Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Como fazer um assalto bem-sucedido

NOTÍCIA OU CUMPLICIDADE?

Daniela Lepinsk (*)

Em reportagem divulgada há duas semanas, a TV Globo mostrou a mais nova manobra dos assaltantes para levar o dinheiro dos cidadãos que freqüentam caixas eletrônicos. O golpe, fácil de ser aplicado, foi detalhado na matéria. Após a reportagem, qualquer criança poderia montar o trambique. Coincidentemente, na noite anterior, autoridades comentavam em Cuiabá justamente que a mídia ensina o tempo todo como praticar crimes. Onde contratar um pistoleiro, como conseguir uma arma, quais as estratégias que mais funcionam, como contrabandear armas, celulares e drogas para dentro dos presídios etc.

Fica a pergunta: será que é realmente necessário darmos tantos detalhes?

Vejo, a princípio, três linhas de argumentação favoráveis à divulgação irrestrita dos fatos:

1.O interesse do leitor/espectador: tais matérias chamam a atenção, não há como negar. "Vendem" bem, portanto, como tudo que é diferente, grotesco ou escandaloso. "Dissecar" o mundo do crime dá às pessoas aquela sensação de superioridade, de quem conhece como as coisas funcionam. É preciso, no entanto, analisar a utilidade real dessas informações. Divulgar o fato é uma coisa, fazer alertas é necessário, mas qual o objetivo de transformar uma reportagem num kit faça-você-mesmo para assaltos, assassinatos, falsificações?

Logo após os atentados do 11 de setembro contra os EUA, Jô Soares recebeu em seu programa um engenheiro especialista em controle de tragédias. Em dado momento da entrevista ? interessantíssima, por sinal ? o engenheiro comentou que havia meios de driblar o uso das cabines de comando blindadas nos aviões. "Como?", perguntou Jô, ao que o entrevistado respondeu: "Por favor, não me peça para dar exemplos em rede nacional". Mesmo assim, Jô Soares insistiu tanto que ele acabou falando sobre um método, sem entrar em detalhes. Se aquilo enriqueceu de alguma maneira a entrevista, a resposta é não.

2.O fato de que os criminosos já conhecem as informações, ou seja, o esclarecimento não faria mal a ninguém. A afirmação é questionável, pois a ocasião também faz o ladrão, o assassino, o traficante. A impunidade que impera no país já é incentivo mais que suficiente para os interessados em ganhar a vida de formas pouco ortodoxas. O assaltante que aborda usuários à saída do caixa eletrônico vai se sentir bem mais seguro usando o método divulgado pela matéria da Globo, sem confrontos, sem risco de reação…

3.A liberdade de informação. Essa bandeira tem servido como justificativa para todo tipo de absurdo veiculado em reportagens. Nada contra: defendo a liberdade de informação incondicional, mas um pouco de bom senso não faz mal a ninguém. É o velho ditado: não confundam liberdade com libertinagem. Se a informação não é indispensável para o bom entendimento da matéria, será realmente necessário divulgá-la, somente pelo fato de que isso é permitido?

Liberdade implica responsabilidade ? quem não ouviu isso dos pais centenas de vezes na adolescência? Pois é, às vezes eles estão certos. O uso da informação se desvia de seus objetivos sociais quando a liberdade descamba para a leviandade. Tudo é informação. É preciso, no atropelo da hora do fechamento, manter o pensamento suficientemente centrado para definir quais informações, das que colhemos ao longo da apuração, são notícia e quais serão arquivadas em nosso banco de dados pessoal.

Ah, faltou contar como era o golpe no caixa eletrônico…

Quer saber? Liga pra Globo.

(*) Jornalista em Cuiabá e coordenadora do boletim semanal Imprensa Ética; e-mail: <arlaarla@terra.com.br>