LAÇOS DE FAMÍLIA
Laços de família deveria se chamar a “classe média vai ao paraíso”. Embora “moderna”, a novela trata o trabalho de acordo com o século 19, ou mais remoto ainda. Ninguém bate ponto. Ninguém se queixa de salário, horas extras etc. Todos os patrões são bondosos e compreensíveis, todas as relações trabalhistas são feitas diretamente com o dono, e o maior estabelecimento é um haras, único local onde o dono é distante, mas não muito. Não há grandes empresas. Tudo é pequeno-burguês.
Trabalhar, mesmo, só as domésticas, negras. Estas estão na casa dos patrões 24 horas de prontidão para fazer os quitutes preferidos da sinhazinha e dar prazer ao senhor. Não têm problemas pessoais, vida própria, estão sempre comovidas com os problemas e sofrimentos dos patrões, consolando-os. Como nos tempos bíblicos de Abrãao, uma senhora estéril dá sua serva ao marido e os filhos desta união pertencem a ela. Na Bíblia, Ismael, fruto de tal união, ainda funda um novo povo: os ismaelitas (árabes). Na novela os bebês são branqueados pela adoção. Afinal, a negra não tinha “laços de família” para amparar seus filhos. Na senzala, a família de um escravo é a do patrão.
No haras o capataz xinga, humilha, ofende os empregados, assedia sexualmente a veterinária e ninguém se queixa. Ao contrário, ele é amado e respeitado pelos subalternos. Trata-se, afinal, de “gente humilde” que necessita de mão firme, senão não fará nada direito. Quanto à veterinária, bem, como macho ele bem sabe o que ela está querendo…
Na livraria o pai é o patrão, na clínica, a mãe. Tudo se resolve em família: salário, jornada de trabalho. A única pessoa insatisfeita com o trabalho e que reclama é castigada por ser chata: perde o marido para uma prostituta. Cometeu o crime de querer progredir trabalhando e não se conformar com o salário baixo (a única que ganha pouco na novela). Mas ao final aprende a lição: arranja um homem rico para pagar seus luxos, numa prostituição light. Viaja para a Europa e não trabalha. Liberta dos horrores de assalariada.
Já Capitu, também ambiciosa, não se degrada trabalhando. Afinal, é branca e de classe média. Trabalhar de doméstica, por exemplo, fica abaixo de sua dignidade. Como os excelentes salários pagos pela Helena não estavam disponíveis, em vez de trabalhar por pouco e se queixar (ou revoltar) ela segue o honesto caminho da prostituição. Mas, sendo branca e de classe média, ela mantém a dignidade de uma “garota de programa”. E se prostitui para libertar o pai dos horrores e da vergonha do trabalho de tradutor. Este, apesar de ganhar uma “miséria”, mora no mesmo edifício em que metade do elenco também reside. E ele nem pede aumento nem reclama da aposentadoria! Não pega bem.
Enfim, o drama não é a leucemia. Mas a classe média precisa manter as aparências, e não pode se rebaixar ao nível da “gentalha” no mundo neoliberal. Ganha pouco, é oprimida, mas protestar é atestado de pobreza, coisa feia, de “terceiro mundo”. Tornar públicas as dificuldades é sinônimo de fracasso. O caminho mostrado é, então, o da prostituição. E a novela fez sucesso.
DOIS TOQUES
1.Importadas irrelevantes
No dia 11/2/2001, o website do jornal online Último Segundo <www.ultimosegundo.com.br> divulgou diversas notícias sobre o All-Star Weekend, um evento esportivo americano que mereceu destaque de 8 das 11 notícias levadas ao ar entre 0h6min e 2h19min. Quase um mês antes, em 14 de janeiro, o Estadão informou que a secretária de Bill Clinton, Betty Currie, adotaria o gato Socks porque o felino não se relacionava bem com o cachorro Buddy, que iria com o ex-presidente quando este deixasse a Casa Branca.
Estas matérias descartáveis, esquecidas quando o leitor desvia a atenção, são importantes para o “observador” mais atento porque mostram inequivocamente a submissão cultural e a baixa qualidade de um jornalismo que se satisfaz com a irrelevância importada, como se a intenção fosse apenas preencher um espaço vazio com um punhado de letras aleatórias.
2.Informação incompleta
No Porto de Santos, um grupo de alunos de uma universidade particular fez um protesto por causa do boicote canadense à carne brasileira. A televisão não disse de que universidade eram os estudantes mas, curiosamente, quando alunos de universidades públicas fazem algum tipo de manifestação o nome da universidade costuma ser citado. Fato semelhante ocorre quando um entrevistado pertence a uma instituição pública ou a uma empresa privada. A empresa privada costuma ser identificada, na TV, apenas parcialmente, e o entrevistado torna-se o “diretor de um banco estrangeiro”, “um consultor do mercado” ou algo parecido.
Acontece, porém, que é relevante saber se “o dono de supermercado” é dono do Pão de Açúcar ou do mercadinho da esquina, e se o “diretor da maior empresa de software do mundo” é mesmo da Microsoft, ou se a Oracle ultrapassou a concorrente em termos de valor de mercado.
O jornalismo televisivo não deveria ser subordinado ao departamento de venda de espaços publicitários.
Hélio Pimentel, analista de sistemas, Santos, SP
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