ADÃO, EVA & CIA.
Alberto Dines
Na infindável competição com Deus, o ser humano sempre tentou fazer algo interditado: criar um ser vivo e pensante. As histórias sobre os “monstros” criados pela inteligência humana permeiam (há um milênio pelo menos) a astrologia, superstição, folclore, esoterismo e a ficção científica. O Dr. Frankenstein e o Golem de barro são exemplos desta tentação de montar seres sobrenaturais.
A mais recente invenção antropomórfica saiu dos laboratórios de Dona Mídia com o nome de Sr. Mercado. Ao contrário do Livro do Gênesis, onde Eva foi feita da costela do onipotente Adão, aqui ele é fruto da inconseqüência de Eva.
Ela badala e ele colhe os frutos da badalação. Juntos mexem com destinos, enfrentam governos, atuam sobre a sociedade, atrasam a história, derrubam as ciências sociais, avacalham partidos e ridicularizam a inteligência.
O Sr. Mercado está nas manchetes de D. Mídia e assim será para todo e sempre porque ambos se beneficiam. E, sobretudo, porque a dinâmica da simplificação vence qualquer esforço racional para contê-la.
O que faz o Sr. Mercado?
Fatura nas transações de compra e venda de ações, moedas, mercadorias, juros, futuros. Poderia fazê-lo sozinho? Impossível: D. Mídia é insubstituível. Afirma algo e sai correndo para confirmar, caso contrário perde a credibilidade. Juntos, disparam e despencam cotações, classificam e desclassificam, fazem tendências, desfazem expectativas, atravancam os fundamentos da economia, confundem a econometria, driblam estatísticas, sacodem instituições, estupram a República, exageram no risco e derrubam a auto-estima-país. Querem o desenvolvimento mas são intrinsecamente regressivos.
Quem criou o Sr. Mercado? D. Mídia. Quem segura D.Mídia? O cavalheiresco Sr. Mercado.
O Sr. Mercado foi criado pela preguiça de D. Mídia. Com a inestimável ajuda da pauta, divindade pouco conhecida porém onisciente ? sabe de tudo antes mesmo que algo aconteça. “Quero saber o que pensa o mercado”, determina o chefão. Mas como o mercado não pensa, nem existe, o pobre jornalista vê-se obrigado a tirar o fone do gancho para bate um papo com o Sr. Mercado por intermédio de um, dois ou três dos seus representantes.
O Sr. Mercado foi gerado pela noção de que D. Mídia precisa saracotear, não pode ficar quieta fazendo o que se espera dela. D. Mídia adora decibéis, precisa “fazer barulho” e o faz graças à mecânica dos títulos: não precisam refletir a realidade basta dar a impressão de novidade.
Não pode ser esquecido que o Sr. Mercado é muito condescendente com as mumunhas entre D. Mídia e algumas amigas, as tais fontes, nem sempre desinteressadas. Em compensação, fecha os olhos quando analistas, operadores e investidores, por recato ou modéstia, escondem os respectivos nomes e falam com a voz grossa do Sr. Mercado, para a felicidade de D. Mídia, que assim pode oferecer ao companheiro os holofotes do estrelato.
Como atua o amantíssimo casal?
Uma jogada é pintada como “tendência”, outra camuflada como “humor”. Se os operadores estão “comprados” precisam vender com lucro, se “vendidos”, querem comprar por um preço baixo. O casal dá um jeito. Importante é confundir incautos apresentando as mesmas pessoas ora como “investidores”, ora como “especuladores”. Ninguém fica sabendo quem é quem.
O Sr. Mercado não é pessoa física ou jurídica, não tem humores, escrúpulos, preferências. É uma ficção inventada pela diligente companheira D. Mídia que, embora mencionada na Constituição, também é um ente abstrato.
Ao contrário dos robôs (que obedecem às ordens dos amos), o Sr. Mercado dá as ordens e D. Mídia, hipnotizada, as confirma no dia seguinte graças a um dispositivo ultra-secreto, que converte o que é noticiado em verdade e o que não aparece, como inexistente.
O Sr. Mercado e D. Mídia dão-se muito bem. Ele faz o que quer, ela finge que não vê. Ela parece alerta quando ele já escafedeu-se com as burras cheias.
No ano passado, com a Enron, D. Mídia nos convenceu que o Sr. Mercado nunca mais aceitaria a exibição de travesti, como a Arthur Andersen, que funcionava de dia como auditora e, de madrugada, como consultora. No escuro fajutava as contas e, ao sol, propunha soluções para a fajutagem.
Na semana passada, o J.P. Morgan não resistiu à tentação e apresentou-se também como travesti: num andar é agência classificadora, em outro, mais embaixo, faz investimentos com base nas classificações. Que, obviamente, conhece por antecipação.
Como mandar o Sr. Mercado para o devido lugar e manter D. Mídia cuidando da cozinha ? Simples:
** Retirar da lista negra os nomes próprios e, em seu lugar, colocar palavras. Mercado está terminantemente proibido de aparecer no singular, doravante terá nome de família ? mercado de capitais, mercado financeiro, mercado cambial, mercado de futuros, mercado de mercadorias etc. etc.
** Em títulos de uma coluna, caso não haja outro jeito, revogam-se as disposições em contrário e admite-se a palavra-tabu desde que no plural: mercados. Assim acaba-se com o protagonismo do Sr. Mercado e D. Mídia pode dar-se ao luxo de diversificar com uma piscadela para outros pretendentes.
** Em época de nervosismo, indispensável identificar os nervosos: o economista-chefe fulano, o banqueiro beltrano, o investidor sicrano. Neste último caso, no dia seguinte, será necessário chamá-lo de especulador. A bem da verdade.
** D. Mídia é fiel e casta. Sendo assim, quando pressentir que o Sr. Mercado está prestes a prevaricar, não deve manter-se recatada. Necessário abrir o bico, soltar as tamancas, botar para quebrar.
Só assim o Sr. Mercado e D. Mídia serão felizes para sempre.
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Sr.
Mercado & D. Mídia – Alberto Dines e M?riam Leit?o