ARGENTINA
Jorge Marcelo Burnik (*)
O espaço na mídia argentina agora está sendo ocupado não por novos figurantes, e sim por um novo discurso, auspiciado pelo governo. A nova versão da situação do país na voz dos "representantes" é que a situação de crise na Argentina é culpa de todo o povo. Então, se esta idéia prosperar, o desejo dos mesmos figurantes do poder é que o povo se sinta culpado, porém não peça mais que sejam justiçados os que esvaziaram as riquezas do país e vampirizam o Estado com a corrupção.
Em meio a estes cataclísmicos prognósticos, os políticos continuam á roubalheira vulgar com a total certeza de impunidade, como o apresentou o jornal La Nación de 16/5/02, <www.lanacion.com.ar/02/05/16/dp_397063.asp>. Fisgado pela objetiva de um fotógrafo, o país viu o senador e ex presidente argentino Raul Alfonsín lendo "maliciosamente" um bilhete que minutos antes lhe fora entregue anonimamente. O bilhete: "Me dicen juez que hay que cajonear es Antelo" (me falam: juiz que terá de ser arquivado é Antelo). O Senado, nesta infausta hora, escolhia o juiz para a Corte de Apelações, e Guilherme Antelo era candidato (aqui os juízes ainda são designados pelos outros poderes). Mais um autêntico vexame no Senado, registrado ao melhor estilo Big Brother, graças á mídia, que virou uma verdadeira dor de cabeça para a maioria dos arcaicos políticos argentinos.
Com se tivesse sido pouco o flagrante do senador Alfonsín com o bilhete sugerindo a decisão sobre o futuro de um dos candidatos, o mesmo senador, no programa televisivo El juego limpio (O jogo limpo, TN, sexta, 17/5/02) esclareceu ao povo que na percepção dele a palavra "cajonear" (encaixotar, arquivar) significa "estudar" a situação do juiz. Se isto não é apoquentar a inteligência do povo, então, na Argentina, teremos que aprender o significado de todas as palavras de novo.
A mídia também denuncia que nestes tempos de vacas magras para o país o presidente Duhalde usou ? do já faminto povo ? recursos exagerados para sua viagem à Espanha e à Itália: a diária do hotel, paga com recursos argentinos, era de US$ 1.800 na suíte que ocupou Duhalde, isto sem mencionar outros 25 quartos ocupados pela sua farta comitiva. Enquanto o país agoniza, os funcionários ainda não perceberam que a festa acabou, ou pelo menos deveria ter acabado, também para eles.
Perante o niilismo crescente para acreditar numa saída justa e eqüitativa ao multidimensional sentido adquirido pela palavra crise, o governo argentino optou pela fácil "negação da realidade"; o secretário de Governo, Anibal Fernández (programa Periodistas, America TV), apostou numa antiga estratégia política que muitos acreditavam esgotada: negar que a realidade seja como as pessoas a percebem, dizendo que a percepção certa é a dos políticos, únicos iluminados nas trevas do futuro do país.
Na mídia argentina esta surgindo um novo perigo, o de desvalorizar tanto a palavra quanto a moeda do país. Todos estão falando de tudo, ao ponto de que já se fala da era pós-Duhalde (Adrian Paenza, América TV). Num marco no qual os partidos políticos tradicionais da Argentina vivenciam uma "diasporização ideológica", fica claro que o país mudou, a mídia mudou, só os políticos argentinos não mudaram, e continuam apostando na aglutinação para se manter com a estratégia que garantiu grandes dividendos durante muitos anos. A mídia denuncia e documenta fatos de corrupção e manipulação, até mesmo com câmeras ocultas <www.puntodoc.com>, e ante cada revelação o poder nega a veracidade de tudo, sem ao menos sugerir uma pesquisa sobre os casos. Isto apavora o povo, que a cada dia mais acredita em teses com as do jornalista Greg Palast (BBC, The London Observer), que fala de uma sistematização para "esvaziar e violentar" países pobres, monitorada pelo FMI e o Banco Mundial (ver <www.gregpalast.com/detail.cfm?artid=138&row=1>.
A sentença de Sêneca
Hoje se fala em termos híbridos na mídia argentina,
tais como a necessidade de um verdadeiro "sincericídio
político" diante do povo, especificamente no tocante
ao projeto da "lei de subversão econômica"
atualmente debatido no Congresso. A eliminaçao da lei, na
voz de Marcelo Zotoviazga (America TV), "não é
aceitável de jeito nenhum para o povo argentino, mas é
uma exigência do FMI para dar algum tipo de ajuda ao atual
governo argentino". Aprovada com o perfil exigido pela instituição
financeira internacional, absolveria de culpas os grandes banqueiros
que tiraram o dinheiro das poupanças de milhões de
argentinos e o levaram a paraísos fiscais.
A tal ponto chegou a chantagem e a pressão a respeito desta lei que o próprio Duhalde invadiu a mídia na passada semana com uma posição de ruptura, ao ameaçar: "Se o Congresso não aprovar o projeto, vou embora." O que foi traduzido pela mesma mídia como mais uma amostra do vernáculo soberbo do presidente, ao propor como saídas: Duhalde mesmo ou o abismo. A intenção de narcotizar a consciência do povo sugerindo que não há outra alternativa que aceitar as diretivas do FMI obteve imediata condenação midiática, furando o efeito procurado pelo governo com esta absolutista resolução. Mas a falta de apoio do próprio partido do atual presidente poderia, sim, obrigá-lo a sair do poder antes do ano próximo.
Em outras discussões midiáticas, as propostas foram mais ousadas. Em Brokers (CVN TV) surgiu até a possibilidade de uma manobra qualificada como "virtual fujimorização do governo Duhalde", ante a falta de apoio interno e certezas no curto prazo. O povo, do seu lado continua expectante, com a convicção de que o país hoje esta sendo "governado pelos fatos, e não pelos seus dirigentes".
Eventualmente a mídia resgata o mérito de ser o reflexo da realidade, mesmo que muitas vezes só apresente uma reconstrução dela, mas hoje poder-se-ia dizer que a mídia e a realidade concorrem para ver qual supera a outra, numa surrealista paranóia; os fatos da realidade apresentados pela mídia parecem encenação, pela dramaticidade das matérias. A imaginação coletiva é constantemente superada pelo supra-realismo do dia-a-dia. Metaforicamente falando, a sensação das pessoas nas ruas é que deste filme de horror que virou o país o povo é o protagonista estelar; o governo, porém, é um dos antagonistas, só que ninguém conhece o final do dramático thriller.
O desnorteamento e os contrastes são a cada dia mais profundos, na mídia e na realidade. Dada a distância temporal, uma sentença de Sêneca parece ter sido inspirada na atual situação da Argentina: "Não há ventos favoráveis para o barco que não tem rumo certo…"
(*) Jornalista graduado na Universidade Nacional de Misiones, Argentina