IDIOTAS & DEMAGOGOS
D?Alembert Jaccoud (*)
Prefácio de Idiotas & Demagogos ? Pequeno manual de instruções da democracia, de Almyr Gajardoni, Ateliê Editorial, São Paulo, 2002
Nenhuma atividade humana é mais exposta do que a política. Provavelmente, por isso mesmo, nenhuma outra é tão desconhecida do grande público. As pessoas lêem sobre política e discutem os fatos de cada dia, que bem ou mal lhes chegam pelos meios de comunicação. Mas nem todas têm tempo para meditar sobre as razões que fizeram surgir o Estado e a autoridade, os parlamentos e os governos, os impostos e a polícia, enfim, as leis e as normas de convívio entre as pessoas, dentro de seu próprio país e nas relações com os outros países.
O livro de Almyr Gajardoni, um dos melhores jornalistas brasileiros de sua geração, é um agradável passeio intelectual na história das idéias e ação política, dos fundamentos democráticos do mundo greco-romano ao Brasil de nossos dias. Mas, além de tudo, é uma defesa da política, até mesmo quando narra as suas dificuldades. Essas dificuldades fazem lembrar a advertência velha, de que os conflitos fazem parte do humano viver. Se os conflitos fazem parte do humano viver, a missão da política, desde a sua origem, é a de administrar os conflitos.
Almyr diz, em seu livro, que desde o advento da Constituição de 1988 "o Brasil é um Estado liberal" e que, por conseguinte, "mesmo que isso não agrade a alguns, todos quantos se aventuram à conquista de um mandato eletivo são liberais, de carteirinha e diploma assinado". Temo que, nessa generalização, ele se tenha permitido um equívoco, porque há liberais e liberais.
O termo "liberal", em política, ao definir a liberdade, encontra muitas interpretações. Liberdade, sim, mas para quem e para quê? A Aliança Liberal, de 1930, propunha-se a libertar o Brasil dos métodos políticos da República Velha, mas também promover o desenvolvimento e construir a soberania do País. O novo liberalismo, em meu entender, pretende apenas a liberdade de mercado, o direito de o capital ditar suas regras ao Estado, para torná-lo seu servidor submisso. O Estado deixa de exercer o dever de arbitrar os conflitos em nome da justiça e dos ideais humanistas de igualdade e de fraternidade, e passa a arbitrá-los em favor dos muito ricos. Os novos liberais não esconderam, nunca, o propósito de dominar o Estado e erodi-lo. Não é por acaso que a Organização Mundial do Comércio está hoje propondo a privatização dos serviços de saúde e de educação, como havia proposto antes, e obtido, a privatização de outros serviços públicos, como os de energia elétrica e telecomunicações.
O novo liberalismo, mais do que o antigo liberalismo econômico do século 19, despreza os ideais humanísticos do Ocidente, estabelecidos pelos gregos e pelos cristãos, e substitui a solidariedade pela competitividade e os trabalhadores pelos robôs. Esse ideário perverso, ao promover o desemprego, e incentivar a disputa pelo êxito falso, que se revela no consumo, estimula a violência e expele da sociedade contemporânea milhões e milhões de seres humanos, relegando-os a condições primitivas de sobrevivência, e os condenando à fome e a uma nova forma de genocídio.
A esse novo liberalismo aderiu Fernando Henrique Cardoso, que o vem implantando conscientemente em nosso País. Valendo-se de instrumentos constitucionais, previstos unicamente para graves situações de emergência ? as medidas provisórias ?, e se aproveitando da não regulamentação de dispositivos nucleares, como o artigo 192 da Carta de 1988, o presidente promoveu o desmantelamento da ordem política e econômica que jurara defender. Pouco a pouco foi construindo maioria parlamentar submissa, capaz de aprovar emendas constitucionais que desfiguraram a Constituição e comprometem os fundamentos do Estado Republicano e Federativo, tal como eles foram estabelecidos em 1891.
Assim conseguiu revogar totalmente o artigo 171 da Constituição de 1988, que definia a identidade das empresas nacionais para efeito da lei. Esse dispositivo, sugerido por Barbosa Lima Sobrinho na Comissão de Estudos Constitucionais criada por Tancredo Neves, e acolhido pelos constituintes graças à veemente defesa que dele fez o senador Severo Gomes, seria um obstáculo à privatização da Vale do Rio Doce, à concessão de jazidas de petróleo e de outros minerais e ao financiamento com dinheiro do FAT, via BNDES, a empresas estrangeiras que, mediante esse golpe constitucional, passaram todas a ser "brasileiras". Da mesma forma, mediante manobras não muito claras, conseguiu romper uma tradição centenária e impor o instituto da reeleição para os detentores de cargos executivos, em seu próprio e preponderante interesse.
Depois de Fernando Henrique, qualquer que venha a ser o liberal (em seu sentido político clássico) a eleger-se presidente da República, terá que agir com redobrada determinação e coragem a fim de obter a recuperação do poder que o Estado perdeu nestes últimos oito anos. Só assim parece possível retomar o desenvolvimento econômico ? ou a "Construção Interrompida", conforme o lúcido ensaio de Celso Furtado ?, reencontrar as tradições de solidariedade de nosso povo e a ele devolver a esperança e a paz.
Feita essa observação pessoal, fica o meu entusiasmo pelo livro. Ele não só reflete a erudição histórica de Almyr Gajardoni, mas revela a virtude profissional de síntese e do bom estilo literário. A linguagem é tanto mais comunicativa, quanto mais direta. Literatura e jornalismo se encontram nesse campo comum, o de dizer as coisas de tal forma que todos as entendam bem, e com prazer.
É assim o livro de Almyr Gajardoni.