Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Convergência de tecnologias, convergência de interesses

TV DIGITAL

Se dependesse do que há para ser discutido, o congresso que a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) promoveu na semana passada não teria durado 3 dias, mas 30. Uma quantidade talvez inédita de questões essenciais para os rumos da televisão brasileira converge neste momento. São questões se entrecruzam no debate sobre a tecnologia a ser adotada no modelo brasileiro de TV digital, decisão que a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) vem sucessivamente adiando mas que terá de ser apresentada até o final deste ano.

Como o momento não é para ufanismo desenvolvimentista, a possibilidade do 30 dias em 3 acabou cedendo lugar à concentração dos debates sobre a questão do padrão digital. Há razões para se acreditar, no entanto, que este debate contenha muitos outros.

A implantação da televisão digital (DTV) está longe de ser uma questão meramente tecnológica. O impacto econômico e cultural produzido pela nova tecnologia, assim como os interesses que estão em jogo, apontam para a enorme relevância da questão.

No que diz respeito à tecnologia, a DTV representa, mais do que um avanço, uma ruptura frente aos modelos analógicos. Ela não os aprimora, mas os substitui. Isso é feito em várias etapas, distintas entre si.

A primeira etapa, chamada ?de estúdio?, já está acionada há anos e passa ao largo da percepção do espectador comum, que não precisa se adaptar a ela porque nada muda em seus aparelhos de TV nem em sua maneira de lidar com eles. São técnicas de produção e edição que migram aos poucos do analógico e só interessam de perto aos profissionais. Há menos de cinco anos, toda edição em TV era linear, cada plano tinha que ser inserido depois do anterior. Hoje, isto seria impensável.

O que está em discussão neste momento são os padrões tecnológicos a serem adotados para a etapa das transmissões e recepções digitais. Isso modifica, e muito, a vida das emissoras e dos espectadores. E ao contrário da primeira etapa, tem que ser feito de uma vez, não através de lentos upgrades.

Ao contrário do que muitos pensam, televisão digital não é sinônimo de TV de alta-definição ? o HDTV é apenas um entre os múltiplos avanços possibilitados pelas plataformas digitais de transmissão e recepção. Consiste numa forma de transmissão com definição de imagem muito maior que a praticada até agora (mais que o dobro do número de linhas existentes nos padrões NTSC, PAL ou SECAM), uma proporção de tela mais adequada à vista humana (16×9, contra os 4×3 atuais), além de áudio surround 5.1, isto é, em cinco canais digitais.

Outras características da televisão digital, no entanto, podem ser muito mais abrangentes do que a da abertura para o aprimoramento da qualidade da imagem. A multiplexação, por exemplo. Dois sinais diferentes, ou até seis, podem utilizar o mesmo espectro de freqüência, que nas transmissões analógicas comporta apenas um. Simplificadamente, pode-se considerar que uma transmissão em HDTV ocupa o dobro do espaço de uma outra em definição standard (SDTV). Na mesma faixa de freqüência que lhe é atribuida, portanto, uma emissora pode transmitir, ao mesmo tempo, um programa em HDTV e dois em SDTV, ou dois em HDTV, ou ainda quatro (e até mais) em SDTV.

Isto significa, por exemplo, que o espectador poderá escolher entre diversas imagens que lhe são enviadas de um mesmo evento. Mas implica também, na prática, que as emissoras acabam de ganhar ?filhotes?: em média, três novas emissoras para cada emissora existente.

Transmissões extra-TV também fazem parte do cardápio digital. Utilizando espectros de freqüência residuais (chamados ?oportunísticos?, no jargão digital) as emissoras podem enviar, a uma velocidade 350 vezes maior que a de um modem de 56k, qualquer tipo de informação, relacionada ou não com os programas transmitidos. Isso inclui, é claro, conteúdo de internet. A essa velocidade, o download de um programa do porte do Word levará 5 segundos.

A interatividade está na base das mais fortes transformações possibilitadas pelas transmissões digitais. Seu impacto econômico é gigantesco. Um dos objetivos mais importantes da TV interativa, no médio prazo, é a criação de formatos específicos para o T-commerce ? o comércio eletrônico gerado pela televisão. O T-commerce é a mais conclusiva resposta até agora a um dilema tão antigo quanto o controle remoto, e que os publicitários só conseguiram resolver de maneira pueril, com ações de merchandising nos programas e a colocação estratégica de banners e placas de publicidade em jogos de futebol. Nada mais consistente do que isso conseguiu ser feito para contrabalançar a simples possibilidade que os espectadores têm de evitar os comerciais no intervalo dos programas.

O que o T-commerce faz é encorajar o consumo através de respostas bidirecionais em tempo real. O espectador continua vendo a novela, mas d&aacuaacute; um clique para comprar a roupa que a atriz está usando. Para que isso aconteça, é necessário o avanço da tecnologia de SPE (synchronous program enhacements), o que é uma questão de tempo.

Da mesmoa forma, a partir da utilização da mesma tecnologia, é também uma questão de tempo a generalização do VOD (video on demand), por meio do qual o espectador chama o filme que quer no momento que desejar; e do programming on demand, que estende isso a toda programação gravada e vai fazer com que o espectador não se relacione mais com o intermediário (o operador ou a rede de televisão), mas diretamente com a programação.

Sente-se no ar, é lógico, o cheiro de internet. Na verdade, tudo isso é possível porque, com as plataformas digitais, televisão, internet e telefonia passam a utilizar o mesmo alfabeto ? ainda que não necessariamente falando a mesma linguagem, o que derruba apenas a impressão, que por um momento se tinha, da convergência física entre receptor de televisão e computador.

Nos EUA, as transmissões digitais começaram há um ano. Chegarão a 100% em abril de 2005. No Brasil, a DTV decola em 2003, mas é necessário a definição do sistema a ser adotado para que se possa estabelecer um cronograma de implantação. Pelas contas da própria Anatel, esta migração representa um negócio de 10 bilhões de dólares nos próximos dez anos.

São três, como se sabe, os padrões digitais que disputam o mercado brasileiro e, por extensão, de todo o Cone Sul: o americano ATSC, o europeu DVB e o japonês ISDB. Entre estes padrões existem diferenças sutis, qualidades e defeitos que não são consensuais nem entre os engenheiros. Além disso, todos estão em desenvolvimento, vivenciando um processo dinâmico de mudanças que em dois anos os tornarão bem mais semelhantes entre si.

A Abert, no congresso da semana passada, manifestou sua preferência pelo sistema japonês, baseado sobretudo na observação de que ele se presta com mais facilidade para recepções com antenas internas e em movimento (em automóveis, trens etc). Não é uma preferência consensual. Os opositores do ISDB argumentam que ninguém vê televisão em movimento e que o sistema não está operacional sequer no Japão, onde permanecerá em fase de testes até 2003.

Mas existe, nas várias questões sobre televisão que hoje circulam no país, uma convergência bem mais sutil que a das tecnologias de informação. O debate sobre a entrada do capital estrangeiro, por exemplo, está polarizado entre as Organizações Globo, que é contra, e as outras, que são a favor. Coincidentemente, os problemas de representatividade por que passa a Abert são semelhantes. Muitos afirmam que a entidade, neste momento, não interpreta o pensamento do conjunto de emissoras brasileiras, mas apenas da rede que detém hoje quase 80% do bolo publicitário.

Não é de se estranhar, portanto, que alguns queiram atribuir à preferência declarada pelo padrão japonês a existência velada de critérios não apenas técnicos. Argumentam não apenas que os americanos são os principais fornecedores de programação para a televisão brasileira, mas também, e principalmente, que quase todos os interessados em adquirir ações das emissoras brasileiras são conglomerados de comunicação com base nos EUA.

Muitas outras questões essenciais para o futuro da televisão brasileira convergem neste momento. A discussão sobre qualidade e ética na programação é uma delas. Ou a nova proposta de lei para o setor audiovisual, a ser apresentada no dia 30 deste mês, que atinge diretamente tanto o faturamente quanto o modelo de produção das emissoras, criando incentivos inéditos para a produção independente.

Esse debate aparentemente tão pulverizado guarda na verdade uma extraordinária inter-relação. Simplesmente porque tudo isso deságua no conteúdo ? e sobretudo na hegemonia da produção sobre a sua forma de empacotamento, que é, mais do que a qualidade da imagem, o que está em jogo na primeira fase da televisão digital.

Os 10 bilhões de dólares são pinto perto do que representa o custo desse conteúdo nos próximos vinte anos. Na disputa pelo padrão digital a ser escolhido para o Brasil, há um filme de intrigas e conspirações que qualquer emissora gostaria de ter no horário nobre ? um dos primeiros conceitos, aliás, que a TV digital vai derrubar.

    
    
              

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