Monday, 30 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Cláudio Weber Abramo

ÉTICA

"Transparência, essa tolice", copyright Folha de S. Paulo, 21/03/02

"Em sua coluna da pág. A2 de 11 de março, Vinicius Torres Freire referiu-se à transparência desejada na relação entre o poder público e a sociedade como ?essa tolice?. Escreveu ele que o problema da ausência de prestação de contas dos detentores de cargos públicos se resumiria à falta de publicidade de seus atos.

Não resta dúvida de que publicidade é condição necessária para a transparência. Sem informação sobre os atos dos agentes públicos, não há como tomar conhecimento daquilo que tais agentes fazem ou deixam de fazer. Contudo Torres Freire parece depositar um excesso de confiança na publicidade dos atos. Como se tentará argumentar, ela não é suficiente para garantir maior probidade.

Antes de passar à parte da insuficiência, convém reforçar a necessidade da comunicação. Trabalhemos com exemplos. A Transparência Brasil é sistematicamente indagada sobre dados a respeito do Judiciário. Nossa resposta é sempre a mesma: o Judiciário brasileiro é absolutamente incompetente no registro e agregação de informações referentes a seu mister. Os dados simplesmente não existem.

Pode-se dizer que esse poder republicano é a maior das caixas-pretas que assolam o país. Exceto por uma ou outra vara isolada, é impossível obter qualquer espécie de informação agregada, seja ela relativa a casos de corrupção que tramitem ou tenham tramitado pelos tribunais, seja referente aos processos de seleção e promoção de seus quadros, seja quanto aos tempos de transcurso de processos. A se observar que a falta de informação não é um mal em si mesmo, mas decorre de incompetência administrativa.

A manutenção desse estado de coisas interessa às oligarquias, às quadrilhas e a setores da corporação jurídica, incluindo aí não apenas juízes e outros funcionários, como também advogados. Não todos, é claro, mas demasiados. Como que o Judiciário não foi reformado é um dos mistérios da República. E o fato de a inépcia administrativa persistir inatacada revela irresponsabilidade de suas cúpulas dirigentes.

Outro exemplo: o governo do Estado de São Paulo publica na internet (www.fazenda.sp.gov.br/cge2/balanco.asp?tipo=0) dados a respeito da execução orçamentária. Muito bem, publicidade. Todas as despesas estão lá, discriminadas. No entanto são apresentados apenas dados globais. Falta a informação mais importante, a saber, os custos unitários. Por exemplo, em novembro de 2001 a Secretaria do Meio Ambiente gastou R$ 102.691,12 em ?locação de veículos, aeronaves e outros?, sendo R$ 87.691,12 de responsabilidade de um tal de Gab. Secr. Assessor e R$ 15.000,00 de um certo A.C.L.A.P.R.N.

Quando se procura saber quanto o governo estadual está gastando com a compra de ?medicamentos e insumos farmacêuticos?, só se obtêm dados agregados, sem discriminação de preços unitários. Não havendo informação sobre preços unitários, torna-se impossível saber se a Secretaria X está gastando mais ou menos do que a Secretaria Y na contratação de serviços de limpeza ou segurança, na compra de abobrinha ou o que seja.

O pior é que a Secretaria da Fazenda tem todas essas informações, produzidas por um sistema de gestão financeira centralizado no Palácio dos Bandeirantes. Esse sistema informatizado fornece médias e desvios padrões (o que permite identificar quem está pagando mais do que a média), mas o governo do Estado, intransparentemente, se escusa de divulgá-los. Publicidade não significa necessariamente informação útil.

E publicidade não significa que os interessados em potencial farão uso da informação. Passear periodicamente por esse tipo de dado daria pautas a granel para os jornais. Por que isso não se faz?

Um outro exemplo, este federal: o sítio do governo dedicado a licitações eletrônicas (www.comprasnet.gov.br) não oferece nenhuma informação agregada, e muito menos comparativa, sobre preços praticados. Embora decerto sirva para agilizar o processo e ampliar a participação de interessados, não cumpre requisitos mínimos de transparência.

Na Prefeitura de São Paulo (uma terra arrasada no que tange a processos administrativos), a ausência de informações chega ao ponto de não ser possível pagar o ISS ou o IPTU por via eletrônica. É notório, por exemplo, que o pagamento de propinas garante a eliminação de dívidas com o fisco municipal. Isso só é possível porque não há controle, não há informatização, não há racionalidade mínima. A falta de informação tem raízes em opacidades profundas.

E isso nos traz ao tema da insuficiência da publicidade como garantidora de transparência. Processos de corrupção acontecem por falhas dos mecanismos de controle do Estado. Os legislativos brasileiros nem sequer se dão ao trabalho de equipar suas comissões temáticas (Educação, Saúde etc.) com corpos técnicos capazes de realizar a fiscalização permanente dos gastos dos respectivos executivos. Com isso, os legislativos descumprem seu dever constitucional, sob a alegação pueril de que isso seria função dos tribunais de contas, cujo objetivo principal é examinar contas após o fato, embora tenham certa latitude fiscalizatória.

Da última vez que perguntei, há cerca de um ano, verifiquei que nenhum dos mais de 50 vereadores da capital paulista dispunha, em seus gabinetes, de acesso aos dados da execução orçamentária do município. Existia na Câmara um único terminal com esse acesso. Observe-se que instalar a conexão e as senhas não depende da vontade de ninguém mais do que de cada vereador. Eximir-se disso é renunciar à transparência.

Procedimentos administrativos mal-ajambrados no interior de órgãos e ausência de responsabilização política favorecem a corrupção, porque dão excesso de liberdade ao exercício do arbítrio do agente público, o qual é estimulado a criar dificuldades para vender facilidades. Não há publicidade que resolva isso. Só reformas ou aperfeiçoamentos administrativos, muitos elementares. Não empreendê-los é sinal de falta de compromisso com a transparência. (Cláudio Weber Abramo, matemático pela USP e mestre em lógica e filosofia da ciência pela Unicamp, é secretário-geral da Transparência Brasil e membro do Conselho Diretor da Transparência Internacional www.transparencia.org.br)