COMITÊ GESTOR
Rogério A. B. Gonçalves (*)
Na edição passada, este Observatório publicou uma pérola que tinha o pomposo título de "Relatório final do Comitê Gestor interino" que, na verdade, é uma espécie de testamento do ineficiente Comitê Gestor da Internet, que conseguiu a proeza de embromar todo mundo durante oito anos, impedindo que fosse desenvolvido um modelo participativo de padronização da internet tupiniquim e deixando como legado a bagatela de 64 milhões de reais guardados com todo carinho no cofrinho da Fapesp.
O povão só começou a ter conhecimento da existência desta grana toda no fim do governo FHC e, é claro, não demorou muito para aparecerem os candidatos a zeladores da chave do cofrinho.
Obviamente, quem largou na frente foi a elite que se julga dona da verdade
em assuntos de internet em nosso país, e que, após muito papo
de bastidores, elaborou a proposta "Por uma internet democrática
? Governança da Internet no Brasil", assinado por representantes
de um monte de ONGs, que está publicado no sitio da RNP <http://www.rnp.br/noticias/imprensa/2003/not-imp-030314.html >
e foi entregue aos representantes do governo na reunião do Icann realizada
no Rio, no fim de março de 2003.
O documento dos caras ignora solenemente a existência dos objetivos definidos para o Comitê Gestor (CG) pela Portaria 147/95, e parte para uma escancarada proposta tecnocrática, que concentra as atividades do CG exclusivamente no filé da administração do registro.br e procura promover uma inclusão digital exclusiva para seus companheiros de terceiro setor ? pois a participação direta do username:povo na tal da governança foi devidamente deletada da proposta.
Vocês já repararam como as ONGs estão ficando cada vez mais parecidas com partidos políticos quando se arvoram em alegar que representam os excluídos? A esta altura do campeonato já estou começando a achar que o username:povo pertence mesmo é a um quarto setor.
Como era previsto, o CG acabou embarcando na canoa furada, e no dia 25/5/2003 apresentou ao governo federal a tal pérola do "Relatório final do Comitê Gestor interino", que só difere da proposta das ONGs ao manter a Portaria 147/95 como base do tal modelo de "governança". O mais bacana é que o CG também dá um chute no traseiro do username:povo (usuários) e, ao mesmo tempo, aumenta o número de lordes para 19 ? três deles do terceiro setor.
Comunidade perdida
Existe uma séria controvérsia sobre a iniciativa do CG de manter a Portaria 147/95 como base do modelo de "governança", pois o relatório se limita a induzir que o governo transforme o comitê em empresa para cuidar da mina de ouro do registro.br, o que não tem absolutamente nada a ver com os objetivos principais da portaria, que definem de forma muito clara o perfil do CG como um organismo essencialmente normatizador.
Segundo a Portaria 147/95, a principal missão do CG deveria ser a de estabelecer recomendações que serviriam para consolidar um modelo de gestão da internet tupiniquim, iniciativa extremamente avançada para a época.
Aparentemente, a estrutura do CG deveria ser semelhante à da ISO/IEC, na qual existe um comitê principal que analisa e endossa recomendações que são criadas, discutidas e aprovadas por inúmeros subcomitês formados por especialistas em determinados assuntos.
Os subcomitês são abertos à participação pública, e seus presidentes são eleitos pelos demais integrantes dos grupos, havendo uma tendência natural de escolha para a presidência daqueles que se destacam durante o desenvolvimento dos trabalhos dos grupos. Normalmente a eleição se dá pela aprovação de um documento que indica um nome de consenso. O mesmo ocorre no processo de escolha dos participantes que comporão o comitê principal, selecionados entre os presidentes dos subcomitês.
Assim, existe a garantia de que tanto o comitê quanto os subcomitês serão sempre liderados por pessoas que comprovadamente demonstraram competência em suas áreas de atuação.
Não fica barato sustentar comitês com este tipo de estrutura profissional, devido à necessidade do custeio de deslocamento e hospedagem dos integrantes efetivos em reuniões nas quais os assuntos devem ser discutidos pessoalmente, assim como também existem os custos de secretaria, elaboração de milhares de cópias de documentos, material de apoio, aluguel de salas de reunião, instalação de equipamentos e mais um monte de despesas acessórias.
A grana, porém, não seria problema, pois a portaria estabeleceu que a coordenação da atribuição de endereços IP (Internet Protocol) e o registro de nomes de domínios ficariam a cargo do CG, que é o mesmo que entregar a eles uma máquina de fazer (muito) dinheiro para bancar todas as suas despesas.
Praticamente todas as pessoas envolvidas com a criação do CG, assim como seus primeiros integrantes, conheciam em detalhe a estrutura de funcionamento dos comitês da ISO, e poderiam tranqüilamente ter dado início ao processo de criação dos diversos subcomitês ainda em 1995, o que certamente teria permitido a existência hoje de uma grande comunidade participando ativamente na criação de padrões que facilitariam em muito a vida de todos os que trabalham com a internet.
O estrago está feito
Mas, talvez devido ao efeito-banana que costuma afetar as iniciativas inteligentes das repúblicas latinas, não demorou nem um ano para a proposta da Portaria 147/95 ir pro brejo. De repente, os integrantes do CG se tornaram destaque na mídia especializada. Só que, em vez de aproveitarem a grande exposição para mobilizar a sociedade, incentivando-a a propor e a participar de subcomitês, os novos lordes da internet preferiram concentrar a partir daquele momento toda a atenção na nova máquina de dinheiro que haviam acabado de receber de presente, e de quebra dar uma guaribada em seus próprios egos.
E assim se passaram oito longos anos de pura embromação, com o registro.br reinando absoluto nos assuntos do CG e os lordes do comitê envolvendo-se em iniciativas estranhas para defender interesses de provedores de acesso ou inventando formas para perpertuarem-se no poder.
O resultado do "brilhante" serviço prestado pelo CG ao nosso país no âmbito da criação de padrões para internet está resumido na existência de apenas três GTs (equivalentes aos subcomitês) e absolutamente nenhuma recomendação oficialmente aprovada que possa ser utilizada como referência pelos profissionais envolvidos com internet.
Para quem não entende de recomendações, vale explicar que elas funcionam como minimanuais que detalham especificações técnicas ou procedimentos à serem seguidos para execução de determinadas tarefas, servindo como modelo ou referência para a elaboração de editais, contratação de serviços, criação de cursos, fabricação ou instalação de equipamentos e tudo mais que precise de padrões.
A confusão criada em torno do Fust, que culminou com o cancelamento de seu edital pelo TCU, talvez seja o maior exemplo das conseqüências dos equívocos do CG, pois, devido à total ausência de referências a serem seguidas para democratizar o acesso à internet em nosso país, coube aos técnicos da Anatel realizar as tarefas típicas de subcomitês do CG (que, no caso, teriam ampla participação popular). Aconteceu que sem o username:povo envolvido na jogada, a Anatel aproveitou para puxar a brasa para a sardinha das telefônicas, o que acabou causando reação do Congresso e a conseqüente implosão do edital.
Portanto, o estrago já foi feito e nada trará de volta os oito anos perdidos pelo Comitê Gestor. Nada impede, porém, que se recomece tudo do zero, aproveitando a grana em caixa e a própria internet já consolidada para transformar o CG no grande fórum participativo previsto pela Portaria 147/95, criando-se quantos subcomitês forem necessários e convocando para participar deles todas as pessoas interessadas em colaborar com o amadurecimento da internet em nosso país.
Perguntar não ofende
Quanto à proposta das ONGs e do CG interino, cujo mandato terminou no dia 25 de maio, não seria mais recomendável, talvez, esquecê-la no passado que tanto umas quanto outro demonstram ainda estar vivendo?
O CG está precisando mesmo é de participação popular, e não de novos lordes. Os assuntos relativos ao registro.br podem ser discutidos sem maiores problemas num simples subcomitê, deixando de monopolizar as atenções e abrindo espaço para a discussão de outros temas relevantes para a verdadeira democratização da internet BR.
Elaboração de padrões é pura pesquisa e desenvolvimento, que se encaixa direitinho no perfil exigido para liberação de recursos do registro.br retidos na Fapesp ? que, neste caso, poderia até continuar exercendo as tarefas de registro de domínios em nome do CG.
Nova "governança" da internet. Definitivamente, ninguém merece…
Como perguntar não ofende, será que alguém saberia responder por que o CG nunca deu a mínima bola ao CB-21 da ABNT, que era justamente a única instituição brasileira reconhecida pela ISO para assuntos relacionados a tecnologia da informação?
(*) Webmaster do sítio username:Brasil <http://www.clip.m6.net/atualize/tele/jtele.asp>