MÍDIA & MÚSICA
Nilson Lage (*)
Otavio Frias Filho, diretor de Redação da da Folha de S. Paulo, em longa entrevista à última edição da revista Pesquisa, da Fapesp (Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo), diz que a atual crise dos jornais é “a maior de todos os tempos” ? tanto que os empresários estão recorrendo, como de outras inúmeras vezes, ao financiamento público. Mas por que será que os negócios não andam bem?
Tomemos um assunto “inocente”: o centenário (a 10 de janeiro último) do nascimento de Lamartine Babo, personagem da cultura popular brasileira. Na ferramenta de busca Webferret, encontrei 160 menções na internet; o Google dá acesso a mais que isso, embora, na maioria, simples referências ocasionais.
Nos jornais recentes, um artigo de Leandro Konder (Jornal do Brasil), em dezembro de 2003. Afora essa, matérias curtas: o pesquisador que promete um livro para abril sobre compositores da primeira metade do século 20; e mais a biografia insistentemente reproduzida, às vezes com erros.
A Globonews reprisou um programa antigo, montado com fitas do Centro de Documentação (Cedoc) da Rede Globo e entrevistas dos “entendidos” de sempre, com uma bela coleção de lugares comuns: “o segredo de Lalá era o ritmo”; “fez muito sucesso no rádio com o Trio de Osso”, “compôs os hinos dos clubes de futebol”, “torcia pelo América”, “seu maior sucesso foi O seu cabelo não nega“.
Uma das cenas retirada dos arquivos mostra uma cantora “assassinando” a belíssima letra de Serra da Boa Esperança.
Meio cheio, meio vazio
Essa é a mídia brasileira. Não pensa. Não vai além do óbvio. Não se dispõe sequer a dialogar com os novos grupos de pressão que se constituem, nada comprometidos com a cultura brasileira; jamais os contraria ? só repete. Os cursos de comunicação, que são cursos de ideologia multinacional, excluem qualquer representação realmente crítica ou a consideração científica da realidade.
Querem um exemplo? Parte da cobertura da mídia reflete uma vertente do “movimento negro” que descobre nas músicas de Lalá o discurso da “opressão da mulher negra”. Em um país em que as multidões gritavam há pouco, em shows de rock, o refrão “loura burra”; em que as senhoras são chamadas de “coroa”; em que as moças da classe média põem silicone nas mamas e nas nádegas, para, no primeiro caso, incorporar a fantasia sexual importada dos Estados Unidos (e caricaturada numa das cenas mais interessantes de Amarcord, filme de Federico Felini), e, no segundo, imitar o localmente apreciado perfil anatômico fessus das africanas, ? na terra em que a mestiçagem é prática corrente, versos como “mulata, mulatinha meu amor, fui nomeado seu tenente interventor” são condenados por “reforçar os estereótipos negativos defendidos pela ideologia do embranquecimento” (Andrade, Ivanelde Pinheiro de ? A mulher negra na MPB: um abalo na identidade racial).
Trata-se, enfim, de uma questão de ponto de vista, como na história do copo pela metade, que pode estar meio cheio ou meio vazio. Prefiro pensar que o copo está meio cheio e sonhar que um dia se encha completamente.
Poesia, pra que poesia?
Tirando de lado esse tipo de tendenciosidade acadêmica, o que ficou faltando na cobertura do centenário do nascimento de Lamartine?
Quase tudo.
Primeiro, a sua excelência como poeta. Um verso de Orestes Barbosa foi considerado o mais belo da língua portuguesa no século. No contexto é, pelo menos, alegoria brilhante da capacidade de sonhar de nossa gente pobre:
“A porta do barraco era sem trinco/ Mas a lua, furando nosso zinco/ Palmilhava de estrelas nosso chão./ Tu pisavas nos astros distraída…”.
Orestes, jornalista e poeta, foi contemporâneo de Lamartine. O primeiro, autodidata, nunca foi à escola; o segundo freqüentou o refinado Colégio de São Bento, no Rio de Janeiro. Ambos cultivavam, porém, a mesma arte de poetar, voltada para o sentido tanto quanto para a forma das palavras. É o caso de Serra da Boa Esperança:
“Parto saudades levando,/saudades deixando./ mudas, caídas na serra,/ bem perto de Deus” [saudade é o nome de flores de plantas do gênero Scabiose, também chamadas de suspiro].
Ou este:
“Nós os poetas erramos/ Porque rimamos também/ Os nos olhos nos olhos/ De alguém que não vem” [o paralelismo de rimas em sílabas tônicas consecutivas é um achado).
Ou ainda este:
“Deixo a luz do luar no teu olhar”.
Poetas dizem muito da natureza do homem e poetas populares da natureza de seu povo. Com isso concorda certamente um músico que atua em gênero bem diferente, Eduardo Dusek, a que se deve a mais respeitosa e fiel versão gravada de Serra da Boa Esperança, cujo intérprete original foi Francisco Alves.
O plágio, antes do pecado capital
O segundo aspecto notável é o quanto as composições de Lamartine revelam de transformação do sentido da palavra “propriedade” e do conceito de “direito autoral” nas últimas décadas. Além de poeta, ele era compositor com certo requinte ? quem duvidar, contemple as cifras de Os Rouxinóis, marcha-rancho muito pouco cantada porque é difícil de cantar, com uma estrutura polifônica que lembra o contraponto. E o homem, dizem, não sabia música!
No entanto, Lamartine copiava música dos outros. Às vezes, confessava:
“Peri beijou Ceci/ E aí vem o pedacinho/ que eu roubei do Guarani” [Il Guarani, ópera de Carlos Gomes].
De outras vezes, a imitação era mais que evidente: a marchinha Ri-te, palhaço repete frases músicas de uma área da opera Il Pagliacci, de Ruggiero Leoncavallo. Mas o plágio mais radical é o Hino do América, idêntico à marcha composta por John Phillip Sousa para uma universidade americana.
Não era incomum a cópia. O trenzinho do caipira (a “tocata”, das Bachianas Brasileiras no 2), de Heitor Villa Lobos, utiliza com maestria o tema de Rasga o coração, de Catulo da Paixão Cearense ? e isso está escrito na contracapa de uma gravação em vinil da Capitol Records, em que o autor rege a Orquestra Werner Jansen.
Canções populares, algumas com autoria conhecida, estão nos clássicos ? de Johanne Brahms (as Rapsódias Húngaras, por exemplo) a Nikolai Rimsky-Korsakov (a música para o balé Sheherazade, entre outras). Oh, Minas Gerais, tida como hino pelos mineiros, é nova letra imposta à melodia de Veni sul mar (Venha para o mar), canção folclórica italiana que tem também uma versão em iídiche, Zing feygele zing, berceuse em que alguém, já adulto, lembra do canto de ninar de sua mãe e conclui que essa lembrança torna mais fácil a sua vida.
Também eram freqüentes paródias de músicas alheias. Uma delas, sobre Trem blindado, marcha com que Braguinha , o João de Barro (Carlos Alberto Ferreira Braga), mangou dos paulistas rebelados em 1932 na revolução constitucionalista:
“Meu bem/ Pra me livrar da matraca/ Da língua de uma sogra infernal/ Foi preciso um trem blindado/ Pra poder sair/ No carnaval […] Mandei fazer então algo em São Paulo/ um capacete de aço”.
A paródia (atribuída a Noel Rosa) é impublicável, mas ficou tão boa que a canção original passou a despertar constrangimento e riso, ao ser cantada ou tocada.
Era um tempo interessante, em que o trem blindado era arma ameaçadora ? se não tirassem os trilhos e se o adversário ficasse num raio de 50 a 100 metros ? e, para fingir que havia metralhadora, girava-se com força a matraca. Hoje, nos ultra-impiedosos confrontos militares, quem tentar algo assim perderá a vida, além da guerra ? que os paulistas, afinal, perderam, sem que por isso deixassem de comemorar. E, numa era em que o grande capital entrou no negócio das autorias, quem copia algo (uma canção, um CD, um software) está ameaçado de queimar nas chamas do inferno.
(*) Jornalista, professor titular da Universidade Federal de Santa Catarina