Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

"Correspondência" de Bush e bin Laden

CARTAS ALEGÓRICAS

Claudio Julio Tognolli (*)

Na semana em que se "comemora" um ano dos ataques de 11 de setembro, pipocam na mídia análises mostrando o evento, na maioria das vezes, como algo extraído da história ?sem as devidas contextualizações, vulgo "os porquês" do ataque ? não necessariamente querendo aqui justificar o terrorismo, mas, antes, descrevendo-se os motivos do antiamericanismo. Algo parecido com aquela figura filosófica chamada "hipóstase", em que se retira a frase do contexto para magnificar-lhe o poder de impacto ? algo em que, nós repórteres, somos doutores honoris causa.

O que se segue, nesse espírito, é uma alegoria: missivas trocadas entre George W. Bush e Osama bin Laden, em que a crítica à mídia é a tônica. Como veremos, algo tal a esfera descrita por Pascal, "uma esfera terrível cujo centro está em toda a parte e a circunferência em nenhuma": o terrorismo está em todos os lugares (diz Bush) e em nenhum (responde o fugitivo Laden).

Carta de bin Laden

Caro Presidente Bush,

Conta-se na mídia norte-americana, há anos, piada segundo a qual certo dia pegou fogo na biblioteca do ex-presidente Ronald Reagan: queimaram os cinco livros… e o pior, três ele não havia terminado de colorir. Sei, pela mesma mídia, que com o senhor não seria diferente. Pretendias um governo autocentrado em vosso próprio e dilatado Império. Trocas os nomes, erras as capitais de países. Dizes que não entendes muito de economia. Não conheces geopolítica, que, para o senhor, deve ser algo a tratar apenas da violação das cercas de vosso rancho no Texas. Lembrai que nem todos na mídia comem das vossas mãos: quando de uma das festas de vossa posse, no mesmo rancho, agências de notícias como a Associated Press e Reuters proibiram os repórteres de comer-lhe o churrasco texano. E contrataram serviço próprio de catering, para nada dever-te. Vosso Império é o Texas e a mídia internacional é vossa aliada incontinenti.

Nosso profeta é outro. O seu, a mídia. O que se me guia, devo explicar-te: era dia 27 do mês de Ramadã. Corria o ano de 610. O profeta Maomé tinha os seus 40 anos. Estava nas grutas do Monte Hira. Ouviu a voz do Anjo Gabriel que se lhe sussurrou a shahada: "Só há um Deus que é Alá, e Maomé é o seu profeta". Pois, caro presidente, esse é o meu Deus. Lembro-te que os atentados que promoves contra minha pessoa, tão apoiados por vossa mídia, nada mais são do que uma reedição de tantas e tamanhas façanhas de Maomé . O Profeta sofreu um atentado em 16 de julho de 622, em Meca. Evadiu-se para Medina, então Iatrib. E, finalmente, em 630, o Profeta volta a Meca para derrotar os inimigos coaxitas. Em 632, depois de tantos percalços, Maomé peregrina a Meca com 80 mil fiéis a o seguirem. Era a sua coroação, como em breve deverá ser a minha.

Vossa mídia te apóia porque é composta de gentes que se dizem o povo escolhido, como tu foste pelas urnas, ou por outras gentes que acreditam na farsa da Trindade. Mas o Profeta já disse: "Só há um Deus, que é Alá".

Pergunto-te: porque o Islamismo é a religião que mais cresce no mundo, com 20% da população do planeta? Por que os teus ídolos populares do esporte, como Cassius Clay, Mike Tyson e Kareen Abdul Jabaar a nós vieram pelas mãos da conversão? Por que vossos oprimidos se convertem a Alá quando nas cadeias? Porque, caro presidente, nós admitimos o igualitarismo que tu não admites. Queria ensinar-te o que diz o Hadiz: "Os homens são tão iguais entre si como as hastes de um tear; não haverá distinção entre o branco e o negro, entre o árabe e o não-árabe se não se quer incorrer na cólera de Deus".

Vós e vossa mídia fizeram do Islã o novo inimigo da humanidade. Lembro-me da Guerra do Golfo, quando a CNN mostrava as imagens das câmeras instaladas nos mísseis Maverick, exibindo ao mundo apenas os militares "abatidos". Levamos 12 anos para saber, pela mídia indepedente européia, que 160 mil velhos, mulheres e crianças morreram naquilo que vosso pai chamava de "bombardeio cirúrgico".

Por falar no teu pai, lembro de ter visto no The New York Times, em 1976, foto em que ele, como diretor de vossa CIA, condecorava o general panamenho Manuel Antônio Noriega como o "maior colaborador no combate ao narcotráfico". E me lembro, também (em reportagem de Andrés Openheimer, do The Miami Herald, em 21/12/1989), dos 15 mil homens da Guarda Nacional, enviada pelo teu pai, terem invadido o Panamá e prendido Noriega. Pelo que me consta, só a imprensa alternativa dos EUA, ou o Daily Telegraph, noticiaram que o domínio norte-americano sobre o Canal do Panamá se esgotaria em 1? de janeiro de 1990, portanto poucos dias antes da invasão do Panamá. Vós sabeis, como ninguém, achar justificativas "legais" para ações de cunho imperialista. 

Mas estarei sendo injusto ao acusar vossa imprensa de todo. Afinal foi ela quem denunciou o caso Irã-Contras, em novembro de 1986. Talvez não te lembres: vosso correligionário republicano Ronald Reagan negociava secretamente com o Irã, seu maior inimigo da época. Pelo trato, os EUA forneceriam armas ao Irã em troca da libertação de reféns americanos, e se comprometiam a liberar bilhões de dólares do Irã congelados em bancos dos EUA, desde 1979, quando da Revolução Islâmica.

Lembro-me que o jornal israelense Hadashot revelou que Israel intermediara a negociação. Lembro-me também, em manchete do The Washington Post, do secretário de Justiça Edwin Meese ter revelado que parte do dinheiro das armas vendidas ao Irã, cerca de 20 milhões de dólares, fora depositada em contas suíças pertencentes aos contra-revolucionários da Nicarágua. Lembro-me da revista Time ter noticiado que vosso pai, o então vice-presidente George Bush, estava envolvido na operação.

Lembro-me do que, no passado distante, teu Império elegeu gente de bem e genial como "inimigos", posto fossem os "islâmicos" da época: o que o vosso senador Mc Carthy, e vosso promotor Roy Cohn, e a vossa mídia não fizeram com gente "comunista" como Charles Chaplin, Zero Mostel, Bertolt Brecht?

Vossa CIA, conforme revela livro de Martha Huggins, no The New York Times de setembro de 1998, ajudou a dar o golpe militar no Brasil em 1964; vossa CIA, também, depôs Jacobo Arbenz, na Guatemala, em 1954, porque ele nacionalizou vossa United Fruit; vossa CIA colocou Pinochet no poder no Chile. Vosso então secretário Harry Kissinger hoje não pode sair do país ? posto o mesmo juiz espanhol que prendeu Pinochet, Baltazar Garzón, li no El País, quer prendê-lo sob acusação de crimes contra a humanidade.

Vejamos agora o caso do Kosovo: vosso ex-presidente Bill Clinton clamava por uma intervenção para conter o massacre étnico contra "10 kossovares albaneses". Foi o Daily Telegraph e página na internet <www.stratfor.com>, da Universidade de Louisiana, em abril de 1999, que mostraram ser a invasão uma farsa ? já que, segundo as publicações, peritos do vosso próprio FBI encontraram menos de cem corpos nas valas, nenhum vítima de limpeza étnica. Segundo esses jornalistas, vosso Império só quereria ali mais uma zona de influência, para controlar o oleoduto do Mar Cáspio, a abastecer vossos inimigos de ocasião, China e Rússia.

Aliás, cabe dizer nesta missiva: li no The Washington Post de domingo (7/9/02), que justamente esses dois países, Rússia e China, mais a França agora, opõem resistência a vossa planejada invasão ao Iraque. Vi um dia antes, também no The Daily Telegraph, que vosso Império já teria, junto da Grã-Bretanha e com 100 aviões, atacado instalações no Iraque. Vosso general John Rosa, falando em vosso nome, nega a magnitude do ataque noticiado. Para que mentir para a imprensa, sempre?

Gostaria que o senhor presidente me explicasse porque duas de suas mentes mais brilhantes, o escritor Gore Vidal e o pensador Noam Chomsky, criticam tanto a mídia de seu país… Gostaria de saber o porquê de vosso fuzileiro, Tim Mc Veigh, que explodiu vosso Oklahoma Building, em 1996, quis dar entrevista somente a Gore Vidal antes de ir para a cadeira elétrica ( o senhor se lembra que The Boston Globe e o Arizona Republic noticiaram em 21 de abril daquele ano, logo após o ataque, que os suspeitos tinham "compleição muçulmana"?)

Queria lembrá-lo também que no domingo, 18/8/02, The New York Times saiu com uma bomba jornalística. Dizia: "Oficiais americanos dizem que EUA ajudaram o Iraque na guerra, apesar do uso de gás". E que, para o repórter William Blum, que já escrevera a história anos antes, o jornal só deu a metade da notícia. "De acordo com o Relatório do Comitê do Senado, de 1994, a partir de 1985, senão antes, até 1989, um autêntico caldeirão de bruxas de material biológico foi exportado ao Iraque por fabricantes norte-americanos, sob licença do Departamento do Comércio dos EUA", escreveu ele. Pela leitura disso, vejo que vosso Império não luta contra nós: luta contra o que ele mesmo criou.

Caro presidente: eu, bin Laden, fui criado pelos senhores, pela vossa CIA que me instruiu, no Afeganistão, contra os inimigos russos, e em todos os sentidos do vocábulo "criação". Lembro ao senhor e à vossa mídia, por fim, que o "fundamentalismo" de que nos acusam é um fenômeno essencialmente americano, nascido no século 19, e que se atinha à interpretação literal das vossas Escrituras. Osama bin Laden


Carta de George W. Bush

Não há justificativa entre as elencadas por você que justifiquem, pleonasmos à parte, o assassinato de 3 mil inocentes de inúmeras nações em nome de um Jihad, ou Guerra Santa contra os infiéis ? cujas milhares de interpretações cabem a todos, inclusive a insanos. Não há argumentos morais ou humanos que justifiquem, igualmente, o uso do terrorismo para abalar democracias e atentar contra a vida de gente de bem.

Com todos os seus defeitos, a democracia americana é um sistema para o futuro. Por mais que se critique a mídia, é ela quem tem oxigenado todos os processos. Não cabe a um presidente da maior democracia deste planeta tecer críticas à mídia, pois o primado desta é a independência, e não há de se criticar o que é independente. Mídias falando várias linguagens e enfocando diferentemente assuntos é um paralelo a vários cidadãos de todo o mundo que chegam a este país para viver o "sonho americano", falando vários idiomas, e enfocando a vida como se lhes dá na veneta. Num e noutro caso, o que há para se falar caso viva-se com paz, trabalho, livre capital, idéias livres, corretas, e uma atitude democrática e construtiva em relação ao próximo?

Se você dispõe dessas informações, foi porque chegaram a você pela distribuição livre e democrática de notícias, não? O futuro do mundo está nas mãos de gente de bem que critica para construir, e não dos sistemas fechados, como o talibanato, que omite informações, censura a mídia livre, e veda o acesso da população às idéias que, com base no estatuto da contradição, podem dar ao cidadão de bem a oportunidade de escolher alternativas entre as apresentadas pela própria mídia.

Tudo isso para dizer que não reconheço como meu interlocutor qualquer pessoa que pregue, como os Talibãs, a censura às informações. E, neste sentido, nossa conversa está encerrada. George W. Bush 

(*) Repórter especial da Rádio Jovem Pan, professor de jornalismo do Unifiam (SP) e da ECA-USP, consultor de jornalismo investigativo da Unesco no Brasil