ARTES DE GAROTINHO
A.D.
Azul ou amarela, canarinho ou azulão, tática ou superstição?
Empolgou o país a polêmica em torno da cor da camisa
que nosso selecionado deveria envergar na partida contra o Paraguai.
Mais do que o último dilema de Jader Barbalho – licencia-se
ou renuncia?
O litígio cromático alcançou nossa suprema
corte cujo presidente exibiu velocidade incomum no universo forense:
sem recorrer à jurisprudência, pendurou a toga, calçou
as chuteiras e, por fax, lavrou sentença a favor do verde-amarelo.
Não deu outra, o time ganhou de virada. O homem deveria ser
convocado para oferecer pareceres à Comissão Técnica.
O país quer garra, tem convicções, o que não
implica em discriminação e exclusões. O azul
ajudou a reativar os bons fluidos depois da sucessão de vexames
futebolísticos mas a dupla de cores nacionais facilitou o
caminho do gol.
Com a sua ótica simplista, o governador Garotinho também
quer meter-se num grande embate. Se não de cores, de distintivos
e estandartes. Qualquer um, desde que possa aparecer. Inflamado
pela fé recém-adquirida montou no rocinante do fundamentalismo
e está oferecendo todos os indícios de que vai converter
sua candidatura à presidência numa guerra santa.
Em nossa história política já tivemos uma
Questão Religiosa, assistimos o messianismo sufocado a ferro
e fogo, fomos vítimas de quase três séculos
de Inquisição com o seu saldo de intolerância
mas nunca presenciamos, como agora, tamanha e tão explícita
exploração de diferenças confessionais.
Cada vez que tropeça como governador ou político,
Garotinho sai correndo para acender o pavio do rancor e do ressentimento.
Assim foi em meados de 1999, quando evidenciou-se o seu despreparo
para o cargo e começaram os choques com o PDT, partido que
o elegeu e depois o expulsou. Assim está sendo agora: pego
num antigo trambique como animador de shows de quinta categoria,
foi ao ofício dominical não para oferecer uma palavra
de compreensão e tolerância, mas para açular
animosidade entre devoções.
Já tivemos um presidente protestante, luterano, o general
Ernesto Geisel justamente quando a Igreja Católica – ou parte
expressiva dela – participava da resistência ao regime militar.
Numa única ocasião Geisel utilizou-se politicamente
do ingrediente religioso, certamente aconselhado por seu cardeal,
o general Golbery. Em 1977, para tornar palatável à
opinião pública o retrocesso do Pacote de Abril a
dupla G-G fez com que um Congresso manietado aprovasse a instituição
do divórcio. A Igreja reclamou, a classe média adorou
e a oposição teve que engolir o revés em nome
da distensão. Em nenhum momento as diferenças de fé
foram usadas nas flâmulas da política.
Nossa Constituição é clara no Artigo 5? do
Capítulo Primeiro (parágrafo VI) ao assegurar plena
liberdade de consciência e estabelecer o princípio
da igualdade de credos. A religião (ou irreligião)
dos brasileiros foi confinada à esfera íntima, opção
individual, protegida de contenciosos ou discriminação.
Mesmo a "proteção de Deus" invocada no preâmbulo
da Carta Magna não chega a constituir um constrangimento
aos agnósticos, incrédulos ou ateus porque o conceito
de Deus é – Deo Gratias – imensamente elástico nele
cabendo até mesmo o racionalismo e o panteísmo de
Bento Spinoza.
A exacerbação das divergências religiosas sistematicamente
vocalizada pelo "irmão" Garotinho é, em
si, antidemocrática e subversiva. Sua insistência em
desqualificar os cultos afrobrasileiros revela que apesar do disfarce
progressista da sigla que o acolheu, não passa de uma versão
cabocla do pastor-comunicador americano Pat Robertson, flagrantemente
racista e reacionário.
Sectarismo no Brasil sempre esteve no âmbito estritamente
político, mas, graças a Anthony Garotinho, estamos
embarcando em direção da Irlanda, onde o choque entre
seitas deixou o campo das crenças para abarracar-se no campo
de batalha.
O próprio sectarismo partidário foi colocado sob
suspeita na última semana com a surpreendente convocação
do secretário de Saúde da cidade de São Paulo,
Eduardo Jorge Martins Alves, petista histórico, para uma
aliança PT-PSDB, de centro esquerda, destinada a barrar candidaturas
conservadoras ou como agora fica bem dizer, do Establishment.
O médico sanitarista paraibano está fazendo uma revolução
em São Paulo ao desmontar o aparelho malufo-clientelista
do PAS, substituindo-o pelo SUS. É um dos pontos altos da
administração da prefeita Marta Suplicy porque não
está empenhado em produzir aquele tipo de resultado que tanto
agrada aos marqueteiros mas porque está transformando a estrutura
do atendimento médico do município, o único
que ficou fora do estipulado pela Constituição de
88. "Defendo políticas nacionais públicas que
tenham continuidade e que não sejam de partidos" disse
ele numa longa entrevista ao Jornal da Tarde (2? feira, 16/7). "Políticas
dessa natureza têm ressonância extraordinária
num país que precisa firmar-se como nação.
Fazem parte da condição de ser brasileiro, questão
de identidade nacional. A sociedade ganha a segurança de
que o governo A, B ou C vai continuar com os programas."
A audaciosa proclamação, antisectária e pluralista,
dirige-se tanto ao seu partido como ao governo federal – responsável,
em última análise, por estabelecer políticas
públicas capazes de galvanizar a nação e neutralizar
o oportunismo partidário.
Neste clima de guerra santa e suja que começa a germinar,
o secretário lança a idéia-força do
ecumenismo, da convivência, da co-habitação
e do universalismo. No início da temporada eleitoral está
tentando reavivar postulados humanistas sistematicamente tripudiados
tanto pela ganância eleitoreira como pela burocracia a seu
serviço.
Na realidade, Eduardo Jorge Alves está mandando dizer que
a cor da camisa é irrelevante. Rubra, rosa, violeta ou laranja,
o que importa é o valor de quem a usa. Ele sabe que as cores
– como quase tudo na natureza – resultam de combinações:
azul com amarelo produz o verde.
(*) Copyright Jornal do Brasil,
21/07/01