(*)
Nivaldo T. Manzano
Na galeria de personagens de Machado de Assis, há o Santos, protagonista de sua novela Esaú e Jacó, ambientada no Rio no período de transição do Império para a República. Santos é ao mesmo tempo barão e banqueiro, papéis opostos entre si, que se digladiam sob uma mesma pele, pois enquanto o banqueiro quer que a República venha, o barão não quer que o Império se vá.
A preferência por esse tipo de situação, que se caracteriza por fazer interagir num mesmo contexto ? no caso, a pessoa de Santos ? processos ao mesmo tempo concorrentes e conflitantes, é a marca registrada do mestre da literatura brasileira. Enquanto os papéis disputam entre si a sua pessoa, Santos busca tirar proveito do conflito, fazendo-o co-evoluir, ao se deixar levar pelo que lhe parece ser a direção da mudança. O que o orienta é a expectativa de se sair bem, qualquer que seja o desfecho.
Machado faz incidir a sua verve de fino observador da realidade sobre o estado de mudança em que se encontra Santos, a respeito de quem se poderia dizer que já não é o que era e ainda não é o que será. Ou que ainda é o que era e já é o que será. Santos, que simboliza a transição social e política do regime, é a expressão da metamorfose, talvez o mais explorado estado da existência dentre a extensa gama de estados escandidos na obra do escritor.
Um aspecto da novela que nos interessa de perto é a ênfase que Machado põe na realidade unitária da pessoa de Santos que, longe de se dissolver no conflito, encontra neste estímulos, tão mais tonificantes quanto mais a crise aperta, para se recompor. Cronicamente dividido entre pólos que não se fundem nem se consolidam, o Santos unitário é também um símbolo da tensão que caracteriza a singularidade da existência, da qual o novelista não abre mão.
Aos olhos do autor ? e ninguém ousaria contrariá-lo neste ponto ? , a singularidade da existência é um valor absoluto, enquanto os papéis, associados à imagem do Império e da República, são meras abstrações, ainda que concretas. Abstrações, porque poderiam ser outros, enquanto Santos permanece necessariamente o mesmo enquanto muda. Por mais atrevidos ou numerosos que sejam, os papéis não se ombreiam com a auto-suficiência da pessoa, a ponto de ganhar autonomia e assumir o seu lugar, o que é prerrogativa de Santos. Ao que se sabe, ninguém jamais viu um par de orelhas desgarrar-se da cabeça, para se aventurar em adejos por conta própria.
Mas isso não quer dizer que elas não tentem fazê-lo. O próprio Machado chamou atenção para essa possibilidade, ao criar um outro personagem, o dr. Simão Bacamarte, do conto "O alienista". O protagonista Bacamarte deixa-se consumir tão completamente pelo seu papel de médico e cientista a ponto de renunciar a tudo mais, até ao amor de Dona Evarista. A sua tragicomédia, que põe em desassossego uma cidade inteira e, ao final, o próprio Bacamarte, é lembrada ainda hoje na patologia como uma das melhores contribuições científicas de Machado para o esclarecimento de casos de vampirismo por parte de papéis que proclamam a auto-suficiência. O cientista Machado teve o mérito de mostrar que pelo menos no caso do médico de Itaguaí, as suas orelhas profissionais desgarraram-se, com funestas conseqüências para o seu portador e para os que viviam à sua volta.
Infelizmente, tais ocorrências parecem não se conter nos limites da ficção. Por mais estranha que pareça ao leitor, uma tal hipótese fantasiosa é corriqueira no dia-a-dia da ciência, por exemplo, pelo menos até o advento da mecânica quântica. Mediante o procedimento a que os cientistas dão o nome de "experimento controlado", costuma-se metaforicamente isolar os papéis da pessoa de Santos, removendo-lhe o contexto de sua existência, a pretexto de enxergá-lo melhor e à transição do Império para a República.
Graças ao experimento controlado, os cientistas conseguem fazer o conflito mudar de natureza, uma proeza que testemunha a presença de uma centelha divina na inteligência humana. A centelha tem o condão de fazer com que uma situação real indomesticável se converta numa situação artificial domesticada, sem que ninguém manifeste estranheza. O processo de doma consiste no seguinte: antes de se debruçar sobre os objetos com que trabalha, e deles extrair o que chama de objetividade, a ciência os reconstrói metodologicamente, ou seja, retira-os artificialmente de seu contexto singular, para lhes dar uma dimensão universal. Ela não hesita em fazê-lo porque sabe, embora não o confesse, que a existência em seu estado bruto lhe escapa.
Tem-se aqui o exemplo. Enquanto na termodinâmica, para todas as substâncias puras, o ponto de fusão e o ponto de solidificação coincidem, se a pressão for mantida constante, no caso de Santos a lei não poderá verificar-se enquanto ele estiver sujeito ao conflito entre os papéis. Sendo inconstante a pressão a que está submetido, não é possível saber se haverá coincidência ou não entre os pontos de fusão e de solidificação de seus papéis ? e, assim, não se pode fazer alguma previsão sobre o comportamento futuro da substância Santos. O problema para a ciência é que, enquanto permanecer vinculado a seus papéis, Santos não será matematizável ? e ela não conhece outra linguagem senão a da lógica matemática.
Para se construir o problema "científico" Santos, barão e banqueiro, no idioma que os cientistas entendem, seria preciso remover-lhe o conflito, que as linguagens formais não toleram. Aos olhos destas, nada pode ser e não ser ao mesmo tempo. Assim, para conformar o "objeto" Santos aos princípios de identidade e de não-contradição, o banqueiro deveria ser isolado do barão, e ambos de Santos, recebendo cada um tratamento em separado. Suprimem-se, assim, a metamorfose, a ação dramática, as expectativas e as frustrações, as incertezas e os riscos, a transição, a mudança. Em troca, os cientistas das orelhas sem cabeça estariam nos oferecendo a possibilidade de controlar a realidade, assim como pensou fazer o aprendiz de feiticeiro, da lenda de Goethe.
Para o cientista Bacamarte ? e supostamente para a humanidade ? haveria mais de uma vantagem em se proceder dessa maneira. A primeira é que se simplifica o problema; a segunda é que, em conseqüência, a solução ganha um alcance universal; a terceira é que o comportamento de Santos torna-se previsível, podendo-se saber antecipadamente se o conflito vai resolver-se em favor da República ou do Império.
Enquanto os papéis se digladiarem na pele de Santos, o conflito, sendo real, terá um desfecho imprevisível. Sujeitando-se, porém, ao tratamento lógico matemático, que lhe remove as orelhas, o conflito entre os papéis encontra solução numa direção tão previsível como é a trajetória dos planetas. Poder prever, e mesmo predizer, para se ter o controle da realidade ? eis a grande vantagem da lógica matemática, diria Bacamarte. O conflito torna-se domesticável graças ao fato de que, desvinculados de Santos, seus papéis convertem-se em coisas inertes, incapazes de esboçar sequer um muxoxo. Pois o que torna o desfecho imprevisível é a sua interação no interior da existência singular do titular das orelhas. Interagindo entre si e com Santos, os papéis mudam a si mesmos e a Santos, sem que se possa saber antecipadamente no que isso vai dar.
Esse é o tributo que se paga à ciência que se põe a simplificar a realidade complexa. Para poder separar os papéis de Santos, no Rio, ou a loucura da razão, em Itaguaí, o cientista Bacamarte elimina a unidade do ser humano, na qual reside a possibilidade de encantamento e da realização do sonho. Perde Dona Evarista e também ele. É a unidade, e somente ela, que caracteriza e articula um modo de existência em que tudo é revogável e em que nada é definitivo.
A simplificação científica, mesmo quando a serviço de uma nobre causa, como a de Bacamarte, é prenhe de grave conseqüência. Ao ser transposta do plano da realidade concreta para o da abstração lógico-matemática, a situação de Santos ? o seu contexto ? , é convertida numa abstração que se basta a si mesma. Nessa condição, os papéis opostos, agora identitários, em vez de ganharem vida própria, eliminam-se mutuamente, tão logo cheguem ao desfecho de sua luta intestina. No plano da lógica, do qual está ausente o protagonista real do conflito, o vencedor não subsiste na ausência do perdedor.
A grave conseqüência é que, mudando de plano, esfumam-se não somente os papéis, mas também o próprio Santos, por razão inversa e complementar. Pois é impossível a alguém, que não se confunde com seus papéis embora deles não se desprenda, fazer-se presente a si mesmo e aos outros sem a sua mediação. Em resumo: o conflito deixaria de existir e Santos também.
Isso nos conduz à conclusão de que a condição para que ocorra a transição do Império para a República é que não se suprima o conflito; que não se elimine Santos nem se remova seu par de orelhas conflitantes. É a tensão permanente do conflito que dispara o gatilho em resposta à mudança. Não sendo coisas, os papéis atuantes, enquanto se mantiverem vivos na dependência carnal e ilógica de Santos, serão a garantia não somente da maturação do conflito e de sua solução, mas também da possibilidade de Santos colaborar consigo mesmo, ao evoluir, sonhar, renunciar, sofrer, amar, viver. Em lugar da coisa, tem-se um processo.
O costume de se fazer ciência à moda de Bacamarte, restringindo seu papel à tentativa de submeter a realidade a seu controle, mediante experimentos, leva a que raramente se indague sobre o que poderia ocorrer numa situação inversa, na qual se deixasse o controle por conta da realidade. À exceção do médico de Itaguaí ao fim da vida arrependido, não se encontra quem busque uma resposta para a questão sobre quem controla quem. Ou haveria dúvida quanto à certeza final do Bacamarte reabilitado de que é a realidade que nos controla e descontrola a nossa ilusão de controle?
Na tentativa ilusória de controlar a realidade, a ciência inspirada no paradigma da física clássica apoia-se numa metodologia que pressupõe a remoção do contexto, como condição para erigir a realidade em objeto científico. Existissem várias metodologias, várias realidades ou várias ciências, a questão não chamaria tanta atenção de quem está de olho nela. Como, porém, existe uma só realidade e uma única metodologia oficialmente consagrada pelas ciências exatas ? a que se apoia na lógica matemática ?, continua sem resposta a pergunta sobre que realidade é essa de que trata a ciência de Simão Bacamarte antes da cura. Sim, porque a única realidade conhecida, com a qual lidamos e na qual estamos imersos, sem dela podermos sair, é a realidade contextual. Nada que diga respeito à realidade existe fora de contexto, com exceção dos papéis auto-suficientes, que são dela um arremedo. É, portanto, razoável sugerir com Machado que se empenhe pelo menos algum esforço em enxergar melhor o contexto, para contrabalançar o que parece ter-se convertido em uma cruzada universal em favor da descontextualização. Com essa sugestão, o que se pretende é preservar a singularidade da existência de Santos ou de Bacamarte e a tensão de que ela se alimenta ? , pessoas como nós insubmissas ao tratamento lógico-matemático, porém razão de ser da ciência.
Em razão de sua banalidade, parece ser desnecessário dar exemplos do hábito de pensar fora de contexto (um espaço de representação tridimensional ? referências, função e infra-estrutura ? que pode ser definido quantificando-se ou qualificando-se valores em cada dimensão). Na verdade, o leque é tão amplo que o caminho mais curto seria começar pelas exceções. Se é o capital ? uma relação social coisificada ? que tem a força hegemônica e a pretensão de controlar a realidade, dos cassinos à vida íntima, como esperar por um quadro diferente? Somente o controle e o comando do capital são suficientes para sugerir a idéia de que a exclusão do contexto opera em nós como uma segunda natureza, geradora e prolífica como a primeira. Como uma peste, o capital coisifica tudo ao seu redor, a começar do enorme contingente de pessoas privadas de condições mínimas necessárias a uma vida digna, que ele gera. São o lixo da sociedade afluente.
Para dar um exemplo apenas do pensar fora de contexto, vai retomar-se aqui um caso de outros animais sociais, cuja atenção "contextual", para a coesão do grupo, parece exceder a humana, com o benefício das vantagens a ela associada. Observe-se um bando de macacos na floresta. Para eles, a comunicação, entre outras funções, é crucial para poderem antever o perigo. A perda de contato com o grupo pode ser fatal por um sem-número de razões. Para assegurar a comunicação, está tacitamente "combinado" entre os membros do grupo que o comprimento do raio (distância) que assegura a coesão grupal não pode ser fixo. Deve poder estender-se ou contrair-se de acordo com a referência do contexto. Quando a cria de uma fêmea de símio ainda não chegou à idade adulta, por exemplo, a distância para ela é dada pelo alcance da mão da mãe. Quando ocorre a percepção de um perigo, a distância se encurta.
É a interpretação contextual de cada membro do grupo que leva o grupo como um todo a interpretar o contexto grupal. É este que estabelece o comprimento do raio, variável a cada momento e que, por isso, estimula a estruturação da percepção de sua coesão. A distância não é simplesmente aquela na qual o animal perde contato com o grupo a que pertence, pela visão ou pelo olfato, por exemplo. Trata-se de uma dimensão "psicológica", uma representação de sua realidade, segundo a qual o animal, ao transpor o limite, começa a dar mostras de ansiedade. O limite seria como que uma franja imaterial (o contexto) que circunda o grupo, mantendo-o espontaneamente unido, algo que o dispensa de ser conduzido por um chefe. E ainda que o fosse, tanto o chefe quanto os membros do grupo não se orientam por disposições estruturais e hierárquicas predefinidas: a liderança estabelece-se no contexto. As "decisões" são tomadas em resposta à mudança do contexto, sem que nenhum membro do grupo tenha de se sujeitar a outro e sem que as deliberações individuais colidam entre si a ponto de destruírem a coesão grupal, o que seria fatal perante o inimigo à espreita.
É fácil de observar que, nessa situação, quem controla os macacos não são eles, mas a sua realidade, em mudança. A exemplo de um sábio chinês, o grupo está atento ao estímulo do ambiente, que dispara a sua resposta à mudança contextual, para tomar a decisão que o contexto recomenda. É dizer que, por estarem exercitando livremente a sua "criatividade" na exploração do espaço, encontram-se em pleno exercício de sua capacidade de se orientar no contexto, controlando o risco. Diante disso, seria plausível admitir que, se fosse possível transmitir-lhes algumas tinturas da ciência humana descontextualizada ? como, por exemplo, noções sobre como remover o conflito ou como simplificar a realidade complexa ? a sobrevivência do grupo animal estaria seriamente ameaçada.
Em contraste com as sociedades animais, nas quais o comprimento do raio de coesão grupal varia de acordo com o contexto, tem-se no caso da organização humana atual um comprimento de raio determinado e não variável. Se essa fixação, que resulta na remoção do contexto, é o preço que paga a espécie humana pela capacidade de abstrair, essa é também a condição sine qua non para o exercício do poder autoritário. Observe-se a fixidez da distância estabelecida pela organização hierárquica, a coreografia do prestígio e do status mandonistas associada aos espaços funcionais, e os rituais encenados para a exibição da arrogância auto-suficiente.
Essa é a visão de quem tem medo, e tem medo porque suspeita acertadamente de que não consegue controlar a realidade. Não consegue controlá-la, porque removeu do contexto o diálogo, implantando em seu lugar o monólogo, que gerou, em conseqüência, a insegurança. A insegurança é a ausência em si mesmo de outras visões.
Instalado atrás de altas muralhas ? físicas, morais ou psicológicas ?, o poder hierárquico não enxerga sequer a si mesmo. É a própria imagem da impotência orgânica do olhar que se recusa a enxergar, abrir-se para a visão de outrem, para poder enxergar-se a si próprio. É o desconhecido partilhando a própria casa, assombrada por ele mesmo. Por isso, na história de uma escalada de poder hierárquico há sempre um rastro de sangue.
Por isso também o poder hierárquico somente se concebe em escalada. A escalada é a roda em aceleração crescente, que gira em falso. Seus dentes não mordem a realidade, não engatam com a visão de outrem. O poder hierárquico é o delírio do próprio poder. É a exclusão não somente de outrem, mas também a exclusão de si mesmo da realidade. Isso é o controle da realidade, a primeira e última ilusão de quem acredita poder remover o contexto.
(*) Excerto do livro A metamorfose de Simão Bacamarte ? uma introdução à autogestão da vida quotidiana, a ser lançado neste ano.