JORNALISMO ÉTICO
Luciano Martins Costa (*)
O caso do jornalista Jayson Blair, que se tornou repentinamente célebre aos 27 anos ao ser declarado publicamente mentiroso e desonesto, representa um dos piores momentos da imprensa ? na medida em que afeta um de seus mais reluzentes ícones, o jornal The New York Times. Não por ele, Blair, mas pelo que o indigitado rapaz representa como modelo comum na imprensa: há muito mais Jaysons, pelas redações afora, reinventando a história e plagiando histórias já contadas, do que imagina nossa cínica filosofia. Nunca fomos, como categoria, completamente isentos desse risco, dada a absoluta impossibilidade de catalogar o conhecimento e colar em cada informação um selo de origem. Mas o advento da internet ampliou esse risco até os limites do mundo, sem que a maioria das empresas de comunicação tenha criado defesas para si e seus leitores ou suas audiências.
A crise, com a conseqüente redução de oportunidades, e um jornalismo “impressionista” que prioriza as cores fortes antes do conteúdo, têm reforçado essa tendência. A ênfase excessiva no ensino das técnicas, em detrimento da capacitação para análises e reflexões mais profundas, tendência geral nas escolas de comunicação, reduz as esperanças de uma melhora a partir das fontes de novos profissionais. Portanto, atenção ao debate provocado pelo futuro pró-reitor da Escola de Pós-Graduação em Jornalismo da Universidade de Columbia, Nicholas Lemann, para quem o jornalista precisa sair da escola com uma formação sólida que lhe permita refletir sobre a natureza das guerras, em vez de simplesmente relatar os fatos das batalhas. Enfim, ver a vida menos em temos de eventos e ser mais capaz de contextualizar e dar significados à notícia.
Estive refletindo sobre isso e trocando idéias com colegas por ocasião de uma consulta ao jornalista Fábio Pahim Jr., a quem havia solicitado ajuda para entender o momento político e econômico por que passa o Brasil. Seu nome surgiu em função de seu estilo ponderado, algo que vínhamos buscando para além das frases de efeito com que se consolidam reputações nessa área. Alguém no grupo havia feito uma observação sobre o perfil discreto de Pahim Jr., comentando que muitas de suas análises rodam o mercado, às vezes apropriadas por personagens mais ruidosos, por isso a citação do seu nome neste contexto.
Poucos dias antes, alguém num grupo de amigos jornalistas havia comentado que, em geral, as informações publicadas pela mídia ou contextualizadas por analistas de bancos e outras empresas quase nunca fazem referência às fontes ou aos autores das reflexões utilizadas. E que, mesmo nas reportagens mais corriqueiras, as referências a casos semelhantes e antecedentes da mesma história em geral omitem as fontes, quando não distorcem a história até o reverso. O ideal, dizia uma colega, seria que nos referíssemos às fontes mesmo quando a informação fosse colhida numa conversa de boteco.
A melhor saída
Pessoalmente, após quase trinta anos nas redações, posso garantir que muitas das histórias que relatei em primeira mão já reli, requentadas e adaptadas, não apenas em jornais e revistas mas até em livro e trabalho acadêmico. A frase que cunhei na “Coluna do Estadão” ? “Perguntar não ofende” ? com a qual encerrava diariamente a coluna, deu uma grande volta e retornou recentemente num e-mail, numa dessas correntes que entulham a correspondência, grilada por um colega de Santa Catarina, titular de uma coluna social. Com o mesmo formato e tipologia, no pé da coluna, como eu fazia.
A colega Thaís Oyama foi clonada de forma escandalosa, o repórter Renato Lombardi teve montes de trabalhos simplesmente copiados, e por aí vai. Mas o campeão dos campeões das vítimas de pirataria com certeza é o poeta e escritor Eduardo Alves da Costa, que foi jornalista e publicitário, é genial contador de histórias e atualmente um artista plástico ignorado pela mídia no Brasil e celebrado em galerias da Europa. Seu poema intitulado “No caminho, com Maiakóvski” roda o mundo, já vertido para muitos idiomas, sob as mais variadas paternidades e formatos, de pôster a corrente da internet. Jorge Luís Borges, Wilhelm Reich, Karl Gustav Jung, Gabriel García Márquez e o próprio Maiakóvski já foram citados como autores do poema de Alves da Costa. Ele apenas se diverte com isso [veja, abaixo, remissão para matéria publicada no OI sobre o caso do poema].
E é justamente nesse poema que se encontra um alerta que deveríamos levar em conta, para que não seja preciso desmascarar a cada mês um novo Jayson Blair ? isso quando a imprensa tiver a dignidade que teve o New York Times de se retratar.
Em seu trecho mais conhecido, diz o poema:
“Na primeira noite eles se aproximam/e roubam uma flor/do nosso jardim./E não dizemos nada./Na segunda noite, já não se escondem:/pisam as flores,/matam nosso cão,/e não dizemos nada./Até que um dia,/o mais frágil deles/entra sozinho em nossa casa,/rouba-nos a luz, e,/…”
Antes que o mais frágil dos picaretas roube de vez a credibilidade da imprensa, é preciso que criemos defesas contra o processo de perda de valores profissionais, que se acelera na medida em que um ambiente de competição selvagem se consolida entre os jornalistas. O risco cresce com a vulnerabilidade causada pelos ataques à regulamentação do exercício do jornalismo e se agrava com a crise que afeta as empresas de comunicação, mas talvez a melhor saída para a crise seja exatamente a reconstrução, em termos absolutamente éticos, do fazer jornalismo.
Ataque constante
Certa vez, conversando com a diretora da Tisch School of Arts da Universidade de Nova York (NYU), Red Burns, ouvi a sensacional observação de que a liberdade de criação que ela oferecia aos seus alunos era uma forma de auditar e estimular a ética em cada um. “Damos a eles o que há de mais avançado em tecnologia, recursos que jamais encontrariam em qualquer outra escola. E ficamos atentos ao significado cultural, ao legado que cada trabalho acadêmico representa para uma sociedade melhor. Se um aluno produz um trabalho maravilhoso, que no entanto revela um grau inaceitável de alienação diante da realidade social, nós o advertimos de que está se tornando apenas um bom técnico.”
No início dos anos 1970, tínhamos esse tipo de contexto na Escola de Comunicações da FAAP, em São Paulo. Profissionais como Marco Antônio Rocha, hoje editorialista do Estado de S.Paulo, George Duque Estrada e outros ensinavam a boa técnica mas mantinham o grupo em estado de permanente questionamento sobre o que deveríamos ter como prioridade no exercício da profissão.
Dentro e fora das redações, nos sindicatos, universidades e outras instituições onde a qualidade da imprensa ainda é considerada um fundamento da democracia, é preciso fazer mais do que debates. É preciso reconduzir a ética para dentro das práticas e criar formas com que reconstituir as defesas do jornalismo, educando os adventícios para que evitem a tentação do “copiar e colar” nos softwares de edição.
Quem tem o encargo de contratar e conduzir carreiras precisa se responsabilizar pela condução de sua equipe. A ética é o nosso sistema imunológico. De certo modo, ações como a retratação do New York Times no caso Blair soam apenas como a aplicação de um antibiótico: o organismo segue sob ataque constante das pragas da picaretagem e ninguém sabe de onde virá a próxima infecção. Só a ética nos salva.
(*) Jornalista
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