Friday, 29 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

Cobertura, ficção e vida real

RBS E A VIOLÊNCIA

Gilmar Antonio Crestani (*)

É uma tentação quase irresistível dizer que vivemos numa época violenta. Mas qual época não o foi? Não só os livros de história, mas também os de literatura estão aí para provar. Se é que precisa provar.

Os gregos, por exemplo, parecem ter gostado da cidade-estado para, assim, ter mais inimigos à sua volta. Sendo todos gregos, viviam, como dir-se-ia hoje, em guerra civil, como conta Tucídides em História da Guerra do Peloponeso. Se Alexandre Magno, da Macedônia, levou os gregos a lutarem na Índia, quase metade desse percurso já havia sido trilhado por mercenários gregos, cujos feitos foram magistralmente retratados em Anábase. Esta obra, escrita por Xenofonte, que narra a retirada dos 10 mil mercenários levados pelo rei da Pérsia, Ciro, para lutar contra seu irmão Artaxerxes, na Ásia Menor, deu origem à narrativa de retirada de guerra, também chamada xenofôntica. As Guerras Napoleônicas e, depois, a Primeira Grande Guerra, também serviram de mote para os ficcionistas e historiadores europeus. A França deu Os Miseráveis, de Victor Hugo.

Pulando rápido de lá (Europa) para cá (Brasil), deparamo-nos com Deonísio da Silva, brilhante articulista deste Observatório, explorando a literatura xenofôntica. Com o livro Avante, soldados: para trás conquistou o Prêmio Casa de Las Américas de 1992, talvez o maior prêmio latino-americano de literatura, e diversificou, nas pegadas de Visconde de Taunay, seu arsenal literário. Estão ali retratadas as peripécias do Exército Imperial Brasileiro durante a Retirada de Laguna, conduzido pelo Coronel Camisão.

No plano da ficção, a violência não é só uma constante. Nasceu e convive bem com ela, desde o aparecimento da Tragédia Grega aos desenhos do Cartoon Network, Pokemons e Cia. Ltda.. Seu expoente nacional, na ficção, é Rubem Fonseca.

É aqui que entramos na questão atual, do aumento da violência. E a primeira pergunta é: qual violência? Implica dizer que há mais de um tipo de violência. A realidade e o mundo ficcional se influenciam mutuamente, assim como a mídia e seu público consumidor? A violência pode ser comparada com a pornografia? O que é mais pornográfico, uma mulher seminua ou um cidadão sem dentes? E se for seminua e sem dentes?

Os exploradores dos meios de comunicação dizem refletir a sociedade. Segundo estes, o seu público consegue discernir o real do ficcional! Quer dizer, para eles, a tevê, o jornal, o rádio não influenciam. Mas então não é jogar dinheiro fora fazer com que a personagem opte por aplicar suas economias no banco X, que patrocina a novela, em vez do Y, que não dá cachê? Qual seria a razão que levou os tucanos a tentarem um "rapto" do marqueteiro de Roseana Sarney, Nizan Guanaes, se a mídia não influencia, e Roseana não é nenhuma Brastemp?

O meio publicitário registrou a dúvida do salgadinho. Afinal, é mais fresquinho porque vende mais ou vende mais porque é mais fresquinho? Muito além do que simples reflexo na relação público-mídia, há um duto de mão dupla que a alimenta. Essa autofagia às vezes pode ser sutil.

Catástrofe natalina

Se o coronelismo midiático martelar em todos os seus veículos, que forma quase um monopólio, já que envolve cadeias de rádios, tevês e jornais, que a violência é fruto da "brandura" com que a política de segurança pública é tratada pelo Estado, não estaria legitimando na corporação um espírito de "justiça pelas próprias mãos"? Um seriado com uma personagem que de dia é juiz e de noite justiceiro também não incentiva a solução pessoal dos casos que fogem das garras da justiça, afinal, ela é cega?

A afiliada da Rede Globo, a Rede Brasil Sul, também conhecida como RBS, descobriu o problema de segurança pública no RS somente a partir de janeiro de 1999, quando Olívio Dutra tomou posse do governo do estado. Enquanto governava o ex-porta-voz, aquele que, à noite, no Jornal Nacional, consagrou o bordão: "Senhores, trago boas notícias" (ganhou o prêmio "O Vivo do Ano", do Pasquim Sul, edição de janeiro de 1987), para que o defunto guardasse a vaga para o vice, José Sarney, o RS era o oitava maravilha.

A segurança pública, de fato, é um problema. Senão vejamos alguns fatos recentes de repercussão nacional.

Os 24 meninos castrados no Maranhão ganharam as páginas dos jornais, correu o mundo. As greves das polícias de Minas, Bahia e Ceará, idem. Vigário Geral e Carandiru ainda estão frescos na memória. Com a tragédia da linha 174, do Rio, que vitimou a professora Geisa Firmo Gonçalves, 20 anos, e seu algoz, este de morte matada, brotou um miraculoso plano nacional de segurança.

Pura pirotecnia de réveillon!

No ano passado, primeiro a filha e depois Sílvio Santos foram seqüestrados. Mesmo a palavra do governador Alckmin foi insuficiente para preservar a vida do seqüestrador. No dia 29/12/2001, o Jornal da Tarde, de São Paulo, trazia um dado assustador sobre aquele estado: o número de seqüestros subira 324% em 2001, já incluído o do Washington Olliveto. Em São Paulo, foram 19 mortes só em 12 horas do Natal.

No RS, só no fim de semana do Natal, foram contabilizados 16 mortos só no trânsito. Somados com as 60 vítimas das chuvas no Rio, temos uma catástrofe natalina equivalente às mortes resultantes do conflito árabe-israelense em um ano.

Nos meandros do poder

No dia 21/12, em assalto praticado dentro de um ônibus, em Porto Alegre, os criminosos, ao constatarem a presença da PM Carina Rodrigues Macedo, 28 anos, denunciada por um par de presilhas, mataram-na. Um dia depois, os suspeitos desse crime foram executados, ao que tudo indica, por policiais. Se o estado, como diz a RBS, não faz, a corporação se investe de poderes e executa. A mídia influiu ou não?

Mesmo os jornais de alcance nacional, como Folha, Jornal do Brasil, Estado de S.Paulo e O Globo, vêem o problema da violência como algo localizado, seja em um bairro, vila ou favela de suas respectivas sedes. Com muito mais ênfase, a Zero Hora também só consegue enxergar a violência local. E, como tem feito nestes três anos, reputa à política de segurança de seu desafeto, o secretário José Paulo Bisol.

Por mais brilhante que seja a polícia de Santa Catarina, governada por Esperidião Amin, do PPB, por exemplo, onde a RBS não vê nenhum problema na política de segurança, as mortes violentas acontecem com uma freqüência crescente. Inclusive contra políticos. No Paraná, governado por legítimo representante do PFL, Jaime Lerner, o deputado Tiago de Amorim Novaes (PTB), 33 anos, foi assassinado, a tiros, na noite de 18 de dezembro, em Cascavel. A casa do prefeito de Guarapuava, Victor Hugo Burko (PSDB), foi atingida por vários tiros alguns dias depois. Por essas e por outras que o jornalista João Meassi, de Curitiba, entende que o IBGE deve medir também o índice de brutalidade do brasileiro.

Os dois governadores dos estados vizinhos nada têm em comum com Olívio Dutra, mas todos têm algo em comum: são estados de uma federação há oito anos nas mãos de um professor de Sociologia que, por sua vez, tem como vice Marco Maciel, do PFL, o mesmo PFL de Roseana Sarney e ACM, desde sempre imiscuídos nos meandros do poder. Tanto no poder político, como no econômico e, principalmente, no quarto poder! Dezoito meses após o seqüestro do ônibus da linha 174, no Rio, este fim de semana tocou a Porto Alegre viver, por 27 horas, o drama de um seqüestro com múltiplas vítimas. Felizmente, acabou sem mortes.

Andando para trás

Fica claro, então, que a violência é um fenômeno nacional, os jornais são locais, mas a hipocrisia é, sem dúvida, universal. Hipocrisia como a do vice-líder do governo no Congresso, que cortou todas as verbas do orçamento que haviam sido propostas pelos deputados petistas gaúchos, e já estavam aprovadas. Hipocritamente, o jornal Zero Hora até agora escondeu do público gaúcho o comportamento do deputado Darcísio Perondi, do PMDB. Por coincidência, correligionário de Eliseu Padilha, alvo de denúncias publicadas pelos demais jornais, e que não encontraram eco na RBS. Que, por coincidência, apoiavam Jáder Barbalho.

A mesma hipocrisia que, diante do elevado nível de desemprego nacional, busca preservar uma vaga de senador vitalício para quem já tem três aposentadorias.

Na ficção e na vida real, na literatura e nas mídias, de um modo geral, há muita violência. Mas não é só a violência que mata, a hipocrisia, também. Veja-se o caso da Argentina, contabiliza seus mortos, vítimas daquela. Os gregos também eram partidários da globalização. Colonizaram o Mediterrâneo desde as Colunas de Hércules (Gibraltar) ao Helesponto. E, guerreando, foram além. Vencidos pelos romanos pelas armas, venceram-nos pela cultura. A globalização romana interessava aos romanos, depois, às hordas. Vieram as navegações e a globalização tomou outro sentido. A Primeira e Segunda Guerras nada mais foram que disputas de espaço em um mundo globalizado. Os artistas de cada época registram os feitos, por isso os sabemos.

No Brasil, infelizmente, Deonísio tem razão. Estamos em retirada, trancados, cercados, andando para trás. E a hipocrisia campeia!