Tuesday, 19 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Claudia Croitor

QUALIDADE NA TV

ASPAS

"Ratinho exibe vídeo em que presidiários dizem o que fariam com bandido que torturou garoto de três anos", copyright Folha de S. Paulo, 29/10/00

"Na última segunda-feira, quem estava ligado no SBT por volta das 22h deparou-se com cenas das mais chocantes. Um homem (Marcelo Borelli, já preso pela polícia) torturava uma garotinha de três anos. No canto esquerdo da tela, havia um logotipo: ‘Programa do Ratinho – Exclusivo’. As cenas duraram cerca de 40 segundos e foram exibidas pelo apresentador Carlos Massa, o Ratinho, que dizia: ‘Vou colocá-las no ar porque fiquei indignado. É para que nossos parlamentares comecem a pegar mais pesado com os criminosos’. Depois da exibição das cenas, ele discursou: ‘Eu quero pedir que, pelo amor de Deus, ninguém mais fale em diminuição de pena’.

No dia seguinte à exibição, o juiz da Vara da Infância e Juventude de Osasco, Renato Genzani Filho, expediu um mandado de busca e apreensão da fita, e Ratinho ficou proibido de mostrá-la no ar novamente. No entanto, seu programa, que marcava 21 pontos no Ibope no momento da exibição da fita, continuou a tratar do assunto nos dias seguintes. Na terça-feira, mostrou entrevista com o advogado de Borelli e exibiu cenas de presos assistindo à gravação da tortura, chegando a 32 pontos. Na quarta, entrevistou a avó da garotinha.

Ratinho recebeu a Folha em sua casa, em São Paulo, na terça-feira, depois de deixar os estúdios do SBT às pressas, para despistar oficiais de Justiça que queriam lhe entregar o mandado de busca e apreensão da fita. Mais calmo, ele negou que a exibição tenha sido uma forma velada de apoio ao candidato pelo PPB à Prefeitura de São Paulo, Paulo Maluf, que combate um projeto apresentado pela candidata do PT, Marta Suplicy, quando era deputada federal. O projeto propõe a diminuição da pena dos presos que estudam. Leia trechos da entrevista.

***

Há dois meses, em uma entrevista à Folha, você disse que tinha mudado de perfil, que estava em uma fase menos apelativa. Por que, então, a exibição dessa fita com a tortura da garota?

É uma necessidade. Há quanto tempo não mostro isso no programa? Nem mostrei a empregada que matou uma mocinha hoje (terça). O programa não mostra crimes comuns, não é o nosso objetivo.Tenho uma campanha: crimes hediondos não podem ficar impunes.

Qual foi o seu objetivo ao colocar trechos da fita no ar?

O objetivo era chocar, chamar a atenção para a violência. Antes, eu inclusive era a favor da pena de morte. Hoje, já não sou mais, acho que a Justiça e a polícia têm muitos erros, então fiquei com medo de manter em um programa popular uma posição assim. Mas eu sou a favor de aumentar a pena para quem comete crimes como tortura. Sou contra a tortura mesmo em bandidos.

Mas no seu programa, durante a exibição do vídeo que mostrava os presos assistindo às cenas e sugerindo maneiras de torturar e matar Marcelo Borelli, os seus ajudantes de palco incitavam a platéia a aplaudir.

Foi um erro deles, não deviam ter feito isso. Eu não prestei atenção, estava concentrado em falar. Achei que era uma reação espontânea do público.

Qual foi a intenção de mostrar aqueles presos assistindo à fita?

Para mostrar que, se o Borelli for colocado junto a outros bandidos, eles vão matá-lo. E o Estado é responsável pela vida dele. Como eu sei que hoje todos os envolvidos no caso estavam assistindo, eles vão tomar cuidado. A intenção de exibir tudo isso foi alertar para o grau de insegurança e mostrar que, para crimes hediondos, nós temos que aumentar as penas, não diminuí-las. Mas aí já começam a me vincular ao Maluf. Eu não tenho nada a ver com isso. Se eu quisesse apoiá-lo, teria todo o direito de ir ao programa eleitoral dele. Não tenho por que ficar escondendo.

Você não vota em São Paulo, mas, se votasse, votaria em Maluf?

Não, não votaria em nenhum dos candidatos, votaria nulo. Não concordo com nenhum. Só que acho que se deve aumentar a pena para crimes hediondos, não diminuir. Aí já acham que eu sou contra a Marta, mas o projeto de diminuir pena não é dela. Seu projeto é fazer preso estudar, e aí ter a pena diminuída.

Então você é a favor desse projeto?

Claro. O preso tem que estudar. Ótimo. Talvez se instruindo ele possa sair de lá com a cabeça diferenciada. Agora, não tenho nada a ver com política, nem com o Maluf. Nem sei por que ele fala tanto de violência, se isso é assunto do Estado.

O único jeito de alertar a população sobre a violência é mostrando uma cena como a da tortura de uma criança?

Já foram feitas tantas campanhas a favor da paz, e não deu em nada. Pedem paz para quem já faz paz, é imbecilidade.

Mostrar a tortura contribui para a paz?

Para combater o crime tem de punir os criminosos. Vou dar um exemplo: o Guilherme de Pádua e sua ex-mulher, que mataram aquela atriz, já estão soltos.

Na sua opinião, se alguém tivesse filmado a hora em que a atriz estivesse sendo assassinada e exibisse a fita na TV, hoje eles ainda estariam presos?

Claro que não, quem determina isso é a lei. Mas se tivéssemos mostrado a cena e tentado mudar a lei, hoje um cara que fosse torturar alguém pensaria duas vezes. Discutiu-se em toda a imprensa o fato de eu ter mostrado a fita. É absurdo, tem que discutir a violência. Meu objetivo era mesmo chocar, eu avisei: ‘Não assistam, é chocante’. E as pessoas mudaram de canal, meu ibope ficou prejudicado, mas eu coloquei uma bomba no ar a ser pensada: esses bandidos têm recuperação? Vale a pena pô-los na rua?

Você chegou a dizer que colocou a fita no ar para dar um ‘furo’ de reportagem. Então o objetivo também foi esse?

Claro, claro. Mas o princípio foi o mesmo que norteou a exibição da cena do garoto palestino morto por israelenses: chamar a atenção. Ninguém discutiu o fato de essa imagem ter ido ao ar porque ela foi exibida pela CNN, e a da tortura da menina foi mostrada pelo Ratinho. Há uma perseguição pesada contra mim.

Qual é o seu limite?

Eu tenho meus limites, claro. Se eu quisesse realmente chocar, eu colocaria o resto das cenas da tortura. Poria no começo do programa e falaria: ‘Daqui a pouco volto com mais cenas’. Daí sim eu estaria usando a cena para ganhar audiência. Mas segunda eu já tinha decidido que ela não iria mais ao ar.

Mas hoje (terça) você ameaçou mostrar a fita novamente…

Se não prenderem as outras pessoas envolvidas na tortura, eu vou mostrar de novo; a menos que proíbam.

Então, qual é o seu limite?

Eu não sei o meu limite. Não dá para falar em limite. Eu mostro a cena que for, se tiver um objetivo, uma razão.

Você acha que essa fita trará resultados contra a violência ou daqui a alguns meses ninguém mais se lembrará dela?

Daqui a uma semana ninguém mais se lembrará disso. Mas acho que, se mostrarmos sempre cenas assim, isso vai acumulando e crescendo, até que alguma hora alguém toma uma providência.

Se você recebesse uma outra fita na qual estivesse gravado um crime hediondo sendo praticado, você colocaria no ar?

Pode ter certeza. Aviso antes, mas mostro. Tortura, sequestro, assassinato, estupro. Meto no ar, sem dúvida. Se a Justiça der mole para esses crimes, mostro outra coisa para chocar, não para dar audiência. Não sou tão apelativo como dizem."

"Diálogos", copyright Folha de S. Paulo, 29/10/00

"Entre uma porretada e um palavrão, Ratinho delicia-se em propagar que é homem aberto à conversa. De fato. Na última semana, antes e depois de apresentar as cenas bestiais de uma criança torturada por um sádico, o roedor dialogou muito. Como um Platão tropical, dedicou-se freneticamente à arte de tecer idéias e aperfeiçoar o mundo. Pluralista, abriu-se para interlocutores das mais diversas cepas: padres cantantes, prefeituráveis, deputados, dinossauros da TV, astros de Hollywood e espécimes da imprensa. Com uns, preferiu falar olho no olho. Com outros, travou contatos indiretos. Justificou, assim, cada centavo dos R$ 2 milhões que diz embolsar todos os meses.

Acompanhe agora, e em ordem cronológica, o desenrolar de reflexões tão assombrosas. Uma amostra visceral dos diálogos de Ratinho.

Segunda-feira à noite, perto das 21h30, o circo do camundongo corria solto quando, num dos intervalos comerciais, um locutor do SBT perguntou, em off: ‘Se sua filha fosse violentamente estuprada, seria certo você fazer justiça com as próprias mãos?’. Um letreiro graúdo, que ocupava quase a metade da tela, reproduzia a mesma questão. Sobrepunha-se às imagens de um rapaz pegando fogo e de outro levando uma chuva de tiros. Era o anúncio de um longa-metragem americano, protagonizado por Samuel L. Jackson, que a emissora prometia veicular na terça-feira. Nome do filme: ‘Tempo de Matar’. Enredo: a discussão da pena de morte.

O programa de Ratinho recomeçou mal o anúncio terminou. Ao vivo, o apresentador chamou o padre Marcelo Rossi, que entrou no palco sob o pretexto de divulgar um CD e acabou recitando a ‘Oração de São Francisco’ -aquela que pede: ‘Senhor, fazei-me instrumento de vossa paz’. O sacerdote encerrou a prece com uma exortação: ‘Que o Brasil escute. Chega de violência!’. Mãos juntas, semblante grave, reiterou: ‘Chega, né, Ratinho?’.

O bigodudo assentiu: ‘Chega, chega’. E emendou: ‘Padre, tem uma violência ainda maior, que é a violência do aborto’. Num piscar, o assunto ganhou o centro das atenções. ‘Muita gente defende esse negócio’, lamentou o animador. ‘Se Deus o livre e guarde o aborto for liberado, a quantidade de assassinatos que vai acontecer será brincadeira. Proibido, já está esse absurdo, imagine se liberarem.’ O padre nem pensou em discordar. Antes de partir, puxou um pai-nosso.

Passaram-se poucos minutos, e Ratinho sacou do colete as cenas de tortura, em que uma menina de três anos sofre agressões brutais do suposto líder de uma quadrilha paranaense, hoje preso. Depois de mostrá-las, avisou: ‘São as imagens mais violentas já transmitidas pela televisão brasileira. Amanhã, vou trazer a matéria inteira para vocês, parlamentares, não falarem em diminuir pena de criminosos’. Apoplético, encerrou o circo.

Terça-feira à tarde, a jornalista Sônia Abrão -que comanda um programa diário na Rede TV!- reavivou o picadeiro. Promoveu um longo debate sobre as cenas. Telefonou, no ar, para Raul Gil, da Record: ‘O que você gostaria que ocorresse com o torturador? Ele está na cadeia, mas ninguém garante que vai permanecer por lá. Nossas leis são frouxas’.

Rindo, Raul respondeu: ‘Deviam exibir o vídeo para os outros presos’. Explicou melhor: ‘Se os parceiros de cela pegassem o sujeito, botassem numa banheira, dessem choque de 220, se subissem nas costas dele… Compreendeu? O ditado ensina que bandido mata bandido -como no faroeste. Os bandidos concebem seus próprios direitos humanos’.

O deputado estadual Afanasio Jazadji (PFL), presente no estúdio, considerou oportuna a sugestão e arrematou: ‘Nessas ocasiões, Sônia, a gente até entende alguns policiais, quando se exasperam, perdem a cabeça e quebram a cara de um vagabundo’.

A jornalista, alvoroçada, também se permitiu umas opiniões: ‘Tínhamos de mandar o vídeo para esses políticos light, que são humanos demais com quem não merece’. Concluiu o programa solicitando uma oração ‘pela garotinha barbaramente torturada’. Desta vez, o padre Antônio Maria, confessor de Roberto Carlos, se encarregou do serviço. Puxou uma prece a Nossa Senhora.

Na noite da mesma terça-feira, a propaganda eleitoral de Paulo Maluf -candidato à prefeitura paulistana- cuidou de agitar ruidosamente as bandeiras já tão hasteadas. Deus nos livre do aborto. Nada de moleza com a bandidagem.

O circo de Ratinho reergueu a lona logo em seguida. O roedor não mostrou novas imagens da tortura, como anunciara. Só que exibiu as anteriores em uma cadeia pública. Quis saber dos presos que destino reservariam ao torturador. E os presos disseram: ‘Arrancava unha por unha do safado e depois degolava. Jogava futebol com a cabeça. Furava o arrombado. Tirava o coração e fazia o sangue dele de sarapatel, pra nós comer aqui no pátio, misturado à farofa’."

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