida, dando seus pêsames ao pai pelo constrangimento do filho, e se indignando pela insolência da família que queria uma indenização, que o ministro barganhou duramente.
Guerra e golpe
Se a situação tivesse sido a inversa, o conselheiro espiritual da família Klein teria pedido a pena de morte.
Formalmente, o Brasil advoga o direito humanitário desde 1988, o que, mesmo que não seja implementado na prática, é um progresso enorme. Neste momento, o país se aproxima mais daquelas propostas, e o governo parece bem-intencionado. Entretanto, o presidente e os ministros demonstram pânico aos acintes de figuras públicas, sejam mediáticas, religiosas ou políticas, transformando um caso de polícia em problema nacional. Isso só pode enfraquecer mais nossa simbólica democracia. Aliás, mostra nossa condição subdesenvolvida, e nosso precário sentido de poder público. De fato, esta subserviência nos aproxima do ridículo, justificando o preconceito de pessoas ou governos que acham que somos um enclave pós-feudal onde a lei é decidida por coronéis e banqueiros.
Se o governo Bush, do qual os integrantes deste movimento pela pena de morte devem ser fãs, atendesse pessoalmente às vítimas de crimes aberrantes nos Estados Unidos não teria tempo para outra coisa.
Aliás, mesmo considerando a exacerbação emocional, não pode se descartar que a desestabilização do governo seja tão alheia a toda esta cenografia. Lembre-se, apenas, que um assassinato justificou a Primeira Guerra Mundial, em 1914, e outro, o golpe fascista na Espanha em 1936.
(*) Integrante da Rede de Ação Urgente de Anistia Internacional, professor titular aposentado da Unicamp