Tuesday, 24 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Como o diabo na roda

JORNALISMO & PUBLICIDADE

Luciano Martins Costa (*)

O fim deste ano esquisito ? em que um metalúrgico do ABC, "pau-de-arara", assume a presidência da República e recoloca o Brasil na imprensa internacional, com manchetes  positivas e otimistas, juízes e policiais vão para a cadeia, às dúzias, juros caem para fora das tabelas do Banco Central e uma reforma tributária há duas décadas engavetada começa  a sair à luz ? promete um pouco mais de estranheza para nós, jornalistas.

É como se estivéssemos acertando as contas de algumas antigas questões, sobre as quais temos passado soberbamente, como se não nos dissessem respeito. Uma delas, que nos últimos dias tem movido corações e mentes: o jornalista pode emprestar seu prestígio e credibilidade para atuar como garoto-propaganda de bancos ou de meias de nylon? Outra delas: é correto reproduzir conteúdo informativo retirado de escuta telefônica, mesmo quando autorizada pela Justiça? Podemos/devemos dar curso a exteriorizações emocionais de um pai que acaba de perder a filha de forma trágica, sem mais ponderações? Devemos/podemos interpretar tais manifestações como fundamento para o debate sobre como tratar a criminalidade?

Pois no momento mesmo em que alguma luz se acende no fundo do poço em que se enfiou a imprensa nacional, com certa perspectiva de melhoria nas condições do negócio em si, acabamos de ser apresentados a outra faceta de nossa crise: a da nossa aparente incapacidade de lidar com questões que em passado recente eram para a maioria dos jornalistas muito simples e claras.

Naquele tempo, quando um dos personagens de nossas querelas atuais ? o ex-bóia-fria Joelmir Beting ? integrava a chapa cutista que disputava a direção do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo, misturar jornalismo com propaganda não era prática tida como aceitável. Jornalismo e propaganda, embora partilhando o mesmo veículo, sempre foram vistos como áreas de interesses conflitantes e complementares. Se um valoriza o veículo, a outra o torna viável como negócio. Um e outra se regem por códigos assemelhados, mas estanques. E não se pode ignorar a distância que vai da propaganda ? que se auto-regula ? ao jornalismo, que se regula por um jogo de pressões, cujas forças podem conduzir um profissional num espectro de riscos que vai do desemprego à morte por assassinato.

Exemplo de jornalista

O respeito a essas naturezas diversas tem sido a receita que equilibra finanças e credibilidade na mídia. A mistura entre essas duas práticas nos lança em confusão. Estamos como o diabo na roda.

Joelmir Beting acumulou, desde que largou a enxó, uma poupança de credibilidade e simpatia da qual poucos profissionais podem se orgulhar. No entanto, Joelmir fez uma escolha que nos coloca numa equação sem uma solução confortável. Sua coluna foi eliminada das páginas dos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo, por ele haver aceitado fazer propaganda do banco Bradesco. Sua resposta à decisão dos jornais, oferecida em dois tempos [veja remissões abaixo], torna ainda mais patética a situação. Em ambas oportunidades, ele nos oferece uma interpretação reducionista do fato.

Na sua primeira reação, sob o título "Posso falar?", Joelmir se assombra com o questionamento ético a que se viu submetido em função de sua escolha. Reage questionando a ética das empresas jornalísticas ? o que em nenhum aspecto ajuda nossas reflexões ?, e estranhando a repercussão do fato entre os colegas, como se não fosse ele uma celebridade influente e, há muitos anos, exemplo para milhares de jornalistas.

Segue no mesmo tom em sua  segunda manifestação, no site Comunique-se <www.comuniquese.com.br>,  na qual afirma que a ética do jornalista é a ética da sua consciência, enquanto a ética do jornal é a ética da conveniência.

Relato contábil

Joelmir errou? Para afirmar que Joelmir errou, pode-se, por exemplo, ouvir um representante de outro banco, concorrente do Bradesco, ao qual o jornalista havia prestado há pouco tempo serviços como palestrante. "Não sei se é ciúme ou despeito, mas de hoje em diante vou ler o que ele escreve com certa reserva", disse a este observador um executivo de outro grande conglomerado financeiro nacional. Depois de confessar que gostaria de ter sido seu banco a instituição honrada com a chancela publicitária de Joelmir, o executivo acrescentou uma variável à equação com que nos defrontamos: "Imagine o Elio Gaspari participando de uma campanha eleitoral do PFL. Você leria a coluna dele do mesmo jeito na manhã seguinte?" ? equação solucionada, cqd.

A questão, porém, não se isola por aí. Ao contrário, voltamos ao princípio da roda, ou no ponto onde a tomamos: quais são nossos direitos de crítica sobre as escolhas de Joelmir Beting, se o efeito de suas ações, na conta de benefício ou prejuízo, recai principalmente sobre ele mesmo? O possível dano causado à imagem do jornalista Joelmir Beting será compensado pelo resultado que o contador da empresa Joelmir Beting irá apresentar no fim deste ano?

Atoleiro da confusão

A propósito, vá à área de busca dos sites que oferecem relações de jornalistas e você irá encontrar o nome Joelmir Beting classificado como empresa de comunicação. A empresa Joelmir pode fazer palestras remuneradas, pode animar auditórios e honrar a propaganda. O jornalista Joelmir Beting pode participar de passeatas. Mas, como já disse o esperto Wanderley Luxemburgo, "uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa". Ou seja, uma coisa é o jornalista Joelmir Beting se sentir confortável com sua consciência. Outra coisa é como iremos ler uma coluna em que o jornalista Joelmir Beting faz uma referência menos edificante a um banco concorrente daquele que contratou os serviços de propagandista da empresa Joelmir Beting.

A atriz, modelo, socialite e apresentadora de TV Marília Gabriela, jornalista na origem, também faz propaganda, e já apresentou na TV um suposto gerente do Unibanco como uma de suas "fontes". Mistura de papéis ainda mais explícita do que o caso de que tratamos aqui. Mas Joelmir não é Marília Gabriela. Ou, pelo menos, o papel que ele interpreta na mídia é o de jornalista em tempo integral, enquanto a jornalista Marília Gabriela parece cada vez mais uma personagem recorrente da atriz Marília Gabriela.

Além disso, as metáforas de Joelmir produzem decisões de negócios. Essa foi sua plataforma de lançamento e essa é a base de sua credibilidade. A interpretação do leitor estará irremediavelmente vinculada ao novo fato, e não apenas ao que considera as qualificações do articulista? Ou estamos, também sem remédio, atolados nesta confusão entre talento e celebridade, entre jornalismo e entretenimento, entre sociedade e mercado?

Luz alguma

Joelmir nos informa que acaba de receber proposta da Agência Estado para refazer seu contrato, "em condições vantajosas". Reafirma que se trata de vínculo contratual de pessoa jurídica com pessoa jurídica. "Sem grilo", garante. Ora, se ele não tem "grilos" com relação a isso, se consegue repartir sua personalidade em duas ou mais ? blindando cada uma delas com sua própria ética ?, quem somos nós, pobres mortais, que mal conseguimos nos equilibrar na frágil circunstância do ser jornalista, para lhe dizer o que é certo?

Pesquisa feita pelo site Comunique-se aponta que uma maioria de mais de 60% condena a mistura de jornalismo e propaganda. Joelmir nos dá conta de haver recebido a solidariedade de "uma baciada de manifestações (…) de jornalistas, publicitários, empresários de mídia, executivos, políticos, acad&ececirc;micos, estudantes e leitores em geral". [Na urna eletrônica deste Observatório (edição n? 250, 11/11/03), ainda antes do caso Joelmir, à pergunta "O jornalista perde credibilidade ao fazer anúncios comerciais?", 79% (582) dos leitores responderam "sim" e 21% (151), "não" ? num total de 733 votantes.]

Com que verdade  ficamos? Trata-se de uma questão ética, ou de mera etiqueta? A opinião dos leitores do Comunique-se, do OI ou a baciada de Joelmir? Está claro que, tomado como conceito, o assunto do conflito de interesses parece claro para uma ampla maioria (quase 80%, neste Observatório), e, quando se envolve uma figura bem reputada como a de Joelmir, boa parte das opiniões se afrouxa. Daí a responsabilidade ainda maior dos jornalistas que, ao atingir o auge da carreira, tornam-se também os fiéis na balança das reflexões e paradigmas de um códice que, refém do mercado de sucessos, se apresenta tão mais fluido quanto menos ético. A opinião de publicitários, empresários de mídia e políticos não ilustra este que é um caso de foro muito nosso, muito íntimo, do qual não podemos, como profissionais, abrir mão: há, sim, uma ética dos jornalistas, e ela se estende para muito além da consciência de cada um.

Assim como a ética do médico se refere ao trato com o paciente e não se condiciona aos padrões de transparência e correção da administração hospitalar, a ética dos jornalistas se refere ao trato com o leitor, e não deve ser confrontada pelas escolhas de negócio da empresa de comunicação.

Muito do barulho que se produziu em torno do episódio nasce, na verdade, do carisma de Joelmir. É proporcional ao tamanho de sua popularidade e da admiração que tem inspirado em gerações de jornalistas. Como diz a raposa ao "Pequeno Príncipe", segundo Saint-Exupéry, "tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas". Em paz com suas consciências, Joelmir seguirá repetindo suas sonoras metáforas para dizer aos leitores de dezenas de jornais, Brasil afora, como anda a economia; muitos publicitários seguirão tentando absorver para seus anúncios a credibilidade dos conteúdos editoriais e os políticos seguirão atentos à oportunidade de bajular celebridades e formadores de opinião.

Tudo isso está na ordem natural das coisas. O que está fora de ordem, e que nos mantém como o diabo na roda, é que um número tão expressivo de jornalistas esteja se distanciando da natureza de seu trabalho. O que nos lança nessa confusão de conceitos é o fato de grande número de jornalistas não saber exatamente de que se trata sua profissão, tornando-se dependentes das escolhas daqueles que consideramos bem sucedidos para definir nossos próprios paradigmas. Com certeza, uma maioria de 60 contra pouco menos de 40 (de acordo com  a sondagem do Comunique-se), em qualquer lado de uma pendenga que envolva ética, contribui mais para aumentar a escuridão do que para lançar alguma luz na nossa questão.

(*) Jornalista

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