Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Cobertura sem profundidade

FÓRUM SOCIAL MUNDIAL

Silvia Sabina Buosi Cardinale (*)

Enquanto nos telejornais brasileiros crescia o número de reportagens sobre casos de violência, elegendo os seqüestradores como os maiores inimigos do povo; enquanto vendia-se ao telespectador a antropofagia do grande irmão Big Brother ou produziam-se matérias "geladas" sobre os preparativos para o Carnaval, na capital gaúcha a primeira semana de fevereiro reunia três mil jornalistas de 48 países para a maior cobertura jornalística de movimentos sociais que o mundo já reuniu num único espaço e tempo.

Eram 51.300 participantes em 186 línguas. Esse era o cenário, mas quem acompanhou pelos jornais, em casa, não teve respeitado o direito à informação. "Uma cobertura jornalística no mínimo ordinária", desabafou o professor de Jornalismo da USP, Bernardo Kucinski, um dos coordenadores da agência de notícias alternativa Carta Maior, em declaração sobre a cobertura jornalística na segunda edição do Fórum Social Mundial. Num contraponto à deterioração da qualidade técnica do jornalismo nacional, jornalistas da Itália e da França, por exemplo, se estapeavam para registrar e enviar em tempo real o maior número possível de informações detalhadas, esperadas por suas editorias européias.

Por aqui, o que se ouvia das chefias das redação estava longe do que realmente atraia os 51.300 inscritos no fórum. Como justificativa para a ausência de pressão qualitativa das redações, ouvia-se de alguns jornalistas que os fatos pitorescos e as brigas entre alguns jovens eram informação imprescindível na cobertura, que aquele era um fórum sem proposição conclusiva ou deliberativa, portanto, apenas um fato merecedor de simples registros.

"Sabemos que a ONU (Organização das Nações Unidas) já resolveu os problemas do mundo todo inúmeras vezes e todas resoluções foram fechadas em documentos finais, em proposições conclusivas", disse Rigoberta Menchú Tum, da Guatemala, Prêmio Nobel da Paz de 92. Não há quem conteste que o mundo não precisa mais de compromissos documentados. Essa pauta estava nos rostos das pessoas que se aglomeravam nos corredores e nas alas da PUC-RS, universidade-sede do fórum, evidenciando que encontros como esse reúnem gente que faz, e não apenas gente que diz que faz.

Escândalos como luvas

O segundo FSM mostrou que muito já foi e há de ser feito pela via da emoção do encontro de pessoas que num único espaço e momento viveram suas diferenças, literalmente se irmanando nas desigualdades e nas opressões. Essa gente toda apontou saídas possíveis para filipinos, senegaleses, bascos, riograndenses e paulistanos, americanos e palestinos. Saídas que a história do grande portador de sonhos, o neoliberalismo, não sinaliza mais.

Quem esteve lá viu que, por trás de toda a proteção do estado capitalista, os movimentos populares continuam e nunca deixaram de existir, como supõem alguns teóricos. Afinal, a história das conquistas sociais no mundo só saiu do papel por única e exclusiva ação desses filhos e netos de todos os idealistas pró-revolucionários, e não apenas pelas mãos dos partidos políticos. Um desses movimentos está no próprio Brasil: foram as lutas dos portadores do HIV que asseguraram o melhor programa público de tratamento contra a Aids do mundo. Esse é um mérito de um movimento social, baseado num amplo conceito de direitos humanos, do qual alguns partidos insistem em intitular-se como autores.

A imprensa não mostrou que essa segunda edição do FSM se pautou por um novo e amplo conceito de direitos humanos, que inclui economia, sociedade e cultura, denominados Desc (Direitos econômicos, sociais e culturais), tema incorporado pela ONU. Os movimentos diversos presentes comprovaram que estão, sim, trabalhando para que, por exemplo, a jurisprudência internacional considere direitos humanos básicos fatores como alimentação e acesso à cultura. Nas conferências, esses grupos debatiam como criar mecanismos que obriguem os governos a respeitar os direitos humanos nesse conceito ampliado de Desc.

Um dos seminários reuniu, numa mesma sala, integrantes do Movimento Separatista Basco (que fizeram questão de serem registrados no Fórum como bascos, e não como espanhóis, e foram acusados por alguns de pertencerem ao movimento separatista ETA), ativistas venezuelanos, cubanos, noruegueses, chilenos, indianos e até da pequena Guiana Francesa. Gente que falava uma única língua: a da necessidade da autodeterminação dos povos, a de desenvolver-se sobre sua própria concepção e cultura. Antton Mendizabal, de um sindicato basco que reúne 16 categorias profissionais na Espanha, viu uma certeza: "Há um acúmulo de energias impressionantes contra o imperialismo." Ele acredita que os bascos não são contra a Constituição européia, mas que lutam para que ela seja verdadeiramente democrática, garantindo o direito à autodeterminação.

É a América e a Europa falando a mesma língua! "O único país da América Latina que pode dizer que tem autodeterminação é Cuba", disse uma ativista cubana, que não tinha nada de guerrilheira louca, e muito de representante do potencial cubano de se organizar. Claro que os retratos de Che Guevara estavam lá, na feira de artesanato multicultural, mas os relatos de experiências de novas formas de fazer a economia local em contraponto à única alternativa imposta, a do neoliberalismo, evidenciaram que o FSM acontece no momento histórico certo.

Se ainda há dúvidas, basta analisar os fatos recentemente divulgados como escândalo pela imprensa. O caso do maior banco da Irlanda e da conceituadíssima empresa americana Enron caíram como luvas perfeitas, como exemplo atual de que falharam todos os instrumentos do capitalismo: os investidores estão apavorados porque foram enganados por balanços financeiros maquiados. Os capitalistas selvagens estão se autodevorando! Mais essa para justificar a precisão histórica desse fórum. "Precisamos lutar contra a entrada desregulada de capitais nos países, devemos reconhecer o direito de nos proteger contra o fluxo de capitais", argumentou Dominique Plihon, representante da Attac francesa, uma das organizadoras do fórum. A Associação pela Taxação das Transações Financeiras em Apoio aos Cidadãos (Attac) é uma ONG que tem origem na França, com núcleos em vários países, inclusive o Brasil.

Observatório Mundial da Mídia

Dominique falou sobre uma medida já adotada na França, para controlar a especulação e o fracasso das finanças mundiais, criando uma taxa global para as empresas multinacionais, que devem ser controladas pelas autoridades locais do país em que a empresa foi instalada. "O próprio artigo sexto do estatuto do Fundo Monetário Internacional (FMI) prevê que os países devem impor o controle de capitais, mas não o fazem. O planeta continua com uma política que confia nos bancos, escondendo paraísos fiscais", sentenciou Reinaldo Gonçalves, economista da União Nacional dos Auditores Fiscais (Unafisco), que participou do seminário "A reforma dos ricos e o conflito distributivo". Atualíssima colocação da Attac e da Unafisco, já que nos últimos 150 anos da história do Brasil, nunca se cobrou tantos impostos, nunca o gasto com os juros estiveram tão altos e nunca a dívida pública esteve também tão alta ? hoje comprometendo 60% do PIB nacional.

Ficou evidente que cidadãos do mundo todo estão desenvolvendo barreiras contra a ressaca neoliberal, criando uma contra-ideologia diária que pode se contrapor ao modelo de desenvolvimento dominante. Eles, os 51.300 participantes do FSM, vieram de cantos e lutas distantes, reunindo todas as lutas revolucionárias, vitoriosas ou não, que, segundo alguns historiadores, devem pouco às influências dos partidos comunistas latino-americanos, que tiveram reduzidos seus espaços políticos após a desaparição da União Soviética. Portanto, não se trata de um movimento "partidário, de novos comunistas ou de petistas", como quiseram argüir alguns.

Viu quem esteve lá quem são esses novos rostos contra-revolucionários, representados nesse fórum. O escritor português José Saramago foi mal-interpretado por alguns quando deu um honesto chacoalhão na nova militância mundial. "O eleitor poderá tirar do poder um governo que não lhe agrade e pôr outro no seu lugar, que o seu voto não teve, não tem, nem nunca terá qualquer efeito visível sobre a única e real força que governa o mundo, e, portanto o seu país e a sua pessoa: refiro-me, obviamente, ao poder econômico. Todos sabemos que é assim, e contudo, por uma espécie de automatismo verbal e mental que não nos deixa ver a nudez crua dos factos, continuamos a falar de democracia como se se tratasse de algo vivo e actuante, quando dela pouco mais nos resta que um conjunto de formas ritualizadas."

Que ninguém se esqueça disso, Saramago, mas, esclareceu bem o companheiro boliviano de Che Guevara Osvaldo Peredo, quando disse: "Não existe outro terrorismo, senão o de Estado". Ou, melhor ainda, quando disse Francisco de Oliveira, sociólogo aposentado da USP: "Precisamos cuidar para não eleger os verdadeiros inimigos do povo, que podem exercer uma tirania vestida de normalidade." Mais oportuno ainda estava o jornalista Mino Carta, no seminário "Globalização e comunicação", quando lembrou o pensador italiano Gramsci: "Um pouco de ceticismo não faz mal a ninguém, temos que ser pessimistas porque a natureza humana é o que é, mas temos que ser otimistas na ação."

Jornalistas de diferentes países lançaram a proposta de criação de um Observatório Mundial dos Meios de Comunicação, organizado numa rede internacional de ONGs, universidades e associações de jornalistas. O Observatório analisaria as informações que são divulgadas aos cidadãos. Também serão estudados os conteúdos e as estruturas das notícias, evitando o bloqueio da fluidez das informações. Podemos acompanhar por vias alternativas, nos sites nacionais da agência de notícias Carta Maior <www.agenciacartamaior.com.br>, revista Caros Amigos <www.carosamigos.com.br), Le Monde Diplomatique <www.diplo.com.br), Veraz Comunicação <www.veraz.com.br>, Agência Latino-Americana de Informação (Alai) <www.alainet.org> e no projeto Ciranda de cobertura alternativa <www.ciranda.net/publique>.

(*) Jornalista; e-mail <namastee@ig.com.br>