Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Contra os dogmas e tabus

VIOLÊNCIA JUVENIL

Alberto Dines

A correção política exige o debate ? aberto, intenso, sem interdições. O dogma intocável é um tabu, e todos os tabus são moralmente indefensáveis. Debates não acontecem por acaso, são motivados por fatos. Forçar a sociedade a engolir o horror, e fechar os olhos ao que acontece, equivale a sufocar sua capacidade de reação, anestesiar sua sensibilidade, condená-la à inação. É antidemocrático, obscurantista e pernicioso.

Quem teve a coragem de remexer no tabu da maioridade penal foi D. Aloísio Lorscheider, em seguida à identificação dos assassinos de Liana e Felipe e divulgação dos detalhes sobre a selvageria que os vitimou. O cardeal-arcebispo de Aparecida dispensa apresentações, campeão da resistência contra a ditadura, paradigma da intransigência em torno dos direitos humanos. É um herói nacional ? não temos muitos.

D. Aloísio não fez um arrazoado jurídico ou bacharelesco nem trouxe uma nova redação ao artigo 228 da Constituição. Ferido na sua condição de ser humano e religioso, fez uma reflexão e convocou outros a acompanhá-lo. Logo levantaram-se os dogmáticos, acríticos, autoritários e antes mesmo de começar a discussão sobre a alteração na maioridade penal resolveram encerrá-la com o tacape do politicamente correto.

O rabino Henri Sobel, com uma folha de serviços irrepreensível na defesa da democracia, dos direitos humanos e do ecumenismo, por ser mais jovem, e líder da congregação freqüentada pela família de Liana Friedenbach, deixou-se levar pela emoção e chegou a propor a adoção da pena de morte, reconhecendo porém a prevalência do mandamento “Não matarás”. Mereceu a enxurrada de críticas, recuou, mas insiste no debate sobre a maioridade penal.

O governador Geraldo Alckmin, devoto católico, como cidadão consciente e homem público reagiu da forma irrepreensível. Sua polícia prendeu os assassinos em tempo recorde mas ele sentiu-se indiretamente responsável pela barbaridade ocorrida em seu Estado. Em vez da inação escandalosa assumida pela área federal, sugeriu mudanças concretas e factíveis no ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente).

O chefe do Poder Judiciário, ministro Maurício Corrêa, presidente do Supremo Tribunal Federal, endossou a proposta do governador. Viu nela a possibilidade de diminuir a impunidade e mostrar a capacidade do poder público de reagir às agressões.

O Executivo não executou coisa alguma. Sequer incentivou a discussão. Refugiou-se num discurso dito “social”, teoricamente correto porém impassível e insensível, esquecido da solidariedade e da quota mínima de contrapartidas aos votos recebidos do eleitorado. Isto sim, é acintosamente anti-social. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva em nova entrevista exclusiva a uma rede de TV pareceu inapetente.

Felizmente imperou o bom senso e não convocaram o Duda para alguma jogada marqueteira. Mas o ministro da Educação, Cristóvam Buarque, frustrou sua legião de admiradores e quase o substitui ao oferecer um mirabolante plano para acabar com a criminalidade até 2015: tempo integral nas escolas para todas as crianças e adolescentes.

E a grana, companheiro? Com crescimento zero em 2003 e o espetáculo do crescimento em compasso de espera, convém acautelar-se com as quimeras. Pés no chão, camaradas. A sociedade não pede coisas absurdas, salvo o escorregão do rabino Sobel e a nova exibição de estultice da sempiterna Hebe Camargo.

A sociedade quer saber, quer discutir, quer examinar, quer opções, quer sentir que alguém está disposto a ouvir suas ansiedades. Foi assim que a questão do desarmamento materializou-se em poucos meses num referendo nacional. Não podemos permitir que os pais das vítimas substituam as lideranças políticas e convertam-se nos únicos militantes de uma cruzada que interessa a todos.

Há 40 anos, em 1963, o jornalista e escritor, Odylo Costa, filho, viu o filho de 18 anos ser morto por um pivete ao defender a namorada, perto da sua casa, em Santa Teresa, Rio de Janeiro. Graças à atuação de Odylo, acabou o abominável SAM e em seu lugar surgiu a antiga Funabem. Alguma coisa mudou.

Em 1999, em São Paulo, o jovem Rodrigo Damus, de 18 anos, foi assassinado por um pivete que confessou o crime; mas como o cometeu três dias antes de completar 18 anos, não respondeu em juízo. Ficou apenas 20 meses na Febem. Dez dias depois de libertado, foi morto num assalto a uma pizzaria. O pai da vítima, Jorge Damus Filho, dirige a ONG, Movimento de Resistência ao Crime (www.mrc.ong.br). Nada mudou. A ele junta-se agora o advogado Ari Friedenbach, que tenta esquecer a sua tragédia envolvido na mobilização das consciências contra a omissão.

Se algo não for feito, em breve os enlutados serão maioria. A pá de cal talvez convenha aos governantes atrapalhados com tantos problemas, mas isso só os afasta dos governados. Este é o único caso onde o silêncio é desrespeitoso.