Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Construção do consenso e desconstrução do conhecimento

MÍDIA & PODER

Sylvain Levy (*)

Ao se analisar a conduta da chamada grande imprensa brasileira nas últimas décadas, pode-se facilmente pensar que esse título pomposo é substituível por outro: "A grande imprensa e a preservação das elites". Com uma única exceção: a Última Hora, de Samuel Wainer, que durante 13 anos pugnou por causas populares, quase sempre odiadas pelas elites brasileiras, o que explica a sanha pela derrocada do jornal a partir do golpe de 64.

Alguns exemplos sobre a má conduta da imprensa são conhecidos e reconhecidos, como os casos da Escola Base, de São Paulo e do ex-ministro Alceni Guerra. Mas não é por esse caminho que chegaremos ao que Bertold Brecht apontava ao dizer que neutralidade ou omissão é ficar ao lado do mais forte.

Para a construção do consenso usarei apenas um exemplo. A questão da previdência dos servidores públicos. Desde o início do governo Collor, que propunha várias reformas, a da previdência centrou suas atenções nas impossibilidades de manter o pagamento dos benefícios nos valores vigentes para o público em geral e no déficit do sistema previdenciário público.

Bombardeio diário

Para o primeiro problema a solução foi fácil, reduziu-se o valor do salário de referência, desvinculando-o do valor do salário mínimo, e assim o trabalhador que receberia 10 salários continuaria a recebê-los ? só que em valor absoluto menor. Genial, tão genial como o antigo sistema britânico de comércio, em que a Coroa vendia em guinéus e comprava em libras (o guinéu valia 21 xelins, e a libra, 20), considerando-se, sempre, o mesmo valor absoluto de face nas transações.

Com pouca gente importante para defendê-los não foi difícil para o governo fabricar rapidamente um consenso contra os trabalhadores, contando com a omissão da imprensa.

Para o segundo ponto, a contribuição afirmativa da grande imprensa foi fundamental. Afinal, aí já se tratava de pessoas com mais voz e penetração na sociedade, algumas até componentes das elites.

A desnecessidade dos serviços públicos (apenas saúde, educação e polícia seriam essenciais) e conseqüentemente dos servidores, a pouca produtividade, o excesso de quadros, os absurdos dos grandes salários, o tempo de serviço (lembram dos "vagabundos" do FHC?), tudo era motivo para exploração, e não informação, na mídia.

O chamado "outro lado", tão ao gosto de alguns jornais, pouco era ouvido e, se o era, teciam-se pesadas ironias e mais respostas e "conclusões". Não se tratava o servidor público como trabalhador no desempenho de função de Estado, com prerrogativas e limitações inerentes à atividade e nem da participação dos diversos governos no desmonte da previdência do servidor público.

O bombardeio diário sobre as "mazelas" construiu o consenso sobre a reforma a tal ponto que os ex-críticos se viram obrigados a participar da unanimidade nacional. Punam-se os inativos, confisquem-se os salários, acabe-se com a paridade e a integralidade.

São todos elite

A desconstrução do conhecimento é mais sutil, mas não menos importante. O povão lê manchete, polícia, esporte e casos raros. Não lê articulistas ou colunistas. Assim, um grande jornal de São Paulo, conhecido por sua capacidade ácida de crítica, podia colocar em manchete "FMI dá 8 bilhões para o Brasil" e seus colunistas desancarem a política econômica. Aos olhos da população, o governo (era o de FHC) conseguia uma grande vitória, sem que se explicasse que não era doação nenhuma, mas empréstimos para pagamento de juros da dívida, o que aumentava a dívida e justificaria novos empréstimos.

Em mais um brilhante artigo no Correio Brasiliense, Mauro Santayana informava que uma alteração na legislação de remessa de dinheiro para o exterior, realizada em 1996, pelo Banco Central, permitiu a transferência de US$ 30 bilhões para o exterior, via Banestado. Não me lembro de nenhum veículo de imprensa voltar sua atenção para esse fato, que acabou permitindo uma evasão de recursos dessa natureza.

As notícias sobre economia, aliás, são das mais utilizadas para a desconstrução do conhecimento. Dizer que o povo não se interessa por economia é tão falso como uma nota de três reais. O povo não entende de economia como ela é apresentada pela imprensa. Quando se traduz a notícia do economês para linguagem de gente a maioria discute e opina. Afinal, se todos são assaltados pelas conseqüências da política econômica todos devem ter acesso a informações para entender as decisões tomadas.

O conhecimento, porém, é uma apreensão da realidade, e na medida em que for mantida à margem da realidade (de qualquer realidade), a população não adquirirá conhecimento e este continuará a ser privilégio de poucos. De alguns que se consideram iluminados e que, portanto, conduzirão o rebanho aonde corre o leite e o mel. Sem explicitar, é óbvio, que o leite e o mel não dá para todos.

E é nesse conluio com as elites no e do poder que se plasma o próprio poder da grande imprensa. Afinal, são todos elite.

(*) Psicanalista