Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Contra o relativismo cultural, pelo fundamentalismo midiático

VEJA

Jonas Medeiros (*)

A revista Veja (n.? 1.721, de 10/10/01) escreve, na reportagem intitulada "O que querem os fundamentalistas": "[o fundamentalismo] está entranhado no próprio código genético do Islã, religião que tem uma visão totalizante do mundo e apresenta um modelo para tudo o que se faz em qualquer das esferas da vida, públicas ou privadas".

Há um enorme esforço da mídia e dos governos que têm manifestado apoio à coalizão militar liderada pelos EUA de afirmar que a guerra está sendo travada contra o terror (Bin Laden e o Talibã), e não contra o povo afegão ou o Islã. Veja, inesperadamente, coloca toda a religião islâmica como responsável pelo aparecimento de práticas radicais.

A revista insiste em apontar a religião muçulmana como primitiva. Primeiramente em 26/11/01, Veja entrevistou o historiador inglês Paul Johnson, que disse: "Já o islamismo [em oposição ao judaísmo e ao cristianismo] não passou por um correspondente período de modernização. Permaneceu uma religião de feições medievais e gerou Estados de feições medievais, nos quais religião e política não se separaram uma da outra."

Duas semanas depois, a revista retoma este discurso: "Uma comparação que ajuda a entender a mentalidade fundamentalista é com a Igreja Católica na fase em que se encontrava quando tinham a mesma ?idade? do Islã hoje." Incapaz de pensar a história de diferentes religiões como cristianismo e islamismo de forma separada, Veja faz uma interpretação positivista, pois pensa ser necessário que o desenvolvimento das religiões passe pelas mesmas fases. A revista não consegue ver as duas religiões de maneira separada, como processos que têm desenvolvimento próprio e não necessariamente paralelo.

Os seguidores de Bush

Este fato demonstra coerência com os repetidos ataques ao ?relativismo cultural?. Em 19/9/2001, Veja escreveu: "O relativismo cultural, teoria formulada na década de 30 pelo antropólogo americano Melville Jean Herskovitz, preconiza que nenhuma cultura é superior a outra. Que cada uma deve ser entendida dentro de seu próprio contexto (…) Com os atentados, o relativismo sofreu um abalo: por: alguns dias, pelo menos, o mundo voltou a ser dividido entre países civilizados e nações bárbaras. E, contra os bárbaros, políticos e analistas pediram ?vingança?".

Qualquer semelhança com o discurso do premiê italiano Silvio Berlusconi não é mera coincidência (para quem não se lembra, ele falou da superioridade da civilização ocidental frente à islâmica). Antes da entrevista com Paul Johnson, Veja enalteceu certa característica do historiador: "O inglês Paul Johnson é um homem sem meias palavras. Enquanto boa parte dos intelectuais do Ocidente lança mão de eufemismos e procura relativizar a responsabilidade das nações islâmicas nos atentados terroristas aos Estados Unidos, Johnson ataca de frente."

Veja manipula os fatos para mostrar ao seu leitor o que é de seu bom grado. A revista festeja o nascimento de uma nova geração: a de estudantes de grandes universidades americanas que, contrariando a tradição, deixaram de ser "críticos implacáveis do sistema e do governo dos Estados Unidos" e organizam manifestações de pesar e de orações pelas vítimas do atentado.

Os jovens seriam a favor de uma retaliação e até estariam dispostos a se alistar em uma unidade militar caso fosse preciso. Depois da campanha contra o relativismo cultural, Veja escreve: "Com o fim da guerra [do Vietnã], a rebeldia se transformou em muitas universidades num esquerdismo acadêmico. Antes redutos da contracultura, muitas universidades, como Stanford e Berkeley, se tornaram campeãs do relativismo cultural. Mais recentemente, elas também alimentaram os protestos de rua contra a globalização". Após os atentados, o tom teria mudado: "Depois de 11 de setembro nós amadurecemos como geração. Temos o mesmo inimigo. E agora o governo está nos chamando. Precisamos atender a esse chamado ? porque, se não formos nós, quem irá?", diz um jornal estudantil.

"Lentos e vistosos"

Veja comemora que não haja mais queimas de bandeiras americanas e que agora os jovens gritam no campus universitário "USA! USA!" E diminuem as manifestações pela paz, as críticas à retaliação. A revista compara os números das manifestações: 12 mil estudantes em Berkeley condenando os ataques terroristas e 2.500 manifestantes em defesa da paz (o local não é dado). Veja simplesmente ignora os cerca de 300 mil ativistas que foram às ruas contra a guerra e a retaliação, dos quais pelo menos 60 mil eram americanos <http://pax.protest.net/Peace/protest_numbers.html>.

A revista divulga apenas os fatos que lhe interessam para construir uma certa imagem para seus leitores. Esta nova geração da qual Veja fala é, de fato, uma minoria, como pode ser visto pelas inúmeras manifestações nos EUA e ao redor do mundo contra a globalização, o capitalismo e a guerra.

Como Veja não vê razão em criticar o capitalismo (é o sistema social e econômico "mais justo e livre que a humanidade conseguiu fazer funcionar ininterruptamente até hoje", como foi dito na Carta ao Leitor de 19/9/01), quem o faz é duramente repreendido pela revista. Na edição de 3/10/01, Veja já tinha dito que o antiamericanismo (ou qualquer posição contrária à política americana) é hipócrita, tolo, oportunista, primitivo, lunático, irracional, ignorante ou invejoso. Na edição de 10/10/01, a revista caracteriza os opositores como lentos, cretinos, masoquistas, estúpidos e preguiçosos, às vezes usando as palavras do jornalista inglês Christopher Hitchens.

Veja fala no "embate de idéias, natural nos ambientes intelectuais", mas esquece a possibilidade e, inclusive, a necessidade da discussão e do pluralismo de idéias na mídia. A revista claramente apóia o lado de Hitchens na discussão com o lingüista americano Noam Chomsky. O primeiro é descrito como "o mais vistoso combatente da turma dos rápidos", enquanto o segundo é caracterizado como "ícone de esquerda e último refúgio dos preguiçosos", ficando "patentemente do lado dos lentos".

Viva o mercado livre

A revista, certa de que há uma nova ordem mundial, acha necessário que se mude de discurso, que todos têm de rever suas posições. Por isso, intelectuais e estudantes que mudaram de opinião e agora defendem ardentemente os EUA estão certos; aqueles que não deixaram de ser críticos à política americana estão errados.

Aparentes mudanças na diplomacia americana, como falar na criação de um Estado Palestino e doar US$ 320 milhões aos afegãos, são ressaltadas e usadas como argumento para a revista justificar a impossibilidade de crítica aos EUA. Quem o fizer, estará errado.

Como não poderia deixar de ser, Veja vê com otimismo o que vem pela frente. "Embora seja natural imaginar que as medidas de segurança vão dificultar o trânsito de pessoas, bens e dinheiro pelo mundo, o processo de globalização vai ser aprimorado." Para chegar à conclusão de que "chegou o momento de os países pobres realmente se aproveitarem dos benefícios da globalização", a revista ouviu:

** James Wolfensohn, presidente do Banco Mundial, autor da frase acima;

** Paul Krugman, economista americano (já ouvido na edição de 3/10/01;

** Allan Meltzer, professor de Economia na Universidade Carnegie Mellon, ligado à equipe de Bush;

** James P. Moran, congressista democrata;

** Robert Zoellick, secretário de Comércio americano.

Não foram ouvidos especialistas, políticos ou cidadãos comuns que vivam nos tais "países pobres". Não consulta-los mostra que:

** Veja assume o discurso dos países ricos;

** Impõe a concepção vinda de fora de que os problemas sociais serão resolvidos pelo livre mercado;

** Não há discussão desta concepção: os verdadeiros interessados nesta empreitada são os países pobres, que não são ouvidos;

** A conclusão é que não há opção a não ser se abrir ao "livre comércio".

Além de não se demonstrar democrática, Veja revela uma visão economicista, mais preocupada com as finanças do que com o social. O esforço dos países ricos não visa de imediato reduzir a pobreza e, sim, "[arregaçar] as mangas para mostrar que estão dispostos a evitar maiores sustos no mercado". Não se trata de resolver os problemas sociais, mas de que "as crises financeiras serão mortas no nascedouro, antes que contagiem outros países", segundo Allan Meltzer. E a saída para todos os problemas é dada por James P. Moran: "A arma mais poderosa de que dispomos para combater esse inimigo [a pobreza] é um mercado livre e aberto."

Sistema? Que sistema?

Veja escreve na capa: "Os fundamentalistas querem dominar o mundo em nome de Alá." E depois escreve no final da matéria: "O que querem os fundamentalistas: Como se diria no jargão de uma doutrina fundamentalista, já extinta, eles se afastaram das bases ? e por isso estão condenados ao fracasso."

Considerando que a revista tomou a liberdade de falar em outro fundamentalismo (o socialismo visto por Veja), o melhor seria abrir a discussão para todos os tipos. E o primeiro a ser lembrado deveria ser aquele que já domina o mundo em nome do dinheiro: o fundamentalismo econômico. Se estamos falando em formas de dominação mundial, por que o capitalismo não é lembrado pela revista? Porque na concepção de Veja o capitalismo não é uma dominação, é o sinônimo de liberdade, igualdade e fraternidade.

Apenas para mostrar como a concepção ideológica de Veja invade toda a cobertura jornalística da revista, retomo a matéria ?A cultura do apocalipse?, de 19/9/01, em que se lê: "O polêmico Clube da Luta é outra produção que aborda o inimigo interno. O filme acerta em cheio ao mostrar a mistura altamente volátil de frustração, vazio, fanatismo e revolta mal dirigida que compõe a personalidade dos terroristas. Os personagens interpretados por Edward Norton e Brad Pitt acham que a esterilidade de suas vidas é uma decorrência do consumismo ? e que a culpa, portanto, não é deles, mas do ?sistema?. Por isso criam uma seita neofascista e vingam-se com uma escalada de atos de vandalismo que culmina no bombardeio de prédios ligados a companhias de crédito e congêneres."

Ao interpretar um filme, uma manifestação artística por sua concepção de mundo, Veja cai no erro de analisá-lo literalmente (quando é, na verdade, uma metáfora). Como o capitalismo é, segundo a Veja, imune a ataques, um filme que faça uma crítica ferrenha a ele será tido como errado e "neofascista".

A palavra "sistema" colocada entre aspas mostra uma certa ironia da revista, que considera impossível o indivíduo ser sujeitado por sistemas, como a sociedade. Enfim, por sua ótica, Veja deturpa o filme e transforma a destruição dos prédios de empresas de crédito em vingança, quando representam a libertação da exploração dos juros que tais empresas impõem aos cidadãos.

Silêncios e falações

** Em 3 de outubro, trabalhadores, professores, estudantes e políticos marcharam em Brasília, na Esplanada dos Ministérios, pela defesa da qualidade da educação pública. No mínimo 22 mil pessoas (segundo a polícia) se manifestaram e, no máximo, 60 mil (segundo os organizadores). Em nenhuma matéria, em nenhuma nota foi citada a marcha pela educação. Veja simplesmente ignorou este fato que foi, sem dúvida, um dos mais importantes da semana. Os manifestantes queimaram um boneco do ministro da Educação, Paulo Renato. Será que motivos políticos (como a campanha presidencial) determinaram a não-cobertura da revista?

** Em 10/10/01, Veja deu uma pequena nota na seção Sobe-Desce: "José Ignácio Ferreira ? Atolado em denúncias de corrupção, o governador do Espírito Santo sofreu novo golpe: o PMDB recusou sua ficha de filiação." Há dois anos, em 27/1/99, a revista fazia uma matéria de três páginas intitulada "A lição de Ignácio aos sete de BH". Este chamado G7 eram os governadores estaduais de oposição (dos estados de MG, RS, RJ, MS, AC, AP e AL, preocupados com a discussão da renegociação da dívida). O governador do ES é descrito como grande político que "conseguiu colocar o Espírito Santo no mapa do Brasil". Preocupado com o equilíbrio das finanças, demitiu 21 mil servidores temporários e reduziu a jornada e o salário dos funcionários do Executivo. "José Ignácio não só apertou o cinto. Ele está brandindo o chicote da moralização administrativa." Dois anos depois, expulso do partido governista, PSDB, o governador mal é lembrado pela revista. Por que esta diferença de espaço ? uma matéria de três páginas vs. uma nota de três linhas?

A insistência em atacar o relativismo se deve à incapacidade de Veja de mostrar aos seus leitores diversos pontos de vista. Luiz Antônio Magalhães escreveu no Observatório da Imprensa em 19/9/2001, sobre a editorialização da revista: "É preciso convencer o público de que Veja tem razão. Sempre." Negando a possibilidade de relativizar, a imposição da versão da revista fica justificada. E frases como "Ou estão do nosso lado ou do lado dos terroristas" podem ser aceitas sem contestação. De fato, parece que ser contra o relativismo cultural nada mais é que um tipo de fundamentalismo, de caráter midiático. Uma revista democrática aceitaria o relativismo como maneira de apresentar fatos de diferentes pontos de vista, uma forma pluralista que demonstraria múltiplas interpretações, deixando o leitor pensar e decidir a melhor, não impondo a própria visão.

(*) E-mail <jsm_b_r@yahoo.com.br>

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