Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Câmera oculta e os neovertovianos

TELEVISÃO

Nelson Hoineff (*)

Há dois anos, num debate sobre ética, vi um estudante perguntar se o palestrante era a favor ou contra a câmera oculta.

Podia ter perguntado se ele era a favor ou contra a caneta. A câmera, como a lapiseira, é o instrumento. O uso que se faz dela é o que conta. Não é responsabilidade do computador se ele está sendo usado para escrever uma poesia humanista ou um manifesto racista.

Mas é compreensível que a câmera oculta seja às vezes entendida como um meio em si. Já nos anos 20, ela estabelecia um contraponto ao encanto pelo cinema verité, que só tomaria forma mais de 30 anos depois. Movido pelo entusiasmo construtivista, Dziga Vertov investia contra o "diretor-encantador e o público encantado", decretava a falência dos "beijos e crimes encenados" e preconizava o estabelecimento de uma visão de classe, assim como do "cinema-olho" que ele fundaria para documentar massivamente a Rússia bolchevique.

Em 1929, seu Homem com a Câmera de Filmar fazia um extenso uso consciente da câmera oculta. O historiador David Thomson dá a esse fato uma grande importância em sua obra: "(Vertov) usou uma câmera oculta para filmar disfarçadamente ou à distância e orgulhosamente foi às ruas, às fábricas e ao interior da União Soviética (para colher) algumas belas e autênticas cenas de cidadãos filmados sem o saber". Thomson infere que Godard tenha visto em Vertov a primeira apreensão real do "dilema do documentário".

Que dilema é esse? Para Thomson, a ambigüidade entre o amor instintivo pelo cinema e a necessidade de politizar esse entusiasmo ? "a consciência do puro que pode ver e ouvir", como Vertov mesmo diria. Mas há também um outro dilema, sobre o qual, bem depois, Chris Marker se debruçaria: o do efeito da presença ostensiva da câmera sobre a natureza do que ela está documentando.

A parafernália esvazia o ser humano e cria o persona, mas as críticas vão muito além. Ao pé da sua própria letra, lembra Herzog, o cinema verité é destituído de verdade. Alcança uma verdade meramente superficial, a verdade dos contadores.

70 anos de atraso

Não fossem pelos complexos dilemas éticos que esse mecanismo faz aflorar, a simples confirmação do ser humano desobrigado de uma postura inautêntica já absolveria precocemente a camuflagem do objeto que está captando a realidade. Mas é verdade também que, sob essa ótica, caixas de sabão em pó flagradas pelo Candid Camera desabando das prateleiras de um supermercado podiam dizer mais sobre a sociedade do que toda a obra de Jean Rouch.

É por isso mesmo que a responsabilidade do documentário ? e, por extensão, do telejornalismo ? é bem maior que a da ficção ou da teledramaturgia. E quando a câmera não capta o que o personagem gostaria de ter feito diante dela, mas o que faz independente da sua presença, a impressão da realidade, e conseqüente certeza da verdade, é absoluta. A fé pública que o espectador confere ao repórter amesquinha-se. É aí que já não vale o escrito. Vale o visto.

Comecei eu mesmo a utilizar a câmera oculta na televisão em agosto de 1989. Vasculhamos reuniões de neo-nazistas e armações de seitas evangélicas. Escondemos câmeras em bíblias ocas, tendas de obras, na tampa das canetas. Percorremos gabinetes vazios de senadores. As secretárias riam: "O senador aqui numa quinta-feira? O senhor deve estar brincando".

Com o tempo, a câmera oculta foi se banalizando até acabar no limbo: ?pegadinhas? patéticas, armações grosseiras, pequenas denúncias contra os oprimidos, infames armas do oficialismo. A câmera oculta tem sido um instrumento de invasão de privacidade, de sedimentação do poder e de logro ao espectador.

Recentemente, a TV Globo tem contribuido para reabilitá-la. E alguns dos melhores desses momentos ocorreram na última semana, com a exposição do ?feirão? das drogas nas favelas do Complexo do Alemão, da Mangueira e da Rocinha. O governador Garotinho caiu na armadilha que ele próprio armou num rompante e acabou pautando para a Globo outra bela matéria: no dia seguinte, as câmeras ocultas mostravam, com igual nitidez, o tráfico nas ruas da zona sul do Rio.

Pode-se objetar que o que as reportagens mostram é a raia miúda do tráfico, o que é verdade; mas não é o conteúdo delas que está em questão, e sim os seus mecanismos de produção e o efeito que eles são capazes de causar. Mil repórteres podem dizer que vende-se cocaína nas favelas e nas ruas do Rio de Janeiro. Como notícia, isso equivale ao cachorro mordendo o homem. Mas quando a câmera registra o que todo mundo está cansado de saber, então está criado o estardalhaço.

O Globo repercutiu no domingo [19/8] a prisão de um dos traficantes flagrados vendendo drogas em Ipanema ? o que não é especialmente bom para a TV, porque ela não está aí para fazer papel de polícia. Mas a repercussão junto às outras emissoras é que é espantosa: todas jogaram as imagens da ?concorrente? no ar, como se o recurso da câmera oculta, usada com um mínimo de responsabilidade, tivesse acabado de ser descoberto.

O que estavam fazendo, na verdade, era identificar a compreensão do cinema-olho como uma antítese do diretor-encantador.

Estavam começando a entender Vertov com 70 anos de atraso.

(*) Jornalista, diretor e produtor de televisão.

    
    
              
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