PROFISSÃO JORNALISTA
Allan de Abreu (*)
Não sei se o jornalismo é a melhor profissão do mundo, como um dia disse Gabriel García Márquez. Mas que é uma atividade excêntrica, poucos hão de discordar. Afinal, como há tanta gente no mundo que se submete ao louvor do efêmero? Jornalismo é feito de ápices esparsos a cada edição: alguém já disse que uma ótima reportagem corre o sério risco de embrulhar a carne do açougue no dia seguinte.
O livro O reino e o poder, de Gay Telese, sobre a história do New York Times, tem algumas definições muito boas dessa profissão "esquisita", como já me disseram. Como a que abre o livro: "Em sua maioria, jornalistas são incansáveis voyeurs que vêem os defeitos do mundo, as imperfeições das pessoas e dos lugares."
O voyeurismo é um dos substantivos que mais cabem à nossa profissão: são brigas nas sessões da Câmara, coletivas frenéticas de um recém-libertado de seqüestro, ameaças de bombas a prefeitos petistas, greves universitárias, parques deteriorados, tramóias políticas. E poucas vezes refletimos sobre o fato de que, no fundo, somos um dos maiores espectadores da vida. Ou pelo menos do que acontece de mais relevante nela (o tal interesse público).
Mas essa vida, que poderíamos pensar independente de nossa presença, também recebe a nossa influência, embora de um modo muito mais sutil: mal podemos adivinhar o poder que temos em "acender" as pessoas.
Lembro-me quando um vereador aqui do interior de São Paulo acorrentou-se em frente à Câmara, exigindo que um projeto de lei seu fosse apreciado em plenário, ou, numa campanha promocional, algumas alpinistas vestidas de noiva escalaram prédios na Avenida Paulista. Nos jornais pequenos ou nos jornalões, a certeza de estampar, em três ou até quatro colunas, a capa do dia seguinte. Volto a pensar em Talese: "O jornalista é um aliado importante da ambição, é o acendedor de lampiões de estrelas."
E, facilmente, vira ele mesmo um elemento irradiador de ambição e de orgulho: aquela sensação de quando se sai do jornal e, andando pela rua, pensamos satisfeitos naquela matéria bombástica, gratos com nosso próprio trabalho. No fundo, uma grande massagem no ego. Só aguardando o dia seguinte para conferir a repercussão, as lamúrias, a agressividade. E dizer, com cinismo: faz parte do meu trabalho, é a minha profissão.
No caso daqueles que fazem o jornalismo político comezinho, busca-se sempre o pragmatismo, que desemboca no cinismo e no tom crítico pesado, malicioso. Recebemos tapinhas nas costas, sorrisos e afagos nos corredores da Câmara Municipal ou no Congresso, mas quase sempre se tem a exata dimensão daquele teatro do me-ajuda-que-eu-te-ajudo.
[O jornalista] é convidado para festas, cortejado e cumprimentado, tem acesso a telefones que não constam da lista e a muitos estilos de vida. (…) Às vezes o jornalista pode supor erroneamente que é seu charme, e não sua utilidade, que lhe rende esses privilégios; mas, em sua maioria, são homens realistas que não se deixam enganar pelo jogo. Eles o usam tanto quanto são usados. (Gay Talese)
A promiscuidade é inegável: não é à toa que, peneirados todos os assessórios conceituais, de uma "indústria cultural a serviço do mercado", de uma "construção social de sentido" e coisa e tal, o jornalismo jamais deixará de ser velha picuinha, e os jornalistas as velhas comadres.
(*) Jornalista em São Carlos, SP