NOTAS DE UM LEITOR
Luiz Weis
Na quinta-feira, 29/5, a Folha de S.Paulo ocupou praticamente todo o seu espaço mais nobre ? a área da primeira página acima da dobra ? com o tipo de notícia do qual já se disse que é um convite para o leitor largar tudo e se enfiar debaixo das cobertas.
Precedendo a manchete "Desemprego em SP bate recorde e atinge 20,6%", um quadro com dois deprimentes títulos de chamadas, separadas por uma ilustração alusiva a ambos, informava, primeiro, que "Para Anistia, mundo ficou mais perigoso com guerra ao terror" e, segundo, que "Violência no Brasil é como a de zonas de guerra, diz relatório" (o levantamento anual, referente a 2002, da Anistia Internacional sobre violações de direitos humanos no globo).
A manchetona ainda vinha escoltada por dois gráficos ? um, sobre a evolução da curva do desemprego; outro, sobre o não menos acabrunhante desempenho da economia, com a previsão do IPEA de variação nula do PIB no primeiro trimestre do ano em relação ao anterior. (Foi até pior, se noticiaria no dia seguinte: ?0,1%).
Já o Estado de S.Paulo, principal concorrente da Folha, ignorou na capa o documento da Anistia Internacional e murmurou, em chamada de uma coluna e nove linhas, logo abaixo da dobra, que "Desemprego e queda na renda batem recorde" (a questão da renda não foi mencionada pela Folha). Na manchete de fora a fora, o Estado preferiu destacar que "Fiesp quer mudar a reforma tributária" ? o que o resto da imprensa tratou com muito menos alarido.
As duas capas foram só o começo de um formidável contraste que se propagou nas páginas internas e deveria servir de exemplo em cursos de jornalismo sobre como dois dos maiores jornais brasileiros escolhem dar más notícias aos seus leitores.
No caso do relatório da Anistia, a Folha deitou e rolou. Exceto por um box sobre moção do Senado de repúdio a Cuba (cuja pobreza foi apropriadamente criticada pelo ombudsman na edição de 1/6), o assunto ocupou toda a capa do caderno Mundo: três matérias e um infográfico de primeira, descrevendo e localizando num mapa-múndi as barbaridades apontadas pelo relatório da mais respeitada organização de defesa dos direitos humanos.
E mais: no topo da ímpar seguinte, o capítulo brasileiro do documento, que compara a violência no país à situação em Israel e nos territórios palestinos ocupados, incluindo duas entrevistas com o pessoal da Anistia e o "outro lado", a visão do governo federal.
No Estado, o relatório mundial da Anistia Internacional rendeu apenas desnutridas 36 linhas, como submatéria da viagem de Bush ao Oriente Médio. No pé, depois de um burocrático entretítulo "Brasil", sete linhas liquidam o problema. Na Folha, para se ter idéia, foram 150 (só para o Brasil).
Proporcionalmente, a diferença foi quase a mesma no tratamento da matéria sobre o desemprego (e mazelas da economia brasileira em geral). Na Folha, capa do caderno Dinheiro e a parte do leão de três outras páginas. (No dia seguinte, quando saiu o número oficial da queda do PIB, matérias sob as retrancas "Remédio amargo" e "Ano do dragão" apareceriam em 7 das 12 páginas do caderno.)
No Estadão, os recordes de desemprego e queda na renda da população ocupada na Grande São Paulo ficaram com a metade útil (descontados os anúncios) de uma página da Economia.
Vá lá que a Folha seja "catastrofista" em geral e em relação à economia brasileira em especial (tendo clamado, em vão, pela queda dos juros, em editorial de primeira página). E vá lá que os relatórios da Anistia são a treva pura de sempre. Ainda assim, por causa do princípio segundo o qual, sendo sério o assunto, antes o excesso do que a escassez na cobertura de imprensa, naquela quinta-feira a Folha deu muito mais ao leitor pelo seu dinheiro do que o Estado.
Já faz um bom tempo que a imprensa brasileira se acostumou a ouvir acadêmicos e outros especialistas em matérias que pedem um enfoque mais elaborado, capaz de dar perspectiva ao mero relato dos fatos.
O recurso, no entanto, pode desservir o leitor em duas circunstâncias: Na primeira, quando o analista e suas palavras são escolhidos a dedo para avalizar um ponto de vista já consagrado na pauta da matéria ? como é costume na Veja. Na segunda, quando a reportagem fica rendida às opiniões (discutíveis) de um único douto.
Foi o que aconteceu com a de outro modo excelente matéria de César Felício, "À sombra do poder, CUT devolve comando aos metalúrgicos", sobre a eleição do novo presidente da entidade, Luiz Marinho. Em três blocos (um deles de autoria de Débora Gueterman), a história ocupa toda a última página do primeiro caderno do Valor (30/6).
Para tratar de um aspecto central do tema ? as relações políticas entre a CUT e o governo Lula ?, o repórter entrevistou o professor de Sociologia do Trabalho da Unicamp Ricardo Antunes, que, para efeitos de comparação, recupera as relações entre o movimento sindical pré-1964 e o período João Goulart.
Sugere o professor em dado momento, numa frase sem aspas, que no governo Goulart o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT) pautava as ações do presidente e agora acontece exatamente o contrário em relação à CUT.
Será? Há quem, entendendo também do riscado, diga que, na era do peleguismo, os sindicatos eram pautados pelo governo (e que só o tempo dirá se o governo Lula pautará a CUT).
O repórter comprou a versão da História que o sociólogo lhe vendeu. Devia ter ouvido mais um ou dois especialistas. Nada do outro mundo: mal comparando, uma recente matéria sobre secura de pele, na Folha, ouviu três dermatologistas.
Não foi o primeiro caso e decerto não será o último. O que não torna menos desrespeitoso ao leitor o fato de uma publicação tratar como notícia, mascarando o seu caráter de informe publicitário, as suas promoções comerciais para aumentar a venda avulsa.
Foi o que a Folha fez com o seu anúncio, no alto da primeira página da edição de domingo (1/6), sobre o lançamento, a partir do domingo seguinte, de uma coleção de 30 "dos mais célebres romances do século 20". Os livros serão vendidos em banca, junto com o jornal, por preços variáveis conforme o Estado.
Além do chamadão de capa, o informe publicitário ? denominado "Página Especial" ? entrou na edição como um atraente caderno de quatro páginas, sobre as obras e os autores, terminando com o apelo literário do colunista José Geraldo Couto, "Por que ler os contemporâneos".
Tudo muito bom, tudo muito bem. Mas matéria é matéria, publicidade é publicidade ? e é indesculpável publicar uma coisa como se fosse outra.
Domingo os italianos ficaram sem o Corriere della Sera, fundado em 1876, por causa de uma greve dos seus jornalistas em protesto contra as pressões que levaram o editor-chefe Ferruccio de Bortoli a se demitir. A "intimidação", conforme texto publicado pela equipe na quinta-feira, 29/5, vem "da esfera governamental".
Era a retaliação apenas previsível do primeiro-ministro Silvio Berlusconi à linha cada vez mais crítica do Corriere ao seu governo. Berlusconi, dono das três maiores redes privadas de TV na Itália e controlador político dos três principais canais públicos, vem tentando safar-se de um processo por corrupção de juízes. O Estado de 30/5, que imprime o Corriere no Brasil, publicou boa matéria da AP sobre o caso.
Outra história de amargar, que a imprensa brasileira deu direito, foi a da aparente armação contra outro centenário matutino, desta vez o La Nación, de Buenos Aires, fundado em 1870. Uma juíza, conhecida por suas boas relações com o ex-presidente Carlos Menem, mandou fazer uma blitz, sem aviso prévio, nos escritórios do jornal.
O pretexto foi um artigo anônimo no desacreditado El Guardián acusando o La Nación de lavagem de dinheiro. O verdadeiro dono do El Guardián seria um ex-banqueiro que já andou fugido da Justiça e é amigo pessoal de Menem. Este estaria querendo comprar, na bacia das almas, um La Nación levado à UTI.
O ex-ministro das Comunicações no governo Fernando Henrique, Luiz Carlos Mendonça de Barros, deu uma de Maria Conceição Tavares (sem os palavrões) numa entrevista de página inteira ao editor de Brasil da Folha, Fernando de Barros e Silva, publicada em 27/6.
Nela, o presidente do instituto tucano que leva o nome do ex-ministro Sérgio Motta soltou os cachorros contra o PT e o PSDB. Entre os pecados do primeiro está o de querer uma reforma da Previdência "mais conservadora, mais arraigadamente fiscalista e socialmente mais injusta" do que a do governo anterior. O PT também teria transformado a agenda social em um "blefe publicitário", pegando "justamente aquele [programa] que já não servia nem mais ao PSDB?" E o partido tucano, no seu entender, "sofreu o mesmo cerceamento do debate que hoje marca o PT", em benefício do que ele costuma chamar "malanismo".
"Mendonção", como o economista é conhecido, é um polemista de mão-cheia e desenvolta oralidade. Embora nenhum dos dois goste da comparação, equivale, com sinal trocado, ao "Gustavinho" ? como éacute; conhecido o ex-presidente do Banco Central, Gustavo Franco.
A Folha deu-lhe o espaço merecido (embora ele já escreva no caderno Dinheiro do jornal toda sexta-feira). A entrevista também merecia (e não obteve) chamada de capa, ocupando as 13 linhas dedicadas ao projeto da nova Constituição da União Européia, a anos-luz de distância do interesses do leitor.
O problema é que em nenhum momento o entrevistador contesta ou cobra seja lá o que for do entrevistado. O pingue-pongue tem nove perguntas e respostas. Em pelo menos igual número de passagens, Mendonça de Barros foi poupado de dizer o que ele tem a contrapor ? propositivamente, como dizem os petistas ? aos erros que vê nas políticas alheias.
Lula, diz, ele, poderia ter proposto uma reforma do Estado. De que tipo e com que meios?
Se, como ele diz, ninguém sério advoga a irresponsabilidade fiscal ou flerta com a inflação, quais seriam as alternativas que concebe para acabar com "o terceiro tempo do malanismo"?
E mais: como "equacionar o problema da Previdência", como "pensar numa maior racionalidade fiscal", como "decretar uma espécie de estado de emergência social", como elaborar outro projeto de reforma tributária para o Brasil ficar "mais competitivo na economia e mais justo socialmente"?
Nem quando Mendonça compara o que o entrevistador denomina "expurgo dos chamados radicais do PT" a nada menos do que "uma reedição cabocla, absurda, mesquinha dos Processos de Moscou" (que serviram para Stálin tomar conta do PC soviético, mandando matar todos os seus adversários reais ou fictícios) a entrevista se detém ? como se a analogia fosse a coisa mais plausível do mundo.
A leniência da mídia brasileira com os seus entrevistados não tem nada de novo. Sirva de consolo o fato de não ser uma exclusividade "cabocla", como diria Mendonção. Por exemplo: na edição de 30/5, o New York Times publica uma matéria sobre os conflitos entre o Pentágono e o Departamento de Estado. A matéria se fundamenta essencialmente em entrevistas com os segundos dos secretários Rumsfeld (Paul Wolfowitz) e Colin Powell (Richard Armitage).
Às tantas, Wolfowitz argumenta que "é conveniente para outros dizer que há rachas [entre as secretarias] porque isso poderá servir a seus próprios propósitos". Que outros e que propósitos, nem perguntar.
Ensurdecedor silêncio se segue também à prenhe declaração de Wolfowitz de que as divergências sobre a política americana em relação ao Irã se limitam a "descobrir como usar a abertura proporcionada pelo fato de muitos iranianos não estarem felizes com o seu governo".
Ponto para o Valor pela pauta e o resultado da reportagem original "Ninguém cumpre a lei de transgênicos", de Raquel Landim e Sérgio Bueno (29/5, página B 8). A lei são duas: a MP que liberou a venda da soja transgênica da última safra e o decreto sobre a rotulagem de transgênicos. A MP tem dois meses. O decreto, um mês.
Logo na chamada de capa, a matéria diz a que veio, usando a palavra "não" com maestria. "Com a colheita da safra encerrada e mais da metade dela comercializada", se lê, "as cooperativas não segregaram o grão, as esmagadoras não rotularam os produtos e o governo ainda não decidiu como fiscalizar o cumprimento das normas".
Dentro, uma aspa de dar gosto, de um dirigente do setor: "Há uma gentileza dos órgãos reguladores, que compreendem que a iniciativa privada precisa de um tempo para se adaptar". E um box com a essência das regulamentações descumpridas, sob o título "Para inglês ver".
Danny Schechter, editor do site Mediachannel.org, está preparando um livro sobre o desastre que foi a cobertura da mídia americana (e em menor escala, inglesa) da guerra no Iraque. Terá o título Weapons of mass deception (Armas de enganação em massa).
Em artigo no dia 30/5, ele assina embaixo das conclusões do International Press Institute de que em muitas das matérias dos cerca de 3 mil jornalistas que cobriram a guerra "a propaganda, o viés e a desinformação prevaleceram sobre a informação precisa e relevante". E acrescenta que a docilidade da mídia gerou um noticiário para ser crível mesmo quando não era.
"Quando os historiadores começarem a construir a verdadeira história dessa guerra, pode-se prever com segurança de que eles acusarão a mídia junto com o governo americano", escreve Schechter. "No melhor dos mundos possíveis, haveria uma investigação sobre os crimes desta guerra. Um tribunal para crimes de mídia deveria acompanhá-la."
A Folha de S.Paulo deu uma página inteira do caderno Dinheiro da edição de 1/6 ao que três astrólogos (duas mulheres e um homem) acham da situação da economia brasileira. Uma delas é irmã do ex-ministro Mendonça de Barros [leia, sobre o mesmo assunto, o artigo "O céu que nos engana", na rubrica Ciência desta edição do OI].
Sem o mais remoto vestígio de ironia ou ceticismo, a reportagem registra as "análises" e "previsões" desses beneficiários da crendice alheia. Exemplos:
** "Os juros continuarão altos porque, de junho até agosto, Júpiter transitará em oposição a seu ascendente (…), fazendo com que o governo adote medidas impopulares na área financeira."
** "A Bolsa de São Paulo poderá ter uma forte queda nesta terça-feira, quando Marte fará uma quadratura com Vênus e Mercúrio, simultaneamente."
** "Os homens fortes do governo (…) devem ficar de olhos bem abertos. Um deles deverá cair em dezembro ? e tudo indica que será o ministro da Fazenda, Antonio Palocci Filho (…)".
Chamem o Procon.