ASPAS
"Jornada múltipla", copyright Veja, n? 1.701, 23/5/01
"O Provão e o Enem são os dois principais termômetros da qualidade do ensino no Brasil. São estratégicos na política educacional do governo do presidente Fernando Henrique Cardoso. O Ministério da Educação entregou a organização dos dois testes à Fundação Cesgranrio, que tem o professor Carlos Alberto Serpa como presidente. Trabalhador incansável, Serpa tem outras atribuições. Dá consultoria a universidades privadas que passarão pela avaliação do Ministério da Educação. Já seria estranho o organizador do Provão dar qualquer tipo de assessoria a instituições particulares de ensino. Mas tem mais. Serpa é também membro do Conselho Nacional de Educação (CNE), órgão ligado ao MEC, que tem, entre outras prerrogativas, a de avaliar a qualidade dos cursos. Ou seja, com uma das mãos Serpa julga as escolas. Com a outra, presta serviços a elas. Esse não é o único caso de conflito de interesses no CNE. As atividades de pelo menos três outros conselheiros fazem do órgão responsável pelas principais decisões relativas ao ensino superior um emaranhado de ligações perigosas.
O ministro da Educação, Paulo Renato Souza, se disse surpreso com o relato feito a ele por VEJA. ?Eu não tinha conhecimento desses fatos. Isso é tráfico de influência?, afirma o ministro. A saga da ascensão de Serpa é mesmo espantosa. Ele conseguiu assento no Conselho Nacional de Educação depois que o Ministério da Educação credenciou uma entidade ? a Academia Brasileira de Educação (ABE) ? para indicar conselheiros. Serpa é o presidente da tal academia, que tem entre seus membros o chefe de gabinete do ministro Paulo Renato, Edson Machado. Em 1999, atuando na dupla função de reitor da Universidade Gama Filho, do Rio de Janeiro, e conselheiro do CNE, Serpa conseguiu, por meio de uma liminar na Justiça, autorização para que a Gama Filho abrisse em Fortaleza, capital do Ceará, 2.000 vagas de cursos seqüenciais, um tipo de formação superior com apenas dois anos de duração. Apesar de proibir o funcionamento desses cursos fora da sede da universidade que os criou, o MEC teve uma resposta tímida. Por meio de um comunicado mostrou sua insatisfação à direção da Gama Filho ? e ficou nisso. Animada com o precedente, a Universidade Estácio de Sá, do Rio de Janeiro, a instituição que teve mais cursos aprovados no ano passado, seguiu caminho idêntico. Abriu 2.000 vagas para cursos seqüenciais na mesma Fortaleza, amparada também por uma liminar. O MEC poderia, autorizado pela lei, paralisar todos os processos para a abertura de novos cursos dessas universidades. Nada foi feito.
Tanto a Gama Filho como a Estácio de Sá realizaram uma segunda façanha. Obtiveram a condição de entidades filantrópicas junto ao Ministério da Previdência Social. A Fundação Cesgranrio também descolou essa vantagem. É um negócio da China. Com isso, duas das maiores e mais caras universidades do país e uma fundação gigantesca deixam de recolher à Previdência os 20% equivalentes à contribuição patronal, sob alegação de que são instituições sem fins lucrativos. ?É o fim da picada elas serem consideradas filantrópicas?, indigna-se o ministro Paulo Renato, que pretende agora iniciar um processo para tirá-las dessa condição. Curiosamente, um representante da Estácio de Sá tem assento garantido no Conselho Nacional de Educação. Trata-se de Lauro Zimmer, ex-reitor e até hoje funcionário da universidade. Zimmer, assim como Serpa, foi eleito para o CNE com os votos da tal Academia Brasileira de Educação.
Na esteira das relações perigosas há pelo menos mais um conselheiro. Trata-se de Éfrem Maranhão, que chegou ao Conselho Nacional de Educação com o apoio de uma entidade chamada Associação Nacional dos Centros Universitários (Anaceu), cujo presidente é o irmão de Éfrem, Magno Maranhão. Ou seja, o presidente de uma associação que representa os interesses de escolas privadas indicou seu próprio irmão para membro de um conselho que tem como função fiscalizá-las. A série de conflitos de interesses estende-se ao chefe de gabinete do ministro, Edson Machado. Sua mulher, a educadora Eda Machado, conseguiu aprovação do ministério para abrir o Instituto de Educação Superior de Brasília (Iesb). Eda argumenta que nunca precisou do marido e que abriu o curso graças a sua competência profissional. No entanto, embora o curso de engenharia do Iesb tenha sido reprovado pela comissão de especialistas do MEC, ele foi autorizado a funcionar.
Outro episódio nebuloso envolvendo o casal Machado ocorreu em 1994. Nessa época, Eda era funcionária da Secretaria de Educação Superior do MEC, enquanto Edson era da Câmara de Ensino Superior do extinto Conselho Federal de Educação. Ainda assim, ambos prestaram consultoria à Faculdade da Cidade, do Rio de Janeiro, pertencente ao empresário Ronald Levinsohn. A Faculdade da Cidade pretendia se transformar em universidade ? o que não acabou ocorrendo. É, hoje, um centro universitário, o que a desobriga de fazer pesquisas e manter um número mínimo de mestres e doutores. ?Não há nada de errado em nossa consultoria. Fazíamos parte de um conselho de notáveis ao qual a Faculdade da Cidade recorreu?, justifica Eda Machado. Cabe agora ao ministro Paulo Renato investigar a fundo até que ponto interesses privados interferem no trabalho do Conselho Nacional de Educação."
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Ligações perigosas, copyright Veja, n? 1.701, 23/5/01
"Carlos Alberto Serpa ? Integrante do Conselho Nacional de Educação (CNE) e ex-reitor da Universidade Gama Filho, do Rio de Janeiro. É presidente da Fundação Cesgranrio, entidade que aplica o Provão e dá consultoria a universidades privadas. Serpa também dirige a Academia Brasileira de Educação. Foi indicado para o CNE pela academia, que tem entre seus membros Éfrem Maranhão e Lauro Zimmer, também do CNE, e Edson Machado.
Éfrem Maranhão ? Conselheiro do CNE. É irmão de Magno Maranhão, presidente da Associação Nacional dos Centros Universitários (Anaceu), que reúne instituições de ensino superior privadas. A entidade dirigida por Magno Maranhão foi credenciada pelo MEC para indicar conselheiros para o CNE. Entre os três nomes apontados pela Anaceu está o de Éfrem.
Edson Machado ? Chefe de gabinete do ministro da Educação, Paulo Renato Souza. Foi membro do Conselho Federal de Educação, extinto em 1994 pelo então presidente Itamar Franco por suspeitas de corrupção. Naquele ano, deu consultoria à Faculdade da Cidade, no Rio de Janeiro, que pleiteava a transformação em universidade. Sua mulher, Eda Machado, conseguiu, em 1998, autorização do MEC para abrir o Instituto de Educação Superior de Brasília (Iesb) com seis cursos de uma só vez.
Lauro Zimmer ? Conselheiro do CNE. Foi reitor da Universidade Estácio de Sá, da qual é funcionário até hoje. Já relatou processos em favor daquela instituição. Seu filho, Lauro Cavallazzi Zimmer, juntamente com Rafael Bornhausen, filho do senador Jorge Bornhausen, é o advogado que conseguiu junto ao Ministério da Previdência o título de entidade filantrópica para as universidades Gama Filho e Estácio de Sá e para a Cesgranrio. As três deixaram de recolher a contribuição patronal de 20% ao INSS."
"Governo abençoa políticos com alvarás de faculdades", copyright Jornal do Brasil, 20/5/01
"O giz e o quadro-negro, tão raros nos gabinetes de Brasília, voltaram ao vocabulário de uma casta de políticos. Eles despertaram para um negócio para lá de lucrativo: a abertura de faculdades, centros universitários e universidades particulares, um mercado em franca expansão no Brasil. O alvará para entrar no ramo é a bênção do Ministério da Educação. Para obtê-la, é preciso passar por uma longa fila no Conselho Nacional de Educação (CNE). Na disputa por um naco deste mercado, onde cada vaga aberta pode representar R$ 600 de mensalidade, poder político e fidelidade ao governo tornam-se uma poderosa moeda de troca, capaz de encurtar o caminho que separa um protocolo de intenções de um prédio cheio de alunos.
?A criação de faculdades representa para o governo Fernando Henrique o mesmo que as concessões de rádio e televisão significaram para o governo Sarney?, acusa o deputado Padre Roque (PT-PR), integrante da Comissão de Educação da Câmara.
Quando ocupava a cadeira de secretário de Ensino Superior, um dos cargos mais espinhosos de todo o ministério, o engenheiro Antônio MacDowell Figueiredo, 51 anos, impressionou-se com a saraivada de telefonemas que recebia de políticos. ?Eu me surpreendi com a intensidade do assédio dos parlamentares interessados na abertura de novos cursos?, afirma MacDowell. O que se diz nos corredores do ministério é que muitos desses políticos discam para lá para furar a fila.
Dia desses, chegou no ministério uma carta enviada pela direção da faculdade Pitágoras contendo uma súplica: ?especial atenção? ao processo que alçava a tradicional rede mineira de escolas ao olimpo do ensino superior. O dono do império, que inclui quatro escolas no Japão, é o deputado Walfrido Mares Guia, do PTB mineiro. Ocupante do estratégico cargo de presidente da Comissão de Educação da Câmara, Mares Guia demonstra publicamente sua confiança na boa vontade das autoridades. No último dia 10, esteve em Curitiba para anunciar a abertura da filial paranaense de sua faculdade. A abertura dos novos cursos ainda não foi aprovada pelo CNE, mas o vestibular já está marcado para julho. No mesmo dia, o governo conseguia arquivar a CPI da Corrupção. Mares Guia não assinou o pedido. ?Uma coisa não tem nada a ver com a outra?, afirma.
Identificar os políticos por trás de universidades não é uma tarefa fácil. O cadastro do Ministério da Educação é um quebra-cabeças. Quem puxa a lista dos donos das 1.271 instituições de ensino particular do país descobre outra relação, ainda mais misteriosa. É a de mantenedoras, empresas e fundações que administram as faculdades. A Faculdade Euro-americana, uma novata no Distrito Federal, tem como mantenedor o Instituto Euro-americano de Educação, Ciências e Tecnologia. Nos documentos oficiais aparece parte da família do deputado federal maranhense Mauro Fecury, do PFL. Na direção da mantenedora está sua mulher, Ana Lúcia Chaves Fecury, e no comando administrativo aparece a sobrinha, Wânia Maria Fecury Zenni.
Criada há três anos, a Euro-americana exibe números invejáveis. Pulou de quatro para sete cursos e vai abrir mais dois para o próximo vestibular. O número de alunos saltou de 700 para 1.650. Repete o sucesso do outro empreendimento universitário dos Fecury, o Centro Universitário do Maranhão, que em uma década multiplicou por dez o número de matrículas. Ali um aluno desembolsa até R$ 621 por mês. Integrantes do seleto Conselho Nacional de Educação dizem que Fecury conta com um ilustre padrinho: o senador José Sarney (PMDB-AP).
Este afã por um lugar ao sol no mercado de ensino superior é resultado de uma constatação otimista: cada vez mais brasileiros estão se credenciando a uma vaga numa universidade. Isso é resultado de um recrutamento jamais visto no ensino médio – neste ano, 2 milhões de alunos serão despejados da escola com um diploma na mão. As universidades públicas absorvem uma parte deles, mas não dão conta de todos. O governo é francamente favorável à expansão das particulares. O fenômeno, que tomou corpo na segunda metade dos anos 90, contabilizou um aumento de 41% nas matrículas só nos últimos três anos. A explosão fez nascer estatísticas inacreditáveis. Em São Paulo, surge uma nova instituição por semana. No Espírito Santo e no Paraná, a engrenagem tem a força de uma novata a cada três semanas.
Universidades tradicionais estão aproveitando a boa maré para alargar seus domínios. Criada em 1972, a Universidade Newton de Paiva Ferreira, sediada em Belo Horizonte, demorou 25 anos para juntar 8 mil alunos. Durante o governo Fernando Henrique, conseguiu abrir seis novos cursos e saltou para 12 mil estudantes. Por trás do grupo está a família da deputada Maria Elvira, do PMDB mineiro. ?A concorrência nesse negócio é predatória?, diz Paulo Newton, irmão da deputada e diretor da universidade.
No papel, o deputado Átila Lira (PSDB-PI) ainda é um iniciante no ramo universitário. A irmã dele, Iara, é dona da Faculdade Santo Agostinho, em Teresina. Com quatro anos de vida, a instituição tem quatro cursos e 500 alunos. O deputado atrapalha-se ao explicar sua relação com a escola. ?Faço parte de um conselho técnico, um tipo de assessoria?, diz. Nos bastidores da educação oficial, tem a reputação de dar a palavra decisiva em todos os processos para abertura ou ampliação de faculdades no Piauí. A influência se sustenta em um currículo invejável. Deputado de terceiro mandato, foi secretário de Ensino Médio e Técnico do Ministério da Educação entre 1995 e 1997. Trabalhou com o ministro Paulo Renato Souza. Funciona como uma espécie de líder informal do ministro na Comissão de Educação da Câmara, da qual é vice-presidente.
É claro que entre os proprietários com mandato há os bem intencionados. O senador Ney Suassuna, do PMDB da Paraíba, diz que se sente marginalizado como empresário do ramo do ensino. Dono de uma faculdade no Rio desde 1973, a Anglo-Americano, ele expandiu seus domínios. Mas no exterior. Entre os 48 países onde tem alunos, alguns enquadrados no ensino a distância, estão Estados Unidos e Paraguai. ?No Paraguai, sou Dom Suassuna. No Brasil investi foi em shopping center.?"
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