O FUTURO É AGORA
Luciano Martins Costa (*)
Conversa recente com os professores de Jornalismo da Universidade Católica de Santos (SP), a propósito da renovação do currículo da Faculdade de Comunicação, a que se dedicam nestes dias, me encoraja a tecer algumas idéias um pouco além das questões estratégicas e de tecnologia referentes à gestão das empresas de mídia que têm ocupado este espaço do Observatório. Vejamos se consigo me fazer entender, começando pela tese central: a crise da mídia não tem saída convencional, assim como a crise social, a crise política (de credibilidade, sistêmica) e a crise econômica (de modelo, de significado) que atingem o Brasil mas não são exclusividade nossa.
Vista assim, feito nariz-de-cera, a afirmação pode parecer leviana e despropositadamente pessimista. Mas nossa conversa em Santos foi muito além. Começou com a ponderação segundo a qual, de tempos em tempos, a sociedade humana produz um lapso de civilização, como um soluço no doloroso aprendizado do processo civilizatório, de que são exemplos a Paris de 1900, Boston e Chicago em 1920, Londres nos anos 1960. Um soluço, como se a sociedade humana se desse uma folga na dura batalha entre o desejo e a realidade, na qual se forja a maturidade, e se deixasse embalar em ondas de puro prazer, sem maiores responsabilidades.
Assumindo essa ponderação como regularmente fundamentada, posto que outros mais qualificados já a defenderam com vasto conhecimento, vamos em frente e saltemos algumas décadas para nos encontrar com o fim do confronto que separava o mundo em dois gomos geopolíticos, evento que tem como símbolo a queda do muro de Berlim, em 1989. E observemos o mundo a partir do enunciado de Francis Fukuyama (…) sobre o "fim da História", fixando-nos, como ponto de partida, na assunção de que vivemos, desde o fim do século passado, no difuso ambiente que foi imediatamente batizado de pós-modernidade.
Façamos, então, um hiato para observar que, dado num ambiente social e econômico que tenha alcançado um nível de bem-estar aceitável, que de alguma forma tenha produzido um grau de desenvolvimento satisfatório vis-à-vis o resto do mundo conhecido, esse lapso de civilização é também um momento de renovação, quando as artes nos surpreendem, posto que as artes são quase sempre um modo de sublimação.
Ainda é o caso das cidades e épocas citadas acima. É também o caso do advento da chamada pós-modernidade, em Nova York e São Francisco no início dos anos 1990. As cidades, note-se, são apenas referências, pois o fenômeno social precisa ser de alguma forma delimitado geograficamente, mesmo que de uma forma representativa, para que possamos estudá-lo com o distanciamento necessário. O fenômeno acontece simultaneamente em muitos lugares.
Pensar a sério
Outro caso, radicalmente diferente, é quando o hiato ou soluço de civilização se dá num ambiente social e econômico perverso, numa sociedade que ainda está a dever à maioria de seus cidadãos um mínimo de qualidade de vida e dignidade. E aqui começamos a entrar naquilo que justifica a denominação, ali em cima, sobre saídas para a mídia nacional: quando a imprensa atua numa sociedade assim devedora, ela não tem o direito ao relaxamento de costumes e à experimentação irresponsável.
Uma coisa é a imprensa de Chicago em 1920 endeusar uma médium russa e dar de manchete seus feitos paranormais como se fossem o evento mais importante de todos os tempos. Outra coisa é a imprensa de São Paulo ou do Rio emprestar credibilidade a manipuladores de factóides ou a celebridades de qualquer espécie, independentemente e à revelia do que possam significar, em termos do processo civilizatório, as razões de sua celebrização.
Quero dizer, voltando ao primeiro parágrafo, que não há uma saída convencional possível, na medida em que a mídia criou para si mesma uma armadilha ? que se caracteriza pelo vácuo de significado, pela ausência de concretude em seu conteúdo noticioso e de opinião. A mídia precisa ser reinventada para sobreviver, justamente pelo fato de se haver conduzido para o beco sem saída da irresponsabilidade social e política.
O advento da tecnologia da informação ? com todas as conseqüências quanto à fragmentação de mercado, agravamento e desregramento da competição, flutuações na definição dos públicos-alvos, dificuldades de planejamento dos custos ? gerou a tentação das soluções oportunistas e conduziu a gestão das empresas para o funil ilusório do mercado. Ainda outra vez: quando a imprensa esquece a sociedade e mira o mercado, ela cria para si uma ilusão de amplitude, uma vez que o mercado é mais mensurável que a sociedade, oferecendo a sensação de resultados tangíveis, mas é muito menos amplo, muito mais pobre em oportunidades reais de resultados.
A consolidação da tecnologia digital e sua definição como ambiente concreto de existência encontra a mídia absolutamente vulnerável e sem moeda de troca ? ela perdeu o poder econômico e, vendo esvair-se a credibilidade, perde progressivamente o poder político e a chance de atuar como instituição relevante nesse novo mundo. (Quando o presidente da República convida jornalistas para o café da manhã e determina quem deve ser enviado ao encontro, tudo que se produz são muxoxos regados a demonstrações de ciúme e outros sentimentos menos nobres ? a imprensa nem mesmo é capaz de se pensar a sério, num episódio como esse).
Tecido esgarçado
Comecemos, então, a amarrar o que nos embalou na boa conversa com os professores da Unisantos e a obrigação de ofício que nos vincula a este posto de observação: o soluço de civilização a que nos referimos não pode ser apreendido em si, por sua natureza de hiato, de vácuo ? mas pode ser percebido por seus processos e seus frutos. Quando a imprensa já não consegue informar objetivamente o leitor sobre a gravidade de um evento ou sobre a extensão de uma perda econômica, ou sobre o quanto se deve lamentar em uma tragédia, isto é uma expressão desse hiato, dessa armadilha em que a imprensa se meteu ? faltam referências, a linguagem é insuficiente para significar.
Não por outro motivo, discutia-se naquela escola a revalorização da semiótica ? a ciência dos signos ? e a volta do interesse na semiose ? o estudo dos processos significativos, na natureza e na cultura. O problema, alguém observou, é a impossibilidade de aplicar essas ciências ao ambiente fluido e desprovido de contexto real em que mergulhou o jornalismo. Alguém aí, entre os especialistas, arriscaria uma análise semiótica de qualquer peça da grande imprensa sem uma sensação de desconforto? Onde, os paradigmas?
O drama principal que se estabelece quando se evidencia a necessidade da reinvenção, em qualquer setor da economia ou na vida privada, é que o risco sempre parece maior do que a oportunidade, e poucos profissionais se dispõem a comprometer seu futuro em projetos cujos contornos apenas podem ser imaginados ? ninguém sabe como vai ser a imprensa daqui a dez anos. Isso me pareceu evidente num estudo que realizei entre 1999 e 2001, quando pude desenhar os perfis de algumas centenas de executivos atuantes no Brasil e constatei que mais de 76% da minha amostragem expressavam premissas extremamente conservadoras e modelos mentais inadequados à necessidade de repensar a gestão de suas empresas. Era o período em que a bolha da internet inflava ao seu grau máximo, para em seguida explodir num gigantesco flatus econômico.
Nas empresas de comunicação, a porta da saída convencional está bloqueada por um fator secundário, mas não menos relevante: os profissionais encarregados da mudança foram, regra geral, educados no modelo que precisam reinventar. A dança das cadeiras revela apenas trocas de posições entre os mesmos protagonistas cujas carreiras coincidem, em brilho, com o processo de decadência do negócio de comunicação, numa relação tanto perversa como inversa.
Os jovens profissionais que ingressam no mercado, em vez de representar a renovação, se mostram tão viciados quanto aqueles a quem competiria educá-los dentro das redações: todos querem ser âncoras da Globo ou titulares de coluna. Basta um olhar nos chats que freqüentam para perceber o drama que nos aguarda.
E a saída, onde estaria a saída? Como o pessimismo não combina com o amor que nos une, observadores e observados, a esta profissão, é preciso também reportar que os professores com os quais foram partilhadas estas reflexões tinham nos olhos o brilho da paixão pelo seu mister, e quando os deixei tinham ainda pela frente todo um fim de semana e muitos outros dias dedicados a produzir metodologias, disciplinas e práticas para oferecer a futuros comunicadores um significado para suas vidas. A saída, portanto, parece estar na reinvenção desse negócio a que dedicamos nossos talentos e nossos esforços, a partir de um novo significado social para o jornalismo, a começar por uma dolorosa mas necessária constatação: o velho e esgarçado tecido da imprensa já não agüenta novos remendos.
(*) Jornalista