Luiz Antonio Magalhães
Cerca de quinze dias antes de Sandra Gomide morrer no Haras Setti, em Ibiúna, o jornalista Antonio Marcos Pimenta Neves foi conhecer a redação do PanoramaBrasil, jornal virtual dirigido por Roberto Müller Filho. Depois da visita, Pimenta e Müller jantaram juntos.
Müller soubera que Pimenta havia pedido demissão do cargo de diretor de Redação do O Estado de S.Paulo. As primeiras notícias que circularam nas redações diziam que Pimenta estava com problemas de saúde, o que também era verdade – ele se recuperava de uma cirurgia no olho e estava enxergando muito mal –, embora ocultasse o real motivo do pedido de afastamento. O diretor de conteúdo do PanoramaBrasil soubera ainda que Ruy Mesquita, diretor-responsável do Estadão, não havia aceitado o pedido.
Pimenta Neves e Roberto Müller são velhos amigos. Trabalharam juntos em três importantes veículos: na Folha de S.Paulo, na revista Visão e na Gazeta Mercantil. Durante o período em que Pimenta trabalhou no Banco Mundial, em Washington, os dois se encontraram diversas vezes, no Brasil e no exterior.
Após o jantar com Pimenta, Roberto Müller estava preocupado. A tal ponto que ligou no dia seguinte para saber se o colega havia seguido o conselho de Ruy Mesquita e visitado um psiquiatra. "Ele estava muito perturbado, confuso", conta Müller, que nos últimos dias tem visitado o amigo internado na clínica psiquiátrica Parque Julieta.
Embora condene qualquer tipo de violência – sobretudo um homicídio –, Müller acha que compete à Justiça julgar serenamente todos os tipos de crime. Em entrevista ao Observatório da Imprensa, o jornalista comentou a cobertura do caso pela imprensa, que qualifica de predominantemente leviana. A maior crítica tem alvo certo: as emissoras de televisão que veicularam o depoimento que Pimenta Neves prestou, ainda durante a internação no hospital Albert Einstein, após tentar suicídio ingerindo tranquilizantes. "O que foi mostrado era de interesse exclusivo da Justiça. A divulgação das fitas é um procedimento ilegal e antiético", afirma Müller. Para ele, a memória de Sandra Gomide e a vida privada de Pimenta Neves estão sendo violentadas pela imprensa. Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
Qual é a sua análise do comportamento da imprensa na cobertura do assassinato de Sandra Gomide?
Roberto Müller Filho – Acho que boa parte da imprensa foi leviana, invasiva, parcial e sensacionalista. Sem dúvida, alguns órgãos se comportaram bem, registraram os fatos, ouviram e deram igual destaque às partes envolvidas e levaram em conta os aspectos médicos e psiquiátricos do caso. Os maiores abusos foram cometidos por algumas redes de televisão que divulgaram cenas privadas, de interesse exclusivo da Justiça. Pior, editaram essas cenas. E a história recente de edições, no Brasil, não é boa. Basta lembrar o episódio da edição do debate entre Collor e Lula, na disputa presidencial de 1989. Acredito que a invasão de um hospital, a obtenção, por meio de alguma pessoa inescrupulosa, de fitas contendo um depoimento privativo da Justiça, e a edição e exibição dessas imagens é um procedimento não apenas ilegal, mas antiético, um acontecimento nada edificante para o jornalismo brasileiro.
Há quem defenda a tese de que o caso não deveria sair na imprensa porque Pimenta Neves e Sandra Gomide não são figuras públicas. O senhor concorda?
Müller – Acredito que o critério jornalístico deve ser levado em conta e a notícia do assassinato é do interesse de muitos leitores. Mas ainda que se tratassem de figuras públicas, a imprensa deveria ter alguns cuidados. Não é lícito romper com a privacidade das pessoas. A memória da vítima não está sendo respeitada, há especulações de todo tipo sobre a conduta profissional e pessoal de Sandra Gomide. E não é só isso: por que os jornalistas, por exemplo, têm de ficar de plantão na clínica onde Pimenta Neves está internado? Que necessidade há de perturbar os outros pacientes, que estão lá internados, se tratando de problemas psiquiátricos? De atrapalhar o trabalho dos médicos? E por que invadir a privacidade das famílias envolvidas? É justo fazer tudo isso?
Quais são, na sua opinião, as conseqüências deste tipo de cobertura jornalística?
Müller – A meu ver, essa volúpia sensacionalista prejudica, é óbvio, o réu; mas prejudica muito mais o andamento da Justiça. Quando os jornalistas começam a confundir os seus julgamentos pessoais e seu senso de justiça com a Justiça propriamente dita, há um risco muito grande. Aliás, quando qualquer um – seja jornalista, capitão ou delegado de polícia – começa a confundir esses conceitos, abre-se um precedente perigoso. A Justiça precisa se mover sem pressões de generais, de militares, de quem quer que seja. Nem da imprensa. Experiências dessa ordem não deram certo na Alemanha, não deram certo no Brasil. Esse tipo de pressão realmente abre precedentes graves e deve ser combatida. No caso específico, é preciso lembrar que qualquer que seja o crime, por pior que seja o delito, a lei garante a todos o direito de ser julgado com isenção. Depois das cenas da televisão, porém, isto ficou comprometido. Há um pré-julgamento do réu na cobertura de boa parte da imprensa. Não se pode tentar impedir que a Justiça seja feita de acordo com as leis e com os ritos que lhe são próprios.
Como os jornalistas deveriam se comportar, idealmente, para cobrir um acontecimento deste tipo sem influenciar no júri?
Müller – O dever do jornalista é levar ao leitor uma informação correta. Ele não pode de maneira alguma emitir pré-julgamentos em forma de notícia. Deve ouvir as partes, os advogados, acompanhar e registrar o andamento do processo. Dentro dos aspectos médicos e científicos do caso, ouvir profissionais da área, pessoas que possam contribuir para esclarecer como e por que fatos como este acontecem. É preciso também destacar o que for de interesse público no episódio. Há poucos dias, por exemplo, a OAB manifestou-se sobre a divulgação na TV das gravações do depoimento de Pimenta Neves. O repúdio da entidade foi dado de forma discreta, mas é algo que diz respeito às garantias individuais e interessa a todos, sem dúvida merecia um destaque maior. Acho ainda que os jornais têm o direito de levar o assunto para as primeiras páginas, se avaliarem que não há, no dia, assunto de maior interesse público. E se, dia após dia, os jornais julgarem que o assunto merece mais destaque do que outros temas, então o noticiário cabe em primeira página. É o chamado critério jornalístico, cada órgão de imprensa tem a sua avaliação.
E os artigos de opinião e editoriais?
Müller – Os jornais têm todo o direito de tratar do caso em editoriais, embora eu particularmente ache um pouco prematuro. Quanto aos artigos de opinião, noto que há muito ajuste de antigas contas, como mencionou o diretor de Redação da Folha de S.Paulo, Otavio Frias Filho, em artigo na semana passada [veja no Aspas desta rubrica]. Mas é possível fazer comentários, analisar o episódio de maneira ampla – o artigo do Otávio Frias Filho é um bom exemplo – ou ainda abordando aspectos médico-científicos ou jurídicos do caso.
Há quem diga que a forma com que a imprensa está cobrindo o assassinato de Sandra Gomide é correta e que no passado o sensacionalismo seria muito maior…
Müller – Na minha opinião, está aumentando essa tendência de cobertura opinativa, que alguns chamam inadequadamente de jornalismo "investigativo". Pode ser uma impressão, mas penso que é isto o que está acontecendo. Não me refiro ao tempo em que os jornais eram muito "partidarizados" ou ligados a determinadas facções, mas a um passado mais recente – os longos anos desde que trabalho como jornalista. Da época da abertura política – quando a imprensa brasileira teve um desempenho notável no sentido lutar contra a censura e de ajudar a derrubar a ditadura militar –, daquele tempo para cá, acho que a situação vem piorando. Fico perplexo, por exemplo, quando vejo os procuradores concedendo entrevistas sobre casos não julgados, ainda em fase de inquérito.
Também há quem pense que a imprensa reflete a sociedade em que está inserida. A noção de que existe uma esfera pública e uma privada, por exemplo, estaria atualmente ruindo no Brasil e os meios de comunicação estariam apenas refletindo essa realidade, inclusive por meio de programas de entretenimento, não só no jornalismo. O senhor acha que a imprensa reflete as virtudes e defeitos da sociedade brasileira?
Müller – Acho que não reflete. A sociedade brasileira é bem melhor do que a sua imprensa. A elite, sim, se parece com a imprensa. Melhor ainda: boa parte imprensa brasileira reflete as características de uma parcela leviana da elite. Quanto aos programas de baixo nível que exploram a invasão da privacidade, penso que o fato de que as pessoas possam se excitar e gostar dessas coisas não justifica a veiculação das perversidades. Muita gente, especialmente os menos cultos, os que passaram por variados tipos de privações, pode até achar graça e gostar de assistir a tais programas. Acho que isto é uma forma cruel de explorar a falta de alternativas de entretenimento das classes mais pobres. Não defendo a censura, mas penso que algum tipo de regulamentação precisa existir para conter as vulgaridades. No que diz respeito ao jornalismo, é preciso lembrar que os profissionais da área não foram eleitos para representar a sociedade. Nós, jornalistas, somos convidados por empresas privadas para levar uma informação correta ao público, e não para representá-lo ou agradá-lo. E é bom que essas empresas sejam privadas, para preservar a pluralidade. A liberdade de imprensa, porém, pertence ao público, não aos jornalistas. Nós temos o dever de exercer a profissão corretamente, em benefício do verdadeiros detentor da liberdade de imprensa, que é o ouvinte, o leitor, o telespectador. Não temos um mandato da sociedade, como infelizmente alguns pensam ter. Não podemos, em hipótese alguma, ferir direitos individuais e atropelar a Justiça, como parece estar ocorrendo no caso do jornalista Antonio Pimenta Neves. É bom não esquecer que essa prática é autoritária e antidemocrática e pode inclusive se voltar, como já aconteceu, contra a imprensa e contra os jornalistas.
O senhor é amigo de Pimenta Neves há muitos anos. Gostaria de falar algo sobre ele?
Müller – A história de Pimenta é uma história de honradez e competência. Não foi para nenhum dos importantes postos que assumiu por parentesco com proprietários de jornais ou por indicação de figuras públicas. Ocupou cargos de grande relevância na Folha de S.Paulo, no Estado de S. Paulo, na revista Visão, na Gazeta Mercantil e no Banco Mundial. É muito difícil alguém assumir e manter-se nesses cargos sem a competência necessária. Ele sempre foi, reconhecidamente, um bom jornalista, um homem com grande zelo, que preza muito a ética. Tem duas belas filhas, gêmeas, foi e é um bom pai, um cidadão correto. Está sendo tratado por muitos veículos de comunicação como um bandido contumaz, coisa que não é, e não sou eu apenas quem digo, é a sua biografia, é tudo que fez durante 63 anos de vida. É óbvio que não acho correto qualquer tipo de violência, mas nada justifica o linchamento moral de uma pessoa.
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