Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Considerações sobre uma tolice

FICHAMENTO DE AMERICANOS

Cynthia Semíramis Vianna (*)

Foi impressionante observar, nos últimos dias, a repercussão dada a um caso aparentemente simples: o fichamento de americanos pela Polícia Federal, na entrada do Brasil, nos mesmos moldes aplicados aos brasileiros que pretendem entrar nos Estados Unidos.

Serviços de notícias online a todo momento reproduzem afirmações dos fichados, sendo que a falta de originalidade é impressionante: um sempre se diz humilhado pelo procedimento, e o outro o aceita quando é informado que está recebendo tratamento equivalente ao recebido pelos brasileiros. Também divulgam o número de estadunidenses a serem fichados a cada navio ou aeronave que chega ao país, e o tempo e dinheiro que serão gastos em sua identificação (embora se esqueçam de analisar o tempo que os brasileiros ficam aguardando até a identificação e, muitas vezes, até a deportação). Outras notícias divulgadas afirmam que tal fichamento prejudicaria a indústria do turismo brasileira e que é um abuso judicial, posto que a decisão de aplicar o princípio da reciprocidade deveria partir do Ministério das Relações Exteriores.

Embora a mídia tenha considerado importante esse trâmite burocrático a ponto de referir-se a ele com freqüência irritante, faltou a ela escapar de uma abordagem lotada de lugares-comuns e fornecer explicação mais detalhada sobre o assunto, a começar pelo famoso "princípio da reciprocidade".

Por mais exótico que possa parecer, no direito internacional presume-se que os Estados são todos iguais em direitos e deveres, não havendo hierarquia entre eles. O princípio da reciprocidade reflete essa igualdade, pois concede a cada Estado o direito de exigir ou proporcionar a outro Estado tratamento igual ao que recebe, seja benéfico (como a isenção de visto, por exemplo) ou maléfico (como regras mais rígidas de acesso ao outro Estado). Não se trata de retaliação, abuso ou arrogância, mas de simples aplicação de princípios de direito internacional. Assim, se os Estados Unidos adotam medida restritiva ou benéfica em relação ao Brasil, este pode aplicar aos estadunidenses as mesmas medidas restritivas ou benéficas sem que isso seja considerado ofensa, retaliação ou abuso.

O que muitas vezes ocorre é a não-aplicação desse princípio por interesses políticos. O receio de desagradar outro Estado, principalmente se entre eles há desigualdade nos armamentos e nas finanças, faz com que determinado Estado prefira submeter seus nacionais a situações constrangedoras.

Tal caso, infelizmente, é o brasileiro. Como temos uma tradiçãatilde;o de conservadorismo diplomático (entenda-se: receio de incomodar os "grandes" ou de criar obstáculos diplomáticos que impossibilitem uma vaga no Conselho de Segurança da ONU), é difícil reagir e adotar as medidas necessárias à proteção dos brasileiros em viagem ao exterior. Os casos de brasileiros deportados e maltratados na entrada dos Estados Unidos aumentaram muito nos últimos tempos, e a toda hora são citados na mídia. Não se tem notícia, porém, de apoio do governo brasileiro a seus nacionais, e os casos caem logo no esquecimento.

Simples diversionismo

Assim, agiram muito bem o procurador da República que requereu a aplicação do princípio da reciprocidade e o juiz que a concedeu. Se o governo se esqueceu de aplicar os princípios internacionais e de garantir a igualdade de tratamento para seus nacionais, é função do Judiciário lembrá-lo de suas funções. Requerer que brasileiros não sejam submetidos ao fichamento americano e, ao mesmo tempo, conceder o mesmo tratamento aos estadunidenses que venham ao Brasil até que um acordo Brasil-Estados Unidos ponha fim a essa exigência é o mínimo que se pode esperar numa situação dessas.

A manifestação judicial não é absurda, como dizem alguns, mas adequada, tendo em vista a demora do governo brasileiro em tomar providências sobre o assunto.

Lamentável é perceber que a mídia alardeia que o Brasil sofrerá prejuízos financeiros, pois o número de turistas diminuirá. Esse comportamento é movido apenas pelo lucro, e bastante condenável, pois nele está implícita uma submissão financeira além dos limites do razoável. Permitir que turistas estadunidenses sejam considerados especiais e dispensados de um procedimento burocrático de identificação (que é medida de segurança em qualquer lugar do mundo, esteja em guerra ou não) é reflexo de um pensamento colonizado, que considera o estrangeiro melhor que os nacionais e acima de qualquer suspeita. Ora, se tal é realmente verdade, por que temos de fazer tantas campanhas contra o turismo sexual, a biopirataria e a pedofilia?

Simplesmente temer que os turistas se afastem porque o processo de entrada de estrangeiros foi dificultado não é motivo para proibir procedimentos de identificação. Se só existisse turista estadunidense a preocupação seria compreensível. Porém, há turistas em todo o mundo, e o Brasil pode recebê-los tão bem quanto recebe os americanos. Assim, não há motivo para esse estardalhaço todo em torno de lucros que cessarão e bizarrices semelhantes.

Na verdade, como se trata de caso simples de direito internacional, deveria restringir-se à burocracia da Polícia Federal e do Ministério das Relações Exteriores. Para entendê-lo bem, basta a leitura das peças judiciais (disponíveis em <http://conjur.uol.com.br/textos/23718/>). Todo o mais é tolice que apenas ocupa espaço na mídia e impede que assuntos realmente polêmicos e importantes sejam abordados com a atenção que merecem.

(*) Mestranda em Direito Internacional e Comunitário pela PUC-MG e editora do site <www.direitoinformatico.org>