Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Clicar e refletir

AINDA ROBERT CAPA

Alberto Dines

A guerra no Iraque aparentemente está encerrada, as imagens bélicas saíram das primeiras páginas ? negociações não são fotogênicas e estátuas derrubadas são sempre iguais ? mas, graças ao acaso, a questão da fotografia de guerra pode ser encarada aqui neste Observatório sem os constrangimentos e preconceitos ideológicos que acompanharam a cobertura conflito.

Tudo começou com o fotógrafo Brian Walski, do Los Angeles Times, que resolveu dramatizar suas fotos juntando dois fotogramas num terceiro, o que lhe valeu uma primeira página no seu jornal e, em seguida, quando descoberta a montagem, a demissão pública em uma Nota do Editor [veja remissão abaixo].

A publicação da biografia de Robert Capa (1913-1954) trouxe de volta a figura romântica do correspondente de guerra, quase sempre fardado, e a história da mais famosa foto da Guerra Civil na Espanha, logo denunciada como “cascata” que o próprio Capa jamais conseguiu esclarecer [remissão abaixo para nota sobre Robert Capa].

Agora Fernando Zamith traz o testemunho do veterano Phillip Knightley que confirmou no seu clássico A Primeira Vítima a montagem (ou a legendagem errônea) efetuada pelo charmoso Capa [clique em PRÓXIMO TEXTO, no pé desta página, para ler a nota de Zamith].

O debate será novamente aquecido com um novo livro, não menos importante, assinado pela mais importante filósofa da fotografia, a americana Susan Sontag. (Farrar, Straus and Giroux, 131 pp., US$ 20,00) foi lançado pouco antes de começada a guerra do Iraque e acaba de merecer uma daquelas aliciantes resenhas do The New York Review of Books (1?/5/2003, pág. 8; <www.nybooks.com>).

Há 26 anos, Sontag agitou os meios intelectuais americanos e europeus com o seu On Photography, no qual, entre outras coisas da maior importância, afirmou que a câmera derruba as fronteiras morais e liberta o fotógrafo de qualquer responsabilidade no tocante aos fotografados.

Após longa temporada que passou em Sarajevo e depois do corajoso artigo no New Yorker pós-11 de setembro, Sontag nos oferece algumas reflexões sobre os usos políticos da fotografia de guerra e das imagens do horror. O seu livro não versa apenas sobre fotografias (embora contenha só texto, sem qualquer ilustração), mas sobre a dor flagrada pelas lentes:


“(…) Fotografias estabelecem referências e funcionam como totens de causas: sentimentos podem mais facilmente cristalizar-se em torno de uma foto do que em torno de um slogan verbal. E fotografias ajudam a construir ? e revisar ? o passado distante com o choque póstumo criado pela divulgação de imagens até agora desconhecidas.

Fotografias que todos reconhecem são agora a parte constitutiva das idéias que uma sociedade escolhe para avaliar (…). Essas idéias são chamadas ?memórias? e, a longo prazo, são ficções.

Em termos estritos não existe o que se convencionou chamar de memória ?coletiva? como não existe a espúria noção de culpa coletiva. Mas existe a instrução coletiva.

Toda memória é individual, não reproduzível ? ela morre com cada pessoa. O que é chamado de memória coletiva não é uma rememoração mas uma estipulação: isto é o que importa, isto é a história do que aconteceu, estas são as imagens que vão gravar a história em nossas mentes.

As ideologias criam substanciosos arquivos de imagens, imagens representativas, que encapsulam significados comuns e acionam idéias e sentimentos previsíveis (…).”


Para Sontag, a imagem fotográfica é mais importante do que a imagem de uma seqüência cinemática porque a memória congela o fotograma, faz dele o momento máximo, o ícone. Por que fotos são rememoráveis, diferentemente de seqüências de TV ou cinema; são mais críveis e tornam-se evidências do que aconteceu.

Aqui ela cita o caso da histórica foto de Capa, que considera “encenada” (staged) assim como outras fotos clássicas de guerra o foram por expediente ou propaganda. “Todos são literais quando olham uma fotografia”, diz ela, o que nos leva a refletir sobre a legendagem produzida nos jornais brasileiros durante o conflito, onde a literalidade da imagem foi substituída por ilações, ilusões ou imperícia dos redatores.

Embora seja uma das figuras americanas mais respeitadas na Europa, Sontag parece indignar-se com algumas celebridades intelectuais franceses que declararam o “fim da realidade” e, em seu lugar, consagraram o espetáculo. Para ela, isso é perverso porque sugere que não existe sofrimento no mundo.

Sontag talvez seja uma desajeitada fotógrafa mas é uma militante engajada na lembrança da dor, da crueldade e da morte. O mundo de hoje, visual e imagético, talvez necessite mais de moralistas como ela do que de clicadores de botões ou montadores de imagens.

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