MORTE DE MARIE TRINTIGNANT
Leneide Duarte-Plon, de Paris
Um cantor-compositor famoso de um grupo de rock rebelde, engajado na luta altermundialista. Uma atriz jovem, bonita, livre, engajada, filha de pai ator e mãe diretora de cinema, irmã de um assistente de direção respeitado. Uma família que vivia do cinema e para o cinema.
De repente, a tragédia. O cantor espanca a companheira numa suíte de um hotel de Vilnius, na Lituânia, onde a atriz filmava a vida da escritora "Colette", dirigida pela mãe e pelo irmão.
No fim do mês de julho, sob um calor inédito que tem batido todos os recordes históricos, a França viveu um drama que emocionou não somente os fãs anônimos da atriz Marie Trintignant, mas mexeu com a classe artística e intelectual francesa. Todos ficaram chocados com a trágica morte da atriz, depois de vários dias em coma causado por hemorragia cerebral, resultado de pancadas na cabeça. Um roteiro perfeito para a nossa grande imprensa encher páginas e mais páginas com fotos indiscretas e grandes manchetes sensacionalistas se, por hipótese, o cantor de rock se chamasse Lobão e a atriz fosse a nossa querida Fernanda Torres. Os tablóides ingleses teriam feito um carnaval se o cantor e a atriz formassem um casal de sucesso do mundo artístico britânico.
O ministro da Cultura e toda a classe artística francesa estavam na cerimônia feita no dia do enterro. Lionel Jospin também ? afinal, Marie se engajara na sua campanha presidencial. No entanto, não se viu uma única foto deles nos jornais. Apenas percebeu-se em algumas delas o pai da atriz, o ator Jean-Louis Trintignant, irreconhecível na sua dor, ao repetir em prantos a frase que recebeu de um amigo: "Não chores aquela que perdeste ; regozija-te de tê-la conhecido".
Marasmo de agosto
Na França, a imprensa considerada séria ? leia-se jornais como Le Monde, Libération e Le Figaro e revistas semanais de informação como L?Express, Le Nouvel Observateur, Marianne e Le Point ? tem uma tradição: a vida privada de artistas e políticos não tem interesse jornalístico. Vida privada na França é sacralizada. Já foi muito mais, mas, em princípio e por princípio, os jornais franceses tratam da carreira de seus artistas e dos homens políticos e muito pouco de suas vidas privadas. Mesmo apresentadores de televisão têm sua vida e de seus filhos preservada. Primeiramente, porque assim o desejam. Depois, porque são respeitados em sua privacidade. Impensável a auto-exposição que se vê no Brasil dos televisivos e seus filhos.
Por isso, a cobertura da morte de Marie Trintignant foi atípica porque saiu das páginas internas reservadas aos fait divers e ganhou mais destaque. A notícia, por referir uma tragédia envolvendo dois artistas muito conhecidos, foi tratada não apenas como mais um fait divers mas como um assunto digno de uma primeira página e de um editorial no Libération e de um editorial do Le Monde, além das reportagens de páginas internas que acompanharam a luta da atriz pela vida e o pedido de extradição do cantor pela Justiça francesa.
A morte de uma mulher espancada por seu companheiro é chocante, independentemente de sua origem. Mas a de Marie Trintignant, bela atriz de 41 anos, tornou-se um símbolo para o movimento feminista francês. Tudo indica que ela lutou para se defender do roqueiro Bertrant Cantat, de 39 anos, na madrugada de sábado para domingo, 27 de julho. Cantat estava bêbado e talvez drogado. A atriz havia bebido e também talvez estivesse drogada. Mas nenhum jornal teve a coragem sequer de insinuar o que artistas e pessoas do mundo do espetáculo sabem. Os dois se drogavam e bebiam muito. Mas esses detalhes parecem sórdidos demais para os jornalistas franceses, que apenas mencionaram que o casal bebera muito na noite do "acidente".
A cena de ciúmes de Cantat foi causada por um telefonema do ex-marido de Marie para combinar as férias dos dois filhos menores da atriz, que tinha quatro filhos de três pais diferentes. A falta de assistência imediata à atriz ? talvez devido ao próprio estado de Cantat ? foi responsável pelo coma do qual ela não saiu.
Agora, a imprensa francesa, vítima do marasmo do mês de agosto no qual a maioria dos franceses emigra para as praias do Mediterrâneo, já tem novo tema que promete ser uma das melhores pautas até a rentrée do mês de setembro: as mulheres espancadas por seus maridos e companheiros.
Segundo o editorial do Le Monde, é preciso levar mais a sério esse assunto e "acolher, proteger e ajudar as mulheres que se sentem impotentes diante desse problema". Segundo uma matéria publicada no sábado (9/8/) no mesmo jornal, é um exagero dizer ? como Elisabeth Badinter em seu mais recente livro, Fausse route" (Caminho errado) ? que os números divulgados pelos estudos das feministas são exagerados. O jornal afirma, citando uma pesquisa nacional, que seis mulheres francesas morrem a cada mês vítimas da violência de seus maridos ou companheiros.