VIOLÊNCIA VESPERTINA
Berto Oliveira (*)
Em cinco séculos de existência jamais conseguimos vencer a nossa incapacidade em transformar-nos numa nação social e economicamente justa. Durante quase 400 anos culpamos nossos colonizadores e por mais de 100 estamos vestindo uma carapuça ao contrário na vã tentativa de não reconhecermos a nossa verdadeira realidade. Filha mais ilustre dessa negligência institucionalizada, a violência contra a vida humana acolhe indistintamente a todos em seus braços mortíferos, e já toma ares de epidemia na maioria das cidades brasileiras.
Não obstante a tudo o que de pior acarreta, a violência cosmopolita também cria uma expectativa utilitária em torno de si, por mais surrealista ou estapafúrdio que possamos admitir. É a dura e crua regra do jogo pela sobrevivência. De modo que, deixando de lados os escrúpulos e as sutilezas éticas, temos que reconhecer que igualmente por conta de uma demanda gerada pelo clima de selvageria social estabelecido é que a toda hora novos tipos de negócios surgem, outros se desenvolvem e outros se reciclam na batalha para não perderem espaços já conquistados ou, mesmo, para abiscoitarem uma fatia maior do mercado em que atuam.
Como veículos de comunicação de massa e também responsáveis por grandes demandas, as redes de televisão não fogem a esta regra, e por isso não raramente recorrem à formas bizarras de tábuas de salvação na luta contra o naufrágio da audiência. Um exemplo singelo disso podemos conferir diariamente, ao cair da noite, quando as nossas casas transformam-se em vazadouros de todo o tipo de violência social por conta dos funambulescos noticiários policiais televisivos.
Clones uns dos outros, esses repórteres-cidadão de uma cidade em alerta incorrem no mesmo erro da falta de criatividade. Mudam os nomes, mudam os cenários, mas os maneirismos e a indignação verborrágica dos apresentadores são os mesmos. Os assassinatos, roubos, agressões, acidentes de trânsito e outros tipos de catástrofes são abordados num tom uniformemente sensacionalista e denunciatório, quase que beirando o escatológico. Curioso, porém, é verificarmos que horas mais tarde algumas dessas notícias serão veiculadas pelos telejornais de grife num enfoque mais sutil e menos sadomasoquista. São as versões trash e light do mesmo fato.
Estes programas se notabilizam por valorizarem a notícia que seja mais emocionante, mais escandalosa ou mais exótica àquelas que tenham efetiva relevância informativa para o telespectador. Vale mais o que seja do interesse do público do que o interesse público. Não raras vezes, versões de um mesmo fato se sucedem e até se contradizem não somente em função da precariedade de uma fonte imediata, bem-informada e confiável no local da suposta ocorrência, mas principalmente pelo irresistível açodamento que a transmissão em tempo real de imagens impõe diante da perspectiva de um improvável furo de reportagem ao vivo e em cores para todo o país e, por conseguinte, décimos a mais no termômetro da audiência.
Apesar do pretenso dinamismo na captação das imagens ao vivo e do pretensioso senso de oportunidade desenvolvido pelas equipes externas desses noticiários, é notória a utilização indiscriminada de imagens geradas por helicópteros, manifestadamente insuperáveis na capacidade de deslocamento aos pontos mais diversos da cidade, mas que pecam pela mesmice visual. A dezenas de metros acima do solo e com suas poderosas lentes dando visão panorâmica da suposta ocorrência, essas câmeras voadoras tendem a levar às últimas conseqüências o mito da imagem que fala por si mesma. Isto obriga ao apresentador do programa, que assiste no estúdio à mesma coisa que o telespectador em casa, a desenvolver uma espécie de malabarismo lingüistico-interpretativo desprovido de conteúdo informativo por força do desconhecimento de particularidades do fato que dêem o mínimo de fidedignidade à sua fala.
Barbarismos do quintal alheio
Com a geração compulsória das imagens da maioria das redes de TV a partir da capital paulista para as demais praças do país, passou a ocorrer o inaudito fenômeno da "paulistização da mídia televisiva", na razão direta das conveniências empresariais e operacionais dessas emissoras e na contramão dos verdadeiros interesses econômicos e comunitários das demais regiões brasileiras. Daí qualquer coisa que aconteça na paulicéia, por menos desvairada que seja, extrapolar de seus restritos limites do corriqueiro e transformar-se em tema de importância nacional.
Assim, uma queda de motoqueiro numa pista da Marginal Tietê, uma louca disparada de um camburão pelas ruas tortuosas de um bairro de periferia ou mesmo um trivial engarrafamento de trânsito na hora do rush demandam mais tempo de exposição de imagem e de elucubrações psicossociológicas do apresentador do programa do que teriam aqueles fatos de real importância para os cidadãos de todas as outras cidades do país. Também ficamos todos sabendo exatamente para qual pronto-socorro será encaminhada uma vítima de atropelamento na Freguesia do Ó, a cujo longínquo resgate assistimos confortavelmente sentados em nossas poltronas, enquanto talvez desconheçamos a existência de uma unidade similar que possa nos atender num idêntico infortúnio.
Essa imperiosa e descabida pasteurização dos meios informativos da mídia televisiva se revela mais danosa do que aquela maleficência alienante sempre atribuída às novelas. A verdade, porém, é que de tanto assistirmos aos barbarismos cometidos no quintal alheio corremos o risco de perder o senso exato de medida e passarmos a considerar a nossa própria selvageria doméstica mera inquietação incidental desprovida de qualquer veridicidade.
(*) Pedagogo, Rio de Janeiro
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