Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Crise nos paradigmas do jornalismo

PESQUISA

Luiz Gonzaga Motta, de Barcelona (*)

Nos dois últimos anos foram publicadas algumas sínteses sobre o estado em que se encontram hoje os estudos do jornalismo enquanto objeto de reflexão. Acredito que a publicação destas sínteses ocorreu menos em função dos modismos criados com a virada do milênio do que devido às mudanças efetivas que estão acontecendo na prática do jornalismo, e que nos obrigam a repensá-lo tanto como profissão quanto como objeto de estudo. Creio, entretanto, que devemos pensar as crises do jornalismo no seio da crise geral da nossa sociedade. Vamos por partes.

Há mudanças importantes ocorrendo na produção da notícia que exigem maior agilidade e novas habilidades dos jornalistas. Novos meios, novos contextos de produção, novas linguagens estão alterando acentuadamente o fazer jornalístico. Como resultado desse desenvolvimento tecnológico, as notícias estão se tornando um produto superabundante, barato e instantâneo. Reduz-se cada vez mais a interferência do jornalista, e as pessoas estão se acostumando a ver o acontecimento no momento mesmo de sua ocorrência, sem a necessidade de intermediações personalizadas, sem necessidade de palavras. O espetáculo do 11 de setembro em Nova York, transmitido ao vivo para todo o mundo, foi um marco nessa experiência de visualidade e instantaneidade na transmissão de eventos: muito imediatismo, profusão de imagens, poucas palavras, profunda perplexidade e incompreensão.

Essas mudanças na profissão não passaram despercebidas dos estudiosos da comunicação jornalística, que apontam rumo a uma mudança de paradigmas. Mas, é preciso refletir mais cuidadosamente sobre essas modificações em nível conceitual e correlacioná-las com as modificações na profissão para ver se podemos falar, de fato, em mudanças de paradigmas do jornalismo. Antes de mais nada, a meu ver, é mais sensato distinguir entre as mudanças que ocorrem na profissão e aquelas que ocorrem nos estudos do jornalismo.

Na profissão, creio que não há nenhuma mudança de paradigma, e sim um reajuste, que alguns autores chamam de metamorfose profissional. Os novos produtores assimilaram a cultura profissional anterior e os novos meios, como a rede, utilizaram estruturas comerciais e industriais já existentes, fazendo convergir processos de produção cultural ainda mais centralizados e com uma rentabilidade financeira certamente maior. Muitas empresas que operam o jornalismo online são as mesmas que operavam outras formas de jornalismo anteriormente. Desde a prática profissional, a crença na primazia dos fatos foi ainda mais reforçada com o advento do jornalismo online, que sacramentou a retórica da objetividade, da síntese e da imediatez com sua linguagem telegráfica. O jornalismo online só publica flashes curtos, raramente reportagens. Muita síntese, poucas palavras.

Por outro lado, os velhos meios, como o jornalismo gráfico, por exemplo, também não fizeram nenhuma ruptura radical nas repetidas maneiras de produzir a notícia. Ao contrário, fizeram mais uma readaptação legitimadora de suas rotinas e linguagens para fazer frente às exigências da instantaneidade e da visualidade, em prejuízo da palavra. Os jornais tornaram-se mais clean, mais coloridos e mais didáticos depois da mania da infografia, um recurso de design que lhes assegurou adesão às novas exigências do público leitor, ávido por informações rápidas, bonitas e superficialmente instrutivas. Tudo rápido, ligeiro, sem aprofundamento.

Da mesma forma, parece que a transmissão direta no jornalismo televisivo e radiofônico só fez reforçar o compromisso profissional com o empirismo. Como se ver ou ouvir imagens e sons diretos significasse compreender (pulsão escópica, no dizer de alguns). Deste ponto de vista, cabe melhor falar em metamorfose profissional, entendida como um ajuste às novas circunstâncias industriais da produção cultural, sem nenhum rompimento epistemológico ou paradigmático. O paradigma da objetividade, com todos os seus corolários, continua hegemônico e sem ameaças na profissão. Trocou de pele, não de conteúdo.

Independência e insensibilidade

Na área acadêmica dos estudos de jornalismo, ainda que o campo seja bastante confuso, encontramos hoje um paradigma bem consolidado e diretamente vinculado ao exercício profissional. É o paradigma da objetividade, cujas raízes epistemológicas estão no empirismo funcionalista. Por mais que os jornais tenham mudado as suas rotinas, as suas fachadas, os seus conteúdos e a sua linguagem, eles continuam praticando a retórica da objetividade a partir do paradigma profissionalmente hegemônico, como já dissemos acima. Este paradigma continua sendo abastecido e referendado por pesquisas e artigos da academia, especialmente pela sociologia funcionalista dos Estados Unidos, mas não só lá.

Este paradigma postula que a linguagem é uma cópia do real, que o mundo real das coisas (e dos acontecimentos) existe independentemente de nós, é um mundo prévio e autônomo em relação ao observador-intérprete. Os fatos, diz o paradigma, devem falar por si mesmos. Existe um realismo ingênuo e um realismo crítico, que não confia apenas na experiência, mas também na razão e no método, posição evidentemente mais comum hoje em dia nos círculos funcionalistas. Os fundamentos de ambos estão, entretanto, na mesma convicção de que a realidade existe independentemente de quem a observa e o jornalista, por uma atitude imparcial, é capaz de observar a realidade de forma neutra, sem julgamentos prévios, sendo capaz de transcrevê-los de forma objetiva, sem contaminar-se com opiniões.

Embora este paradigma empirista continue soberanamente hegemônico na profissão, existem questionamentos contundentes por parte da academia que o interrogam continuamente. A crítica principal, resumida aqui com riscos de simplificar demasiadamente a questão a partir de um artigo recente do professor Vidal Castell, argumenta que toda percepção implica interpretação, seleção e priorização; que nenhuma notícia é neutra nem objetiva; que aquilo que o leitor conhece não são os fatos, mas uma versão determinada entre outras possíveis versões; que todo enunciado sobre o mundo é uma elaboração subjetiva e intersubjetiva que interpreta a realidade de modo particular e incompleto, onde intervêm necessariamente concepções particulares de alguém (o jornalista) sobre o que acontece. Diz a psicologia que o olhar do indivíduo cria o monstro, diz a crítica que o olhar do jornalista cria a notícia, não o contrário. Neste sentido, não se pode falar de fatos soberanos nem de uma realidade externa a quem observa. Ao contrário, é o observador que cria simbolicamente o mundo observado e o discurso jornalístico é, de fato, uma construção social sobre a realidade observada. Assim, finalmente, o paradigma da objetividade não garante objetividade nenhuma, e na verdade tenta dissimular a intermediação subjetiva do jornalista.

Essas críticas não são novas. Elas vêm sendo feitas pelos estudos que utilizam o conceito marxista da ideologia há mais de 40 anos. Mesmo na sociologia americana, W. Lippman, R. Park e C. W. Mills, entre outros, já faziam críticas semelhantes, guardadas as diferenças entre cada autor, desde a década de 20. O professor Vidal Castell observa que, nas duas últimas décadas, essas críticas se fortaleceram epistemologicamente com as contribuições da filosofia da linguagem pelo movimento que está sendo reconhecido como "giro lingüístico", movimento que reafirma a radical relevância da linguagem no pensamento humano (sem linguagem, não há pensamento) e que entende a linguagem como parte inextricável do processo de apreensão e empalavramento da realidade. E também com as contribuições do "giro retórico" que o seguiu, em que a retórica é entendida como um componente inerente a qualquer ato comunicativo, não apenas aos discursos persuasivos. Mais recentemente adicionou-se o chamado "giro antropológico", com o argumento de que todas as referências ao mundo implicam um ato de classificação e ordenação, e por isso o real é um constructo. Essas correntes epistemológicas se somaram, reforçando as críticas ao empirismo, agora bastante adensadas.

Nem por isso, entretanto, essas críticas tiveram repercussão sobre o paradigma predominante na profissão do jornalismo, que continua inabalável como último reduto da objetividade. Essa ausência de repercussão deve-se, em parte, à relativa autonomia do setor acadêmico em relação ao exercício profissional, uma faca de dois gumes: por um lado, garante independência em relação às exigências do mercado, mas por outro torna a profissão insensível e impenetrável às críticas da academia, quando os cânones fundadores da objetividade são questionados.

Apenas um modismo elegante

No caso do jornalismo, argumenta um recente artigo do professor Luis Nuñez Ladeveze, esta separação entre a profissão e a crítica acadêmica tem razões mais profundas. Enquanto profissão, diz o argumento, o jornalismo não necessita de uma formação acadêmica, podendo prescindir dela, ao contrário da medicina e das engenharias, que produzem um conhecimento científico estritamente vinculado à profissão e imprescindível para o exercício profissional. O jornalismo enquanto profissão especializada surge não em decorrência das necessidades de sua prática, mas sim da evolução tecnológica e especialmente da divisão social do trabalho nas complexas sociedades de massa contemporâneas. A pesquisa sobre o jornalismo, em decorrência da ausência das exigências de pesquisas formadoras-profissionais, volta-se para os seus processos constitutivos e para os seus efeitos, seja de caráter funcional-empirista, crítico ou literário. Do ponto de vista da pesquisa, a onipresença política e cultural dos meios de comunicação e a sua importância na constituição da sociedade moderna falaram mais forte do que a natureza da profissão.

Além disso, as outras ciências do homem, como a sociologia, a psicologia e a antropologia, já haviam percebido essa importância desde os seus próprios modelos, e aportavam contribuições sobre o impacto dos meios de comunicação e do jornalismo sobre a sociedade como um todo, muito menos do que sobre a prática profissional. As pesquisas sobre a profissão eram isoladas e erráticas. Com isto, as faculdades de Jornalismo deixaram-se penetrar pelo teoricismo acadêmico, seja ele funcionalista-empirista, marxista, estruturalista ou semiótico, e os resultados de suas reflexões, na maioria absoluta dos casos, pouco tinham a ver com a prática profissional.

Há outros motivos, porém, para explicar a incapacidade de uma teoria crítica impregnar a prática profissional e minar o paradigma hegemônico. A diversidade de orientações, temas e métodos decorrentes de influencias e de escolas as mais variadas transformou o campo de estudos do jornalismo em uma miscelânea de conceitos, modelos e enfoques difíceis de serem sistematizados em paradigmas mais ou menos coerentes que pudessem fazer sentido enquanto modelo profissional alternativo.

Se tomarmos ao pé da letra o autor mais conhecido na filosofia da ciência, Thomas Khun, um paradigma científico significa um compromisso conceitual compartido por um grupo de cientistas, um corpo de premissas ou de matrizes teóricas que forneçam os problemas e os modelos conceituais sob os quais a maioria dos pesquisadores da área trabalha. Os estudos críticos do jornalismo ou da comunicação não têm um estatuto teórico suficientemente amadurecido para tornar-se paradigmaticamente hegemônico. Não é porque inexistam pesquisas, mas porque nenhuma corrente crítica se impôs com coerência e continuidade suficientes. Cabe mais apropriadamente falar em pré-paradigmas, termo, aliás, utilizado por este autor ao referir-se às ciências sociais em geral quando comparadas com ciências mais estabelecidas como a física, a química ou a matemática.

É bem verdade que, na América Latina, durante as décadas de 60 e 70 o marxismo teve uma certa hegemonia a partir da teoria da dependência, logo expandida para uma teoria da dependência cultural e informativa. É também verdade que durante as décadas de 70 e 80 o estruturalismo lingüístico impregnou grande parte dos estudos sobre a indústria cultural. Mas, enquanto o primeiro serviu mais como um marco político dentro do qual os estudos de comunicação e do jornalismo buscavam uma identidade própria latino-americana, o segundo não passou de um modismo elegante sem resultados práticos importantes.

Por uma gramática da esperança

Nem um nem outro chegou a construir um corpo de matrizes teóricas. Os estudos de caráter marxista estavam por demais vinculados às posturas político-ideológicas não necessariamente científicas, e grande parte da semiologia estruturalista se reduziu a um exibicionismo intelectual. Além disso, já nos anos 80 e principalmente na década de 90 os estudos do jornalismo e de comunicação em geral tomaram rumos tão diversificados e excludentes que se tornou impossível discernir com clareza o que de fato se passava neste campo.

Assim, torna-se difícil falar em mudanças de paradigmas do jornalismo. Como vimos, o paradigma hegemônico continua soberano na profissão e em parte da academia, que o sustenta. Os estudos críticos, embora profícuos, não tiveram consistência nem continuidade para se constituir em paradigma alternativo, além de enveredarem por um cientificismo alheio à profissão. Creio, entretanto, que a grave crise que abarca o jornalismo e a decadente sociedade de consumo como um todo, e que deveria nos preocupar profundamente, é a crise da palavra, entendida como a totalidade das expressividades de que dispõe o ser humano para conhecer e conhecer-se. O pré-paradigma crítico ? se existe ? apenas roçou-a.

Na sociedade ocidental contemporânea há uma hipertrofia da palavra, e o jornalismo é, pelo menos parcialmente, responsável por ela. O jornalismo vem continuamente se omitindo na denúncia do esvaziamento dos debates das grandes questões da sociedade e se modernizando pelo pior caminho, aquele do entretenimento vulgar. Jornais e revistas, tanto quanto o rádio e o telejornalismo, estão cada vez mais levianos, valorizando o banal, o prazer fácil e a superficialidade. Pior ainda, as reformas mais visíveis estimulam novas formas de imediatismo e de empirismo, que consolidam a incapacidade de nossa sociedade em expressar e debater em âmbitos mais coerentes e saudáveis as relações dos homens com outros homens e com a natureza.

Como nos fala o crítico literário franco-americano George Steiner, é por meio da palavra que o homem se libertou do grande silencio da matéria, e para exercer o ?ofício de homem? e dar consistência à vida é preciso construir uma gramática da esperança que afaste a barbárie que nos rodeia. Ou ainda, como complementa o antropólogo catalão Lluís Duch, a cultura ocidental entrou em uma crise do significado que a levou a uma ruptura da aliança entre palavras e mundo. Entramos em um ?tempo posterior? da palavra em que a linguagem é limitada, empobrecedora da realidade pluriforme, redutora à mera facticidade, expressando cada vez menos a imensa capacidade do homem de criar, de imaginar fantasias, desejos e utopias. Esta é a crise à qual nós, jornalistas e estudiosos da comunicação jornalística, devemos de fato nos preocupar. A grande crise do silêncio contemporâneo, por mais que expressemos banalidades.

(*) Jornalista e professor de Comunicação da Universidade de Brasília, atualmente na Espanha para pós-doutorado