Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Cláudia Nina

UM OLHAR A MAIS

"?O olhar virou comércio?", copyright Jornal do Brasil, 8/06/02

"A sociedade que produz Kleber Bambam e outras celebridades-relâmpagos é a mesma que substituiu o lema ?penso, logo existo? por um outro ditado, mais apropriado à lógica do espetáculo: ?sou visto, logo existo?. Essa mesma sociedade é definida pelo psicanalista Antônio Quinet como ?escópica?, termo que desenvolve em Um olhar a mais: ver e ser visto em psicanálise (Jorge Zahar Editor, 300 páginas, sem preço definido). No livro, Quinet, doutor em Filosofia pela Universidade de Paris, explica as diversas formas do imperativo do olhar: de um lado, a fabricação de celebridades, querendo aparecer a qualquer preço; de outro, a insegurança das grandes cidades que gera a exigência da supervigilância com câmeras e filmadoras escondidas por todos os lados. Antônio Quinet analisa o olhar desde a Antigüidade grega até os dias de hoje, abordando temas como os reality-shows e ainda a timidez, o pudor, a inveja, o ciúme, o mau-olhado, a espionagem, entre outros. O psicanalista falou ao JB sobre o trabalho e o sucesso de programas do tipo Big brother em todo o mundo.

– Por que a superimportância do olhar nos dias de hoje?

– A sociedade contemporânea é dominada pelo olhar. Ele é onividente sob variadas formas: desde a proliferação dos programas televisivos de voyeurismo e exibicionismo explícitos até a generalização da vigilância que multiplica as câmeras encontradas em nossos passos todos os dias. Vivemos, hoje, numa sociedade escópica que conjuga o show business e o olho que vigia e pune, materializando o espetáculo com a disciplina e o controle. Essa sociedade comandada pelo capitalismo faz comércio do gozo do ver e do ser visto, e transforma em moeda desde o prazer da exibição até a vigilância do poder.

– Em uma pesquisa sobre o olhar, é evidente que a questão dos reality-shows não pode ficar de fora. Como você, do ponto de vista da psicanálise, enxerga o sucesso desse tipo de programa em todo o mundo?

– É o que abordo no último capítulo do livro. Há programas de televisão que tendem, sem pudor, a fundir a vida com o espetáculo. Os programas do tipo reality-show transformam os participantes em celebridades que pagam o preço de se verem reduzidas a objetos de torcida e aposta nesse ?antropódromo televisivo?. Tudo isso de acordo com um script em que se fabricam as reações (em que até uma psicose pode ser desencadeada). Nessa jogada, em que os jogadores em casa identificados com os jogadores da casa comungam da mesma paixão pela fama, não se sabe mais quem é o sujeito (do jogo) e quem é o objeto (da aposta). O importante é ver tudo e ser visto o tempo todo.

– À luz da psicanálise, o que leva um indivíduo a querer aparecer em programas do tipo Big brother?

– É o olhar, como objeto pulsional, que causa o gozo do espetáculo e o imperativo superegóico de se mostrar e de se exibir: tornar-se visível, virar uma celebridade. Em todos os aparelhos (ideológicos e tecnológicos) é o olhar que se manifesta sob a forma de um mandamento de gozo: ?Mostre-se!? Todos aspiram à celebridade como condição de ser alguém. Assim, nos arrumamos e nos enfeitamos para entrar em cena como figurantes ou protagonistas do filme-vida, para agradar o público. A sociedade escópica apropria-se desse desejo para transformar o exibicionismo em imperativo de publicidade, ordenando ao sujeito fazer de tudo para roubar a cena. Reatualiza-se a ilusão de que o sol brilha para todos ao acenar com a possibilidade de que qualquer um pode ser uma celebridade, bastando ser visto pelo outro para existir. Instaura-se um novo cogito: sou visto, logo existo.

– Em que medida isso se torna prejudicial à sociedade que, cada vez mais, como você escreve, passa a fazer olhos vazados à pobreza, que ninguém quer ver, e ninguém quer que seja vista?

– Paralelamente à cegueira em relação à pobreza e à miséria, há outro aspecto da sociedade escópica. Se, por um lado, ela impõe uma existência vinculada não apenas à visibilidade, mas à celebridade, por outro ela amplia cada vez mais a vigilância e o controle sobre cada indivíduo. Não é mais possível sair de casa sem se deparar com os dizeres : ?Sorria, você está sendo filmado?, verdade ou mentira pouco importa, pois a própria frase faz existir um olhar invisível pousado no sujeito. Entretanto, não precisamos de um dispositivo concreto para nos sentirmos olhados – o neurótico está sempre se sentindo olhado e o paranóico, fabricando um delírio de observação. A instância desse olhar atribuído ao outro é chamada por Freud de supereu, que vigia e pune o sujeito. Olhar ?sobre-mim?. A sociedade escópica, ao utilizar essa estrutura subjetiva, multiplicando seus dispositivos de vigilância eletrônica (câmeras onividentes), transforma a nós todos em objetos vistos e controláveis. A transparência vira um ideal. O pobre só é visto nessa sociedade para ser vigiado, pois é considerado potencialmente um criminoso.

– Para a psicanálise, o olhar tem um outro enfoque, diferente do que se define comumente. Qual a diferença?

– Para o senso comum, olhar e ver se equiparam, o olhar coincide com a visão. A psicanálise se interessa pelo pulsional, pelo registro do desejo e da angústia, no campo visual. Eis o que chamo de campo escópico. Nele o olhar é demasiado, pois incomoda, surpreende, desperta, perturba, afeta, tira o sossego, é um gozo a mais. Como a Medusa, o mais-de-olhar deslumbra e petrifica.

– Existe alguma comparação entre o que está acontecendo agora com o que Foucault desenvolve em Vigiar e punir.

– No final do século 18, Bentham criou o panóptico (um prédio circular com uma torre central) idealizado para melhor vigiar os prisioneiros. Este mesmo modelo foi usado para loucos, doentes, estudantes e operários. O panóptico (literalmente, visão total) dissocia o par ver-ser-visto, e faz do sujeito não um ser que vê, mas um ser visto que está o tempo todo sob o foco do olhar do outro, engaiolado na pirâmide visual do outro. Com esse artifício, o panóptico torna o olhar ao mesmo tempo totalizador (e totalitário) e particularizado para cada um. O olhar é para todos, universal, e, para cada um, singular. É um sistema que podemos qualificar de paran&oacuoacute;ico na medida em que leva a crer que o outro efetivamente pode ver tudo o que o sujeito faz e até mesmo pensa. Coloca assim em prática o ?olho domiciliar? do Big Brother presente na casa de todos na ficção de George Orwell, 1984. Michel Foucault mostrou em Vigiar e punir que o panóptico é o modelo de nossa sociedade disciplinar, em que os indivíduos são tornados transparentes para um ?olho invisível?.

– Qual seria a alternativa a essa sociedade escópica, da qual a televisão parece ser o principal veículo?

– Ao excesso de gozo comandado pela sociedade com o imperativo de exibição, de ideal de transparência e de bigbrotherização da vida, a psicanálise pode opor uma ética do recato, do pudor e da vergonha. Contra a globalização do olho do poder, o direito ao privado e ao secreto. Contra a moral sádica do gozo capitalista que faz da pulsão escópica mercadoria, uma ética em que o olhar é causa do desejo e a falta constitutiva: não se pode ver tudo e muito menos mostrar tudo."

 

BELO PRESO

"Maior pecado de Belo é ser astro popular", copyright O Estado de S. Paulo, 3/06/02

"Há uma diferença entre noticiar e utilizar a notícia para fins que não o de exclusivamente informar. A ligação do cantor Belo com um traficante carioca, descoberta pela polícia por meio de grampo telefônico, era notícia. O desenrolar da história – destacado diariamente como manchete – evidencia a utilização da notícia para outros fins, de aumento da audiência.

A sanha de faturar em cima do pagodeiro é tamanha que, como noticiou o Estado, duas emissoras se engalfinharam no domingo pela paternidade de um ?furo?. Ney Gonçalves Dias noticiou que o ?procurado? Belo estava em coma em um hospital público na Record e imediatamente após foi desmentido por José Luiz Datena, na Rede TV! No mesmo dia, tanto Datena quanto Gugu Liberato (no SBT) deixaram rodar por quase 30 minutos a gravação de uma conversa telefônica na qual o ex-advogado do cantor tentava extorquir-lhe uma pequena fortuna.

O Fantástico também foi atrás do trio elétrico e noticiou o fato. E, a partir daí, as peripécias da ?caçada? e a entrega de Belo à polícia ocuparam as manchetes de todos os telejornais e programas ao vivo. Não é o caso – e nem interessa – discutir aqui se o pagodeiro é viciado ou tem ligações criminosas com o tráfico de drogas. Esse é um problema a ser apurado no âmbito policial e julgado em tribunais.

A questão é refletir sobre o papel da mídia no caso. Ou melhor, sobre a utilização que, em especial, a TV faz do assunto.

Nos programas populares, as relações de Belo fora do show biz têm sido pretexto para discursos moralistas e sensacionais sobre a disseminação do uso de drogas no Brasil. Os ?âncoras? de programas policiais cospem fogo, esbravejam e, com uma indignação teatral, acusam o artista de ser mau exemplo para os jovens.

Na falta de fatos novos inventam desculpas para voltar ao assunto. A Record e Rede TV!, por exemplo, mandam repórteres ao bar que Belo deu de presente à mãe para uma enquete com a freguesia sobre a culpa ou inocência do cantor. Os telejornais são mais sóbrios, mas aproveitam o frisson provocado pelos vizinhos de programação e dão ao assunto o status de manchete.

Os problemas de Belo entram na escalada com o mesmo peso da situação econômica da Argentina e das novidades da Copa do Mundo. Há um senso de oportunidade aguçado. Afinal, drogas e criminalidade estão na ordem do dia. Aparecem no resto do noticiário (com inspeções em penitenciárias, ousadia de chefões do tráfico e ações de criminosos contra jornalistas), nos programas políticos (Geraldo Alckmin faz sua campanha em cima do ?desmantelamento? do crime organizado no Estado de São Paulo), nos programas vespertinos e na novela de maior audiência da Globo. Essa conjuntura, sem dúvida, desperta o interesse do público. É natural a indústria oferecer ao consumidor o que ele deseja.

O que foge dos padrões éticos é a carnavalização que a TV faz para inflar o ibope que naturalmente o assunto conseguiria. Em nome da audiência, transforma o drama de Belo em um show cujas conseqüências não se preocupa em medir.

O maior pecado de Belo não é suas relações com gente pouco recomendável, mas sua profissão. Se não fosse um astro popular, não mereceria sequer 5 segundos de tempo no vídeo e não seria tratado como o inimigo público número um da virtude. E nem seria utilizado como chamariz para a audiência fácil pelos que querem mais ver o Belo pegar fogo."