DIPLOMA EM XEQUE
Luciano Medina Martins (*)
Ficou suspensa em todo país a exigência do diploma de jornalista. A juíza da 16? Vara da Justiça Federal de São Paulo, Carla Rister, coadunando com os interesses de exploração de mão-de-obra do Sindicato das Empresas de Rádio e Televisão no Estado de São Paulo, decidiu, na semana passada, em sentença, que a profissão de jornalista não pode ser regulamentada sob o aspecto da capacidade técnica, pois, segundo o texto da sentença, "não pressupõe a existência de qualificação profissional específica, indispensável à proteção da coletividade". Nas palavras da magistrada, "a regulamentação da profissão não visa ao interesse público".
Como pode uma juíza, que não é comunicóloga, ser tão leviana a ponto de "achar" irrelevantes para a coletividade as ciências e técnicas ensinadas no curso de Jornalismo?
Este é um retrato do preconceito contra os cursos de Ciências Humanas e mais especificamente contra o curso de Jornalismo. É claro que numa sociedade que tem enormes resquícios de suas ditaduras e processos coloniais truculentos existem grupos articulados e que não querem que nós, brasileiros, pensemos seriamente sobre os meios de comunicação, um dos poderes que mais dão acesso à cidadania; afinal, quem não acompanha pela imprensa o que os governantes decidem não pode contestar estas decisões.
Ao se conversar sobre a regulamentação de profissões, os médicos são os primeiros exemplos levantados. É muito fácil para qualquer um entender as conseqüências danosas de um bisturi esquecido dentro de um paciente ou de um remédio mal-administrado. Parece que não é tão fácil entender, pelo menos para a juíza Carla Rister, que existem parâmetros técnicos, éticos e científicos para exercer o jornalismo, os quais procuram prevenir danos aos cidadãos. Tais danos podem arruinar a carreira e a respeitabilidade de uma pessoa pelo resto da vida em vastas comunidades.
Este é só um exemplo de como a prática menos do que profissional do jornalismo é tão prejudicial para os cidadãos quanto a prática menos do que profissional da cirurgia plástica ou da engenharia civil. Por isso os jornalistas devem ter uma formação que possa ser fiscalizada pela sociedade em geral, e não só por associações profissionais, patronais ou sindicatos. As universidades, e em especial a universidade pública, são as instituições mais reconhecidas no mundo na formação qualificada de profissionais, diminuindo muito as chances de que se cometam absurdos no exercício profissional de uma atividade ou serviço de interesse público.
A juíza Carla Rister, do alto do assento de sua patrola jurídica, simplesmente atropelou uma comunidade inteira composta de famílias, vestibulandos, estudantes, estagiários, professores, cientistas, pesquisadores, faculdades, editores de livros, livreiros e de profissionais formados, como eu, que lutam para elevar a qualidade do jornalismo. Talvez por jamais ter lido um livro sobre o assunto comunicação a juíza não consiga entender a necessidade dos parâmetros técnicos e científicos próprios do jornalismo no seu exercício.
Bagunçando a regulamentação
No sistema jurídico inglês, o posto de juiz (que é púuacute;blico, pago com o dinheiro do contribuinte e pelo qual se exerce um tipo de poder de interesse geral) pode ser ocupado por qualquer cidadão que passe no processo seletivo dos tribunais ingleses: o requisito mais importante é ser cidadão inglês. Nada mais razoável, afinal, juízes-engenheiros são mais qualificados para julgar questões pertinentes a engenharia e produção, juízes-médicos podem avaliar melhor os litígios jurídicos na área da medicina, juízes-jornalistas são mais qualificados para decidir em questões cujo âmbito da disputa é a comunicação, e assim com outros tipos de situação.
Pena que isso ainda não aconteça na seleção de juizes de direito brasileiros: um concurso que garantisse a participação de qualquer cidadão na seleção para juiz de direito. A disputa seria muito maior pelo bem-remunerado cargo, e talvez isso aumentasse o número e a qualidade dos juízes ? o que é do interesse público. A sociedade brasileira já evoluiu o suficiente para entender que seria inadmissível exigir como requisito básico o curso de Direito para ser legislador (deputado ou senador, que também são cargos públicos nos quais se exerce um tipo de poder de interesse geral). E, com certeza, o deputado federal tem tanta ingerência no sistema jurídico quanto um juiz federal, com a diferença de que é escolhido pelo voto direto.
O Brasil, notoriamente, carece de Justiça, e mesmo assim inexiste a autodefesa nos tribunais, como acontece nos Estados Unidos, por exemplo. Toda pessoa acionada, por qualquer razão, em tribunal comum no Brasil é obrigada a instituir advogado como representante legal, mesmo que mais tarde se prove que esta pessoa é inocente. Ou seja, o cidadão brasileiro, ao ser acionado, é obrigado a pagar um advogado segundo tabela de valores mínimos elaborada pela OAB, ou, provando-se pobre, a enfrentar fila, que começa as seis da manhã, para obter ficha de atendimento por um dos poucos defensores públicos disponíveis. Isto, sim, é uma reserva de mercado absurda, e que de forma alguma visa o interesse público; visa, sim, exclusivamente, a manutenção de um público, literalmente, "cativo" para os advogados.
Corporativismos à parte, a verdade é que numa democracia que está se consolidando, como a brasileira, não é do interesse público e democrático bagunçar a regulamentação de uma área tão importante quanto o jornalismo. A juíza Carla Rister prestou enorme ajuda àqueles que querem detratar o jornalismo como atividade profissional. Fica a pergunta: quem seriam estes que querem "facilitar" para os não-formados? Quais são as ligações deles com a juíza?
Para evitar absurdos
Eu mesmo fui estudante de direito na UFRGS, curso que abandonei quase concluso para estudar Comunicação e, mais tarde, me graduar em Jornalismo na mesma universidade. Não foram poucas as vezes que tive que escutar dos advogados na minha família que eu tinha trocado o grandioso direito por uma profissão que "nem precisa de diploma" ou que "qualquer um sem diploma exerce". Como eu explicaria a estes queridos parentes, sem ofender a ignorância deles?
Existe um intenso debate científico em relação ao impacto da comunicação de massa sobre as sociedades, e mais do que isso, uma série de critérios de noticiabilidade e de ética na prática do jornalismo diário que são fundamentais, criados ao longo de pelo menos cinco séculos de história do confronto destes profissionais da imprensa em questões como que fatos devem ou não ser notícia, como se deve apresentar os fatos à população e quais serão as conseqüências destas notícias para os fatos e pessoas.
É bom lembrar que há pouco menos de 50 anos existiam os advogados chamados "rábulas", que não haviam se formado em Direito mas tinham aprendido os procedimentos dos tribunais e, depois de muitos anos atuando na área, obtinham sua licença de advogado. Naquela época, era admissível pela pura falta de profissionais e de formação adequada. Assim como eram admissíveis jornalistas que sequer eram formados em alguma coisa ou parteiras analfabetas que atuavam como obstetras. Mesmo que isso ainda aconteça em alguns rincões de pouco acesso, ou em ilhas de ausência de profissionalismo, não devemos tornar estes procedimentos como regra válida para o Brasil todo. Até porque a carência de profissionais não é uma característica do mercado de trabalho brasileiro ou do mercado de profissionais de comunicação.
A única e derradeira explicação para a sentença da juíza de São Paulo, que não acredita no diploma de jornalista, é que ela queira ser jornalista, assim como o Doutor Marcos, na novela Esperança, da Rede Globo, que é um advogado ? por isso o título "doutor", e trabalha escrevendo num jornal. Só que a "doutora" juíza esqueceu que a melhor forma de evitar manchetes erradas e absurdas, como o título desta matéria, é educar, regulamentar e fiscalizar os profissionais de comunicação, assim como os de qualquer área de interesse público.
(*) Professor e jornalista graduado, 31 anos; sítio: http://planeta.terra.com.br/educacao/professordeingles>