Wednesday, 13 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1313

Contardo Calligaris

HILLARY & IMPRENSA

“A mídia e as memórias de Hillary Clinton”, copyright Folha de S. Paulo, 19/06/03

“Na segunda-feira da semana passada, chegou às livrarias ?Living History? (?história viva? ou ?vivendo a história?), de Hillary Rodham Clinton, ex-primeira-dama dos EUA e senadora pelo Estado de Nova York. No primeiro dia, venderam-se 200 mil exemplares.

Não houve distribuição prévia do livro à imprensa. Apesar disso, no Brasil, alguém escreveu, no meio da semana, que a única coisa interessante nas memórias era a historieta de Bill Clinton e Monica Lewinsky. Felicitações: em três dias, ele conseguiu receber o livro e ler as 500 páginas.

Os profissionais da mídia americana, em sua maioria, não fizeram melhor. No índice analítico, procuraram ?Monica Lewinsky? e ?Whitewater? (o nome do investimento imobiliário no qual os Clintons perderam suas economias sem cometer ilegalidade nenhuma). Os comentaristas, ao que parece, apostaram que o povo (sempre burro, não é?) gostaria de histórias escabrosas.

Se pensaram assim, erraram. Para ler nos retalhos de tempo, carreguei o livro por todo canto de Nova York. Em seis dias, fui interpelado por dezenas de desconhecidos que planejavam ler o livro ou já estavam lendo: porteiros, caixas de farmácia e de supermercado, garçons, halterofilistas, corredores de esteira, seguranças, bombeiros. Só um deles mencionou o caso Lewinsky, para notar que não entendia que ainda se falasse desse episódio insignificante. Todos perguntavam como foi a juventude de Hillary e, sobretudo, quais eram suas aspirações políticas de hoje: concorreria à Presidência? E seu antigo projeto de assistência médica gratuita?

O dito povo, ao menos em parte, parece estar disposto a acreditar que existam vidas animadas pela paixão cívica do serviço público.

Fora o preconceito segundo o qual o povo gostaria de roupa suja, por que diabo a mídia, em massa, soube apenas associar o nome de Hillary Clinton à escapadela Lewinsky ou a uma pequena maracutaia imobiliária desmentida pela Justiça? Por que comentaram o livro como se a vida de Hillary não fosse uma história política, mas um conto de infidelidades conjugais (do marido) e de interesses escusos?

Será que a urgência e a preguiça de ler produziram o espírito de porco dos comentaristas? Suspeito que haja uma outra razão, como se diz, mais embaixo.

O tratamento reservado ao livro de Hillary é exemplar de uma atitude que conhecemos bem: quando os outros são melhores que nós, tentamos rebaixá-los, por vergonha. Imaginando neles nossos próprios defeitos, afirmamos nossa inocência. Por exemplo, é providencial que muitos políticos sejam corruptos, pois isso nos permite afirmar que todos são. Justificamos, assim, a mediocridade de nossos engajamentos políticos e sociais.

Ora, no livro de Hillary Clinton, há três eixos éticos.

O primeiro orienta seu casamento com Bill Clinton. ?Perguntam-me com frequência por que Bill e eu ficamos juntos.(…) O que dizer para explicar um amor que persistiu por décadas e cresceu nas experiências de criar uma filha, de enterrar nossos pais e de nos ocupar de nossos familiares, compartilhando as amizades de uma vida inteira, uma fé comum e uma dedicação persistente ao nosso país? Só sei que ninguém me entende melhor e ninguém me faz rir como Bill. (…) Bill Clinton e eu começamos uma conversa na primavera de 1971; 30 anos depois ainda estamos conversando.?

O segundo concerne à vida pública. Hillary nasceu na pequena burguesia, conquistou o acesso às melhores universidades, tornou-se advogada e, em vez de enriquecer tranquila, escolheu o serviço público. Sua vida é uma série de engajamentos políticos: começou aos 12 anos e continuou até o Senado, passando pelo ativismo nas campanhas de Barry Goldwater (na adolescência, ela era republicana como seu pai), de Jimmy Carter e de Clinton. Sem contar a militância feminista e o trabalho incessante em defesa das crianças menos favorecidas.

Terceiro eixo: nesse percurso, Hillary manteve a disponibilidade ao diálogo, ou seja, a capacidade de reconhecer que o adversário político pode discordar quanto aos meios e às prioridades, mas não por isso ele é necessariamente um inimigo da comunidade.

Em suma, a moral de ?Living History? diz: vale a pena lutar para as relações que importam numa vida, vale a pena dedicar-se ao bem comum e vale a pena reconhecer que os outros podem discordar de nós sem ser bandidos. É uma moral incômoda.

Em geral, preferimos encarar o casamento não como a construção laboriosa de uma vida juntos, mas como uma rápida contabilidade de prazeres: está chato? Acabe logo.

Também preferimos acreditar que a dedicação ao serviço público seja um conto do vigário ou, melhor, do vigarista: trapaceie sem escrúpulos, pois só há trapaceiros. Quanto a quem discorda de você, mande matar ou, não podendo, impeça suas ações, sobretudo se elas forem certas: pouco importa o bem comum, o essencial é que o adversário se rale.

Para desculpar essa mesquinhez, nada melhor que imaginá-la nos outros. Nossa mediocridade sairá melhor na foto, se puder se confundir com a mediocridade de todos.”

 

RÚSSIA

“Governo russo fecha rede privada de TV”, copyright O Estado de S. Paulo / Associated Press, 23/06/03

“O governo russo fechou ontem uma das duas principais redes privadas de televisão do país, tirando do ar uma equipe de jornalistas que estava no centro de um debate sobre a liberdade de imprensa na Rússia nos dois últimos anos. A TVS, criada das cinzas de duas outras redes de TV envolvidas no conflito com as companhias com conexões oficiais, foi tirada do ar no início do domingo. Ela foi substituída pelo novo canal de esportes administrado pelo governo. Alguns funcionários foram informados de que a estação havia sido fechada pelo rádio que ouviam enquanto se dirigiam para o trabalho. Com a TVS fora do ar e a aproximação das eleições parlamentares de dezembro e as presidenciais no ano que vem, o governo amplia sua influência sobre o que é transmitido pelas ondas aéreas do país, novamente levantando dúvidas sobre a liberdade de imprensa na Rússia do presidente Vladimir Putin. O ministro das Comunicações mencionou a ?crise financeira, trabalhista e administrativa? na TVS para justificar a decisão ?que se tornou impossível adiar?, disse ele segundo memorando obtido pela Rádio Eco de Moscou e lido no ar. O ministro disse que a decisão foi tomada em parte ?para proteger os direitos dos telespectadores?. Ninguém foi encontrado no ministério para ser ouvido. O fechamento da rede de TV por problemas financeiros já era esperado. A estação perdeu participação na principal televisão a cabo de Moscou por falta de pagamento. ?O canal podia ser fechado por questão financeira trivial, mas eles adicionaram a dimensão política?, disse o diretor de notícias da TVS, Yevgueni Kiselyov. Ele mesmo havia alertado, na sexta-feira, sobre o fim iminente da TVS.”

“Oposição acusa presidente de punir mídia independente”, copyright Folha de S. Paulo, 23/06/03

“O governo russo fechou ontem uma das duas principais emissoras privadas de TV do país, reacendendo o debate sobre as ameaças do presidente Vladimir Putin à liberdade de imprensa. Putin tenta se reeleger à Presidência no ano que vem.

O Ministério da Imprensa disse que o fechamento da TVS foi decorrente de problemas financeiros e de administração. A TVS havia surgido após o fechamento de duas outras emissoras que entraram em conflito com empresas estatais. Jornalistas e oposicionistas admitem que a estação passada por dificuldades, mas disseram que a ação do governo ameaça a difusão objetiva de notícias.

As transmissões foram interrompidas abruptamente à meia-noite durante uma propaganda. A imagem foi trocada inicialmente por uma tela com barras coloridas e, depois, por um aviso que dizia: ?Adeus. Nós fomos tirados do ar?. Poucos minutos depois, um canal de esportes começou suas transmissões no lugar.

Segundo o governo, a TVS não cumpriu as demandas por transmissões de qualidade e ?afundou em uma crise financeira, de pessoal e de administração?.

Os jornalistas da TVS, alguns deles sem receber salários há três meses, consideraram o fechamento uma combinação de desastre financeiro com intrigas políticas. ?Nossos concorrentes não tiveram o bom senso de esperar nossa morte natural?, disse o humorista Viktor Shenderovich. ?O canal encerraria suas transmissões de qualquer maneira em dois ou três dias por falta de dinheiro.?

Alexei Veneditkov, editor-chefe da rádio Ekho Moskvy, uma das principais do país, disse que o fechamento da TVS visa uma ?nacionalização da mídia?. ?O que temos agora é um completo monopólio do Estado nas emissoras nacionais?, disse.

A oposição ao governo acusa Putin de restringir a liberdade de imprensa no país desde que assumiu o governo, em 2001. Para Boris Nadezhdin, do Partido da União das Forças de Direita, o fechamento da TVS foi ?uma conclusão lógica da política do Kremlin em relação à mídia independente?. ?A TVS era o único canal com condições de criticar de maneira mais dura as autoridades.?

Muitos dos jornalistas da TVS haviam trabalhado anteriormente na NTV, que passou em 2001 para o controle da companhia estatal de gás, Gazprom, após ter adotado uma cobertura crítica da guerra na Tchetchênia. A equipe de jornalismo da NTV se reagrupou então em outro canal, TV6, cuja licença foi cassada em 2002.

Com a preparação para as eleições parlamentares de dezembro e com Putin liderando as pesquisas para a eleição presidencial do ano que vem, a atenção sobre a cobertura política na mídia local vem aumentando. Putin diz que os direitos democráticos devem incluir liberdade de imprensa, mas também avisou às emissoras para terem cuidado de ?não defender interesses corporativos?.”

 

ITÁLIA

“Parlamento dá imunidade a Berlusconi”, copyright Folha de S. Paulo, 19/06/03

“O Parlamento da Itália concedeu ontem imunidade aos ocupantes dos cinco cargos públicos mais importantes do país. O premiê italiano, Silvio Berlusconi, 66, será o primeiro beneficiado, pois evitará a humilhação de ser julgado -e eventualmente condenado- em um processo de corrupção justamente no período em que a Itália presidirá a União Européia, a partir de 1? de julho.

A aprovação da imunidade ocorreu em tempo recorde. Em menos de três semanas, senadores e, ontem, deputados aprovaram o projeto de lei apresentado no final de maio.

O texto foi aprovado na Câmara com facilidade pela maioria de centro-direita liderada por Berlusconi, com 319 votos a favor, 17 contrários e 13 abstenções. Parlamentares dos principais partidos de esquerda (oposição) não participaram da votação em protesto.

O fato de que a Itália presidirá a UE durante seis meses a partir de julho foi um dos principais argumentos do governo para obter apoio à nova lei. ?Considero uma vergonha para o nosso país que o presidente do Conselho de Ministros [premiê], que presidirá a Europa, seja obrigado a comparecer diante de um tribunal?, disse o ministro Carlo Giovanardi, responsável pelas relações com o Parlamento.

A nova lei protege o presidente da República, o primeiro-ministro e os presidentes da Câmara dos Deputados, do Senado e da Corte Constitucional (órgão máximo do Poder Judiciário).

Determina que eles não poderão ser julgados enquanto estiverem exercendo suas funções, inclusive por delitos que tenham sido cometidos antes do início de seus mandatos.

Berlusconi deverá ocupar o cargo de premiê até 2006, a não ser que perca a maioria no Parlamento antes disso. A nova lei será um estímulo a mais para que ele tente a reeleição dentro de três anos.

O texto precisa ser assinado pelo presidente da Itália, Carlo Azeglio Ciampi, e publicado no Diário Oficial antes de entrar em vigor. O processo deverá ser concluído antes de 1? de julho, quando terá início a Presidência italiana da UE.

Berlusconi é réu em um processo em Milão (norte), acusado de corromper juízes para influenciar no processo de privatização de uma estatal nos anos 1980, antes de entrar para a política.

O premiê, no poder desde 2001 como líder de uma coalizão de centro-direita, afirma ser inocente e acusa os promotores de serem simpatizantes da esquerda e agirem por motivação política.

Berlusconi é o homem mais rico da Itália, dono de um império que reúne os três principais canais de TV, jornais, revistas e editoras. Possui interesses em bancos, seguradoras, supermercados, no setor imobiliário e outros.

A oposição qualificou a lei de inconstitucional e acusou o governo de propô-la exclusivamente para proteger o premiê. ?Seu objetivo é favorecer apenas uma pessoa, não toda a sociedade?, disse Graziella Mascia, do Partido da Refundação Comunista.

A imunidade foi criticada pelo jornal ?Financial Times?, um dos mais influentes da Europa, baseado em Londres e especializado em economia. ?Quando um primeiro-ministro usa sua maioria parlamentar para colocar a si próprio acima da lei num caso flagrante de defesa de seus próprios interesses -e que isso seja tolerado por outros governos-, lança-se uma sombra sobre toda a União Européia?, diz editorial do ?FT?.

A imunidade para políticos foi abolida na Itália no início dos anos 1990 quando escândalos de corrupção revelados pela Operação Mãos Limpas atingiram boa parte da classe política, destruindo diversos partidos tradicionais de esquerda e de direita.”