HIPÓLITO E SEU
JORNAL
Adriano da Gama Kury (*)
Um exame detido do primeiro volume da reprodução
fac-similar do Correio Braziliense ou Armazem Literario (1808)
revela-nos fatos dignos de nota.
Em primeiro lugar, a ortografia usada há quase duzentos
anos pouco difere da chamada "mista" (pseudo-etimológica),
que, sem uniformidade, vigeu até as primeiras décadas
do século XX. (O Pequeno vocabulário ortográfico
é de 1943.)
Como singularidades (por vezes arcaizantes) podem-se apontar: o
deslocamento sistemático do til para o o do ditongo
ão: lá estão, na primeira página
do texto, Introduçaõ, educaçaõ,
illuzaõ, Naçaõ; e mais adiante
(p. 6) as formas seraõ e faraõ.
Não seria um procedimento geral na época, o que se
comprova na reprodução fotográfica da (inócua)
proibição real da entrada e publicação
do Correio no Brasil: nela se lê (Dom) João
e publicação conforme o uso atual (til sobre
o a do ditongo).
Raras vezes ocorre a grafia aõ com formas paroxítonas
da 3? pessoa do plural de tempos do indicativo: excitaõ
(p. 4), por excitam (que com ?am aparecera antes,
na p. 3); atreveraõ-se (por atreveram), foraõ,
por foram (que nessa mesma página 8, uma linha adiante,
se escreve fôram, com ?am e acento).
Chama a atenção, aliás, o fato de virem inutilmente
acentuadas, tal como fôram, formas verbais paroxítonas
em ?am: tîram, excîtam, vîam,
márcham, ácham, mostráram, reinávam,
resolvîam, havîam, éram etc. etc. (Só
na p. 11, para exemplificar, ocorrem catorze formas acentuadas,
contrastando com ouviraõ-se (= ouviram-se),
na mesma página.)
É curioso atestar que outro ditongo nasal, õe,
nunca aparece desta forma. Desde a epígrafe de Os Lusíadas
(p. 5), onde se lê Camoens, até as formas Naçoens,
publicaçoens, instruccçoens, que se repetem
por todo o Correio. Na p. 120 ocorrem as formas propoem
e poem, respectivamente por propõe e põe,
do singular: "de que [o author] se propoem tratar",
"Poem ele em questão…".
A grafia com z, adotada por Hipólito da Costa, e
o próprio gentílico braziliense (brasileiro
já era o mais freqüente) refletem escolha deliberada
do Autor. Lembre-se que, na época, Brazil com z
era usual. (Também era costume escrever com z portuguez,
mesmo autores que sabiam ser a forma com s a correta: o grande
mestre da língua Said Ali, por exemplo, publicou a sua Grammatica
secundaria da lingua portugueza (com z) em pleno 1921!)
O gramático Antenor Nascentes repetia que para a regência
da língua só serviam as abonações de
até cem anos atrás. Nada obstante, posso afirmar que
é bastante atual, nos seus duzentos anos, a regência
de Hipólito da Costa. São raríssimos os desvios
da norma culta.
Lembraria que foi na primeira metade do século XIX que eclodiu
no Brasil o romantismo, que marcou de vez a fixação
da linguagem brasileira moderna.
Nas vinte páginas iniciais, a custo consegui estes dois
exemplos de falta do acento indicador de crase, na regência
nominal: "… a propriedade ultimamente mencionada […] ficará
sujeita as ordens ulteriores de S. Magestade" (p. 17)
[ressalvo que pode ter havido falha tipográfica: na página
seguinte o acento de crase ocorre: "sugeitos á
influencia e direção da França"]; "em
obediencia as vossas instrucçoens".
Por duas vezes encontro indevidamente acentuado o a seguinte
à preposição para: "para á
ruina do Principe das Asturias" (p. 10), "dirigi-me para
á Esquadra Comandada pelo Cavalheiro Sidney Smith"
(p. 21)
Fora estes casos, de que se encontrarão uns poucos exemplos
mais no decorrer de centenas de páginas, não localizei
qualquer outra transgressão às regras da norma escrita
culta na regência, na concordância ou na colocação.
Outro caso: É norma que as conjunções ainda
que, mesmo que (tal como embora) levam o verbo ao subjuntivo.
(Nas minhas anotações à vasta obra de Machado
de Assis, apenas encontrei 1 (um) exemplo em contrário.)
No Correio se lê: "[…] e ainda que eu
os naõ recebi (por tenha recebido) senaõ
depois […]" (p. 21).
É talvez na pontuação que mais se afasta Hipólito
da Costa do uso atual, especialmente na separação
por vírgula das chamadas "orações adjetivas
restritivas" e nas "integrantes" (que hoje é
de rigor não serem precedidas de vírgula): "conservando
sempre a boa harmonia
que se deve praticar com os Exercitos das Naçoens
com as quais nos achamos unidos no Continente."(p. 7); "E
outro sim fica ordenado
que os navios de Portugal não gozarão da immunidade
em virtude de tratados
que haja entre S. M. e Portugal, de proteger nenhuns bens carregados
nos mesmosque possaõ
aliàs ser sugeitos a confiscação" (pp.
15-16); "e tive depois a satisfaçaõ de achar
que tinha nisto anticipado as intençoens de S. M. pois os
vossos despachos […] ordenávam-meque autorizasse ésta medida, no cazo em que o
Governo Portuguez ultrapasse os limites
que S. M. tinha julgado conveniente pôr á sua Benignidade
e tentasse dar algum passo ulterior
que fosse injurioso á Honra ou Interesses da Gram Bretanha"
(p. 21).
Usa vírgula igualmente antes da conjunção
e, mesmo em casos nos quais não o justificam a ênfase
nem a ausência de pausa: "O Embaixador chegou de Madrid
ás 5 horas da manhaã
e immediatamente foi ter com Suas Magestades", "seus
numerosos e pesados
empregos"; "o Commando do Exercito
e da Esquadra"; "attacou a casa do Principe da
Paz e a de outros Ministros,
quebrando e roubando
os moveis"; "de minha livre
e espontanea abdicaçaõ", "o communicareis
ao Conselho e a todos
os mais". (Todos os exemplos estão na p. 12.)
Cumpre lembrar que esta pontuação é a usual,
um século depois, em Rui Barbosa, leitor assíduo dos
clássicos da língua.
Vale a pena registrar algumas peculiaridades e arcaísmos
na linguagem de Hipólito da Costa.
Soam-nos como arcaicas formas do tipo das seguintes: emprendi
por empreendi; manhaã; aleviando por
aliviando; taõbem; contheuda por contida
("novidade contheuda neste despacho" ? p. 23)"; andar
à rebatinha [= disputar] (p. 36); por o mesmo
[= pelo mesmo] (p. 36).
Põe o pronome átono antes da negação
que precede um verbo: "eu os naõ recebi"
(p. 21); "cujo fim se não podia decidir";
"que o não fariam" (p. 32); "para se
não atreverem" (p. 32) e passim. É
bom lembrar que essa colocação é muito encontradiça
em Rui Barbosa.
Poder-se-ia criticar em Hipólito o uso de períodos
muito longos, como este da p. 32, em que bastaria substituir por
ponto alguns pontos-e-vírgulas para consertar o estilo:
E para que se saiba o crédito que tais papéis
merecem, basta refletir na natureza do Governo Inglês;
porque no Parlamento há sempre um grande número
de membros opostos ao sistema de Política dos Ministros
a que se chama Partido da Oposição; estes estimariam
achar a menor falsidade nas contas apresentadas pelos Ministros
de Estado; e eles podem averiguar essas contas; porque o Parlamento
tem o direito de nomear comissões de entre os seus membros
para examinar os registros públicos; de maneira que,
ainda que os Ministros Ingleses fossem faltos de probidade,
que não tivessem outros motivo para deixar de dar contas
falsas ao Parlamento, o temor de serem expostos pelo Partido
da Oposição seria mais que suficiente razão
para se não atreverem a falsificar nenhum documento que
apresentassem ao Parlamento: eis aqui o que se lê nesses
Documentos oficiais.
Mais de uma vez Hipólito da Costa verbera o "português
afrancesado" em que era redigido um folheto de ataque à
Inglaterra. E acrescenta: "… Mas não me embaraçarei
com isso; porque o folheto está tão cheio de erros
de gramática, que se eu reparasse nisso não me ficava
lugar para tratar da matéria" (p. 42).
E como transcreve partes desse folheto, para criticá-lo,
podem-se rastrear alguns desses erros na verdade cabeludos, como
este de concordância:
As Ilhas Britânicas separadas do resto da Europa, sem
Comercio nem relação alguma com o Continente,
será semelhante a um asilo ou receptáculo
de Corsários, e Piratas, e este é o único
meio de que eles podem valer-se nestas críticas circunstâncias.
(p. 38)
Para se aquilatar a atualidade da linguagem do Correio,
leia-se um trecho como o seguinte, a que se atualizou a grafia,
o qual soa perfeitamente ao século XXI:
Quando os indivíduos de uma Nação cometem
impunemente os crimes, ou violam as leis da decência e
do pudor, sem que a voz pública os condene à infâmia,
então essa Nação pode chamar-se corrompida,
e as ações do indivíduo infamam o total
da sociedade. Não é porém assim quando
o criminoso é exposto à infâmia, e o devasso
censurado pelos homens bons.
Conclusão
Não obstante algumas singularidades, a ortografia usada
no Correio Braziliense, apesar dos seus 200 anos, está
muito próxima da que vigorou até o aparecimento do
Pequeno vocabulário ortográfico, de 1943.
E sua linguagem, bastante correta, obedece às normas da
língua escrita culta então vigente, muito próxima
da atual, com raras transgressões, sobretudo na pontuação.
(*) Chefe do Setor de Filologia da Fundação Casa
de Rui Barbosa. Formado em Letras Neolatinas pela antiga Faculdade
Nacional de Filosofia, obteve o título de livre-docente pela
Universidade Federal Fluminense. Pertence à Academia Brasileira
de Filologia. É autor de vários livros de língua
portuguesa