Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Daniella Sholl

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JORNALISMO & AMORALIDADE

"Política tem ?zona de amoralidade?", copyright Jornal do Brasil, 27/05/01

"No Brasil da CPI da Corrupção abafada e do voto secreto violado, a prática política se transformou no exercício cotidiano da denúncia. Não fica pedra sobre pedra. Legislativo, Executivo, Judiciário, todos os poderes estão sob suspeita. Ou, como se diz nas ruas, sem nenhuma moral. Mas a política é regida por qual moral?

A questão, tão antiga quanto a filosofia, voltou a ser tema de um debate acalorado nas hostes políticas e acadêmicas nos últimos dias. Em meio à ameaça de apagão no país, a luz foi acesa pelo filósofo José Arthur Gianotti, professor emérito da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP) e presidente do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento).

Não fosse Gianotti sabidamente amigo pessoal do presidente Fernando Henrique Cardoso e não houvesse as coincidências dos fatos, seu artigo na Folha de S. Paulo no dia 17 certamente não teria gerado tanta polêmica e despertado tantas paixões. Pois na mesma semana em que Fernando Henrique era acusado de liberar verbas para atender a emendas parlamentares e, assim, barrar a CPI da Corrupção, Gianotti escreveu que o exercício do poder é a ?administração de recursos escassos?, regida por regras dentro das quais existe uma certa ?zona cinzenta da amoralidade?, sem as quais o poder não poderia ser exercido. E continua: partindo do princípio de que a política é um jogo competitivo – a começar pela disputa do voto -, Gianotti afirma que, tal qual qualquer jogo, a política ?requer um espaço de tolerância para certas faltas?. A polêmica estava lançada.

Reação- Num artigo-resposta assinado pela filósofa Marilena Chauí na quinta-feira, o debate ganhou contornos de pugilato mental. E com exemplos nada platônicos. ?Não se pode falar em bens escassos distribuídos ao Banco Marka nem em bens escassos distribuídos a parlamentares em momentos cruciais, nem em bens escassos que sempre comparecem para garantir alguma privatização?, bombardeou Marilena Chauí.

No meio acadêmico, o embate gerou adesões, bem como entre os políticos que fazem das páginas de opinião leitura obrigatória nos jornais. Houve quem, como o professor Renato Janine Ribeiro, filosofasse com Gianotti: ?A ética política é diferente da ética privada. A política leva em conta, principalmente, os resultados. Definir o que é aceitável na política é um desafio, porque ele não pode ser dado por uma tábua de valores fixos. Não se pode aplicar a moral do certo e do errado quando há vários certos?, diz Janine Ribeiro. Uma visão da qual o cientista político Carlos Nelson Coutinho discorda frontalmente. ?Maquiavel já tinha mostrado que a política tem a sua própria ética. Mas dizer que isso é sinônimo de amoralidade é algo totalmente equivocado?, dispara Coutinho.

O ideólogo do PT e secretário municipal de Cultura de São Paulo, Marco Aurélio Garcia, e seu colega de partido, deputado José Genoíno (SP), vão na mesma linha. ?O que o Gianotti faz foi tentar dar uma argumentação filosófica para justificar o fisiologismo de FH ?, critica Genoíno. ?A liberação de recursos do orçamento pelo Tesouro é um poderoso instrumento para constranger os parlamentares que, à falta de uma presença mais marcante no Congresso, sobrevivem de sua capacidade de agenciar recursos para uma estrada vicinal, um posto de saúde. Em condições distintas da vida política, deveriam ser contemplados a partir de demandas da população expressas de forma organizada, como ocorre, por exemplo, nos orçamentos participativos?, completa Garcia.

Administração- O assessor especial de Fernando Henrique, ex-governador Moreira Franco, naturalmente discorda dos dois petista. ?A discussão não é ética, mas política. Formar maioria no Congresso não é um processo de manipulação, mas de administração?, teoriza.

O prefeito Cesar Maia, para quem ?política é ciência?, concorda com Gianotti no que diz respeito à existência de uma ?zona cinzenta? – no que diz respeito basicamente à omissão e manipulação de informações – mas alerta sobre o perigo que as constru&ccedilccedil;ões explicativas desse fenômeno podem gerar. ?Elas terminam por criar um véu de justificativas que só fazem gerar estímulos para delitos políticos, e acabam ganhando apelo popular na já consagrada máxima que justifica até o voto: o rouba, mas faz?. (Colaborou Cristiane Costa)"

"Acerca da moralidade pública", copyright Folha de S. Paulo, 24/05/01

"A confusão entre moral privada e pública produz um obscurecimento acerca da essência da política, ou seja, faz aparecer o moralismo.

De fato, ao confundir os dois espaços, o moralismo suscita dois equívocos igualmente graves: o de tomar o espaço político segundo os critérios da vida familiar (regida pelo princípio da autoridade pessoal e da afeição) e das relações de mercado (regidas pelo princípio da propriedade privada dos meios de produção), quando, na verdade, a política nasce para responder aos problemas, conflitos e contradições dessas duas esferas privadas, não podendo ser regida pelas mesmas normas que as regem.

E, em segundo lugar, ao se supor que as normas e regras da moralidade privada devem estar em vigência na política, será preciso supor que o espaço político encontra-se definido antes da própria política e que esta é simplesmente, no nível público, a retomada de normas preexistentes, de sorte que perdemos o essencial da política, isto é, a diferença entre o privado e o público, fundadora da política, que a faz ser uma ação nova produzida por uma relação nova; novidade que a faz ser sempre indeterminada quanto ao seu curso, mas não indefinida quanto às suas regras.

É isso que a palavra ?república? sinaliza e significa. Por isso mesmo o Estado não é nem pode ser uma grande família nem uma grande empresa: se for, não há política possível. Em outras palavras, a moralidade política se define pelas ações e pelo curso das ações numa lógica nova que não é a da autoridade (como na família) nem a da força (como no mercado), mas a do poder.

Pelo mesmo motivo, não se pode falar em ?zonas de amoralidade? na política, uma vez que isso significa que estamos supondo uma moralidade externa e heterogênea à política, moralidade puramente íntima, que fica em suspenso para que a ação política se realize com eficácia. Distinguir o público e o privado, afastar o moralismo, admitir a dimensão fundante da ação política e a indeterminação de seu curso não pode significar ?vale-tudo?, e sim que nos cabe saber como é construída a moralidade propriamente política no curso de ações das quais não temos controle pleno.

Tomemos dois exemplos aparentemente sem ligação, mas que podem nos auxiliar a compreender o que é a moralidade política: o caso da ?vaca louca?, na Europa, e o caso do ?apagão?, no Brasil. Ambos têm um primeiro traço comum: a ausência do Estado como responsável pelo bem-estar dos cidadãos, pelo direito à saúde e pelo direito ao mínimo trazido pela tecnologia moderna.

No caso do gado europeu, o abandono das políticas estatais de saúde pública e sua privatização acarretaram a ausência prolongada de fiscalização das condições sanitárias; no caso do apagão, a submissão às imposições do FMI de solução do ?déficit público? pelo não-investimento em áreas de serviços à população acarretou um abandono da política energética, cujas consequências só poderemos avaliar quando, em futuro próximo, pudermos medir a queda da produção e o aumento do desemprego, para não mencionarmos o desrespeito a todos os direitos dos cidadãos, contido nas medidas governamentais.

Nos dois casos vemos o que se passa quando a lógica do poder deixa de estar referida aos direitos dos cidadãos e à instância generalizadora da lei para tornar-se um jogo de forças em competição no qual sempre sabemos quem será o perdedor.

Mas esses dois casos indicam também e sobretudo que o poder político não se define pela distribuição de recursos escassos. Se assim fosse, toda instituição de benemerência e de filantropia exerceria poder político. É bem verdade que o modelo neoliberal, ao destruir a institucionalidade estatal e alijar os direitos sociais da esfera política, não poderá pensar o poder senão como distribuição filantrópica de bens escassos (escassos para quem, cara pálida?), mas esse pensamento, exatamente, indica a morte da política por sua perfeita confusão com os princípios da propriedade privada dos meios de produção e com a lógica da força, que define o mercado, assinalando a presença difusa do despotismo (em geral, não esclarecido).

Por onde passa a moralidade política? Desde Aristóteles, o pensamento político aprendeu a distinguir a justiça distributiva e comutativa e a justiça política. A justiça distributiva se refere aos bens partilháveis (é a economia), a justiça comutativa se refere às penas e recompensas legais que reparam danos cometidos contra cidadãos (o tribunal); mas a justiça fundante se refere a um bem que não pode ser partilhado e distribuído, somente participado: o poder político.

O poder se refere ao governo e este se refere à maneira como a totalidade dos cidadãos participa do poder, definindo para a sociedade a justiça distributiva e a comutativa. Por isso mesmo há indeterminação do curso da ação (pois todos dela participam), mas não há amoralidade (pois há regras definidas pelos cidadãos). E há imoralidade política quando um governo opera não só ferindo a justiça distributiva e a comutativa, mas sobretudo quando exerce o poder não em nome dos cidadãos e sim em nome de um grupo poderoso de cidadãos. Não se pode falar em ?bens escassos? distribuídos ao banco Marka nem de ?bens escassos? distribuídos a parlamentares em momentos cruciais de votação nem de ?bens escassos? na parte de dinheiro público que sempre comparece para garantir uma privatização.

Todavia não podemos pensar apenas com a idéia de justiça política entendida como o direito de participação de todos os cidadãos no poder. O pensamento político moderno, exatamente ao propor a distinção entre virtudes privadas e poder político, afirmou dois princípios nucleares da lógica do poder com os quais podemos nos acercar da moralidade propriamente política. Em primeiro lugar, a compreensão de que toda sociedade está dividida originariamente entre o desejo dos grandes de comandar e oprimir e o desejo do povo de não ser comandado nem oprimido, definindo o lugar do governante não acima das classes e sim como aliança necessária com o desejo do povo e como contenção do desejo dos grandes (pois o desejo destes aniquila a instância pública da política).

Em segundo, a compreensão de que a moralidade pública não depende do caráter dos indivíduos e sim da qualidade das instituições como expressões concretas do lugar e do sentido da lei. A lei é o pólo da universalidade numa sociedade dividida em classes (ou cindida em particularidades conflitantes e contraditórias); pólo no qual se definem a cidadania e as formas de seu exercício.

Se observamos esses dois princípios, podemos dizer que, neste momento, reina a mais completa imoralidade política no Brasil, o governo é dos grandes para os grandes (a propalada ?governabilidade?) e as instituições públicas estão corroídas porque a instância da lei foi substituída pela idéia publicitária de ?credibilidade?.

Examinemos brevemente o modo de aparecer dessa imoralidade nos últimos tempos. Ela tem aparecido sob a forma do embuste, isto é, como a decisão de impedir que os cidadãos possam deliberar, decidir e formar uma opinião consistente sobre as ações políticas porque estão impedidos de demarcar fato e versão, verdade e mentira.

Se nos recordarmos do clássico estudo de Hannah Arendt sobre a mentira política, haveremos de lembrar que ela aponta os dois instrumentos empregados pelo governante para realizar o embuste. Um deles são os ?relações públicas?, que operam com os recursos da publicidade e têm como princípio a idéia de que os cidadãos são inteiramente manipuláveis pelas opiniões vendidas no mercado político; são os agentes da propaganda do governo.

O outro instrumento são os ?resolvedores de problemas?, caracterizados pela autoconfiança extrema e pela certeza de sempre prevalecerem porque sabem se livrar dos fatos, tanto destruindo documentos, memórias e testemunhos, como produzindo uma irrealidade que vem à existência, por meio de discursos, chantagens, coações, distribuição de benesses, ameaças veladas ou diretas e sobretudo pela desqualificação sumária dos opositores; são os assessores do governo. Juntos, relações públicas e resolvedores de problemas criam as condições para que o governo nunca possa ser desmentido, pois toda contraprova é invalidada por princípio, graças ao ocultamento da realidade sob a imagem irreal e graças à desqualificação prévia dos oponentes.

Se essas observações estiverem corretas, podemos fazer alguns reparos severos no artigo escrito por meu colega José Arthur Giannotti, publicado nesta página (17/ 5).

Depois de definir o poder como distribuição de bens escassos e de concebê-lo como uma competição cujas regras devem comportar espaço de tolerância para certas faltas (embora o autor não nos diga quais faltas devem ser toleradas nem por que o devem), é dito que a opinião pública deve ser mobilizada na determinação da linha de tolerância entre o que o político deve ou não fazer.

A questão, portanto, é saber quem mobiliza a opinião pública para isso. Os partidos de oposição? Não, diz o autor, pois o fazem como ditadores ou jacobinos, uma vez que não reconhecem que o poder democrático é um misto de deliberação e decisionismo e que empregam o juízo moral como arma para acuar o adversário, submetendo a investigação da verdade à sua própria vitória.

A imprensa? Não, pois embora os jornalistas aspirem pela universalidade e desejem ser guardiães da moralidade pública, trabalham para uma particularidade, a empresa capitalista de que são funcionários. Na medida em que insistem em fazê-lo, transformam a imprensa, no melhor dos casos, em igreja e, no pior, em servidora de interesses totalitários, uma vez que não reconhecem ao fato político ?sua necessária aura de amoralidade? e ?zonas de indefinição?.

Se, portanto, nem os partidos políticos oposicionistas nem a imprensa são os instrumentos políticos de mobilização da opinião pública na definição da linha de tolerância política, quem é o agente dessa mobilização? Só pode ser o próprio governante! Com isso, caímos nas malhas dos relações públicas e dos resolvedores de problemas, isto é, da produção deliberada do embuste. E fazemos o jogo da chamada ?tolerância passiva?, em que toleramos o governante que nos engana porque é ele quem faz as regras da ausência de regras.

Qual o equívoco de Giannotti? Confundir a indeterminação própria da ação política com uma suposta indefinição de suas regras e deixar nas mãos do governante uma definição nômade, que varia segundo seus interesses. Por outro lado, ao desqualificar os partidos políticos e a imprensa, Giannotti desqualifica politicamente algo mais profundo: a sociedade civil e o conjunto dos cidadãos.

Se é o governante quem diz o que é moral, o que é imoral e o que é amoral na política, se é ele quem nos diz o que é e o que não é tolerável, resta indagar por que Giannotti coloca o totalitarismo como ameaça futura, vinda das oposições e da imprensa. (Marilena Chaui é professora de filosofia política e história da filosofia moderna da USP, autora, entre outros, de ?Cultura e Democracia? (Ed. Cortez) e ?A Nervura do Real? (Companhia das Letras)"

"Maquiavelismo inútil", copyright Jornal do Brasil, 28/05/01

"Nos últimos dias o professor José Arthur Giannotti, em entrevistas e artigos publicados na imprensa do Rio e de São Paulo, buscou dar fundamento filosófico à intervenção do presidente Fernando Henrique Cardoso para enterrar a Comissão Parlamentar de Inquérito, proposta pelas oposições, destinada a investigar a corrupção.

Política não se deduz da moral, diz nosso filósofo. Os políticos como que disporiam de uma quota de amoralidade (ou de imoralidade?) para cumprir o mandato que receberam. Para mover-se nessa ?zona cinzenta? o príncipe teria uma espécie de salvo-conduto que lhe permitiria, sem inibições, fazer o que julga mais conveniente para o pleno exercício do poder.

Nada de novo. Há mais de 30 anos, no dia 13 de dezembro de 1968, ao apoiar a adoção do Ato Institucional No. 5, o ministro Jarbas Passarinho, já havia afirmado: ?Às favas com os escrúpulos? – para justificar sua adesão a uma solução de força para o impasse que o regime vivia naquele momento. É bem verdade que os tempos, as personagens e os valores eram outros.

Essa filosofia de ?farmácia de interior?, expressão evocada para a circunstância por meu amigo Carlos Nelson Coutinho, citando Gramsci, é rala filosoficamente e inútil politicamente. Inútil porque Fernando Henrique prescinde do fundamento proposto pelo amigo Giannotti para sua ação. O presidente negou ter utilizado recursos públicos para ?convencer? os ?rebeldes? de sua base parlamentar a retirar as assinaturas do pedido de CPI. Segundo expôs, as verbas foram sendo liberadas automaticamente, como se essas liberações respondessem apenas às ordens de um softer impessoal.

Para infelicidade da imagem presidencial, a imprensa detectou um fluxo extraordinário de ?liberações de recursos? nos dois dias que antecederam o recuo dos parlamentares anteriormente comprometidos com a CPI. Talvez tenha sido esse mesmo programa de computador que beneficiou esses e outros deputados e senadores em outras ocasiões, no passado, como no momento da votação da emenda da reeleição, ou do rebaixamento do salário mínimo, para citar dois entre muitos casos em que se constatou a presença dessa nova mão invisível capaz de abalar tantas convicções políticas.

O presidente destaca o ?alcance social? das emendas e pergunta, patético, se queremos voltar aos tempos da ditadura militar, quando os parlamentares não podiam modificar o orçamento, criando gastos. Independentemente da relevância de muitas dessas emendas, é sabido que na maioria dos casos elas servem fundamentalmente para alimentar um sistema clientelístico de relacionamento dos parlamentares com suas bases, especialmente os grotões rurais e urbanos. Fosse outro o processo decisório – como na esfera municipal e estadual está ocorrendo com os orçamentos participativos -, a peça orçamentária expressaria uma outra realidade política, resultante do encontro da racionalidade estatal com a vontade popular expressa de forma organizada, diretamente, ou através da representação.

Como isso não ocorre, produz-se o pior dos mundos, no qual os parlamentares conseguem emplacar no orçamento suas reivindicações particulares, capazes de saciar demandas localizadas, enquanto que o governo lança mão, na execução orçamentária, dos mecanismos do ?contingenciamento? de recursos. As rédeas só são afrouxadas quando as circunstâncias recomendam, como ocorreu recentemente.

Giannotti legitima filosoficamente esses procedimentos. Fernando Henrique nega que os tenha adotado. O problema fundamental é outro, no entanto.

É certo que as normas da ação política não se reduzem, nem se deduzem, da moral. Mas não é certo que a ação política seja desprovida de moralidade, como se se desenvolvesse em uma esfera ausente de critérios.

Giannotti, como já fizeram tantos outros com menos propriedade, reforça a tese segundo a qual as esquerdas, e o PT em particular, teriam sucumbido a um moralismo totalitário, próximo, se não pior, daquele professado no passado pela União Democrática Nacional. O presidente não hesitou em chamar essas ações das oposições (e da imprensa) de ?fascistas?. Não é preciso possuir um curriculum sólido em filosofia ou ciência política para saber que as regras morais e éticas que regem uma sociedade democrática, distintas daquelas que vigem na esfera privada, são no entanto tributárias do respeito à República.

É um extraordinário avanço que as esquerdas tenham assumido nos últimos 20 anos uma inequívoca postura republicana. Isso permitiu, entre outras coisas, que elas compreendessem que o combate à corrupção, longe de constituir-se em um ato demagógico de sedução de segmentos sociais impregnados pela ?moral pequeno-burguesa?, como se dizia no passado, constitui-se em um elemento fundamental para assegurar a transparência do Estado, reforçar a constituição de uma esfera pública e, por conseqüência, consolidar a democracia.

Mas ao abraçar essas convicções, que ampliam e dão maior consistência a seu ideário político, as esquerdas foram constatando que a corrupção ganhou uma dimensão particular nestes últimos anos. Os ajustes conservadores, resultantes da globalização financeira, não só enfraquecem a capacidade de intervenção econômica do Estado e de afirmação soberana da nação. Eles supõem e exigem mesmo um enfraquecimento do poder político desse Estado. Reforçam sua opacidade. Debilitam seus mecanismos democráticos de controle.

Ao criticar as oposições como disfuncionais, irracionais ou arcaicas os neoconservadores acabam por desqualificar a política, abrindo o espaço para a aventura que nos ronda e para a corrupção que nos assola.

A construção de um novo modelo econômico que rompa radicalmente com a proposta de inserção subordinada que nos foi imposta nos últimos anos demanda uma renovação política na qual tem lugar de destaque o combate impiedoso da corrupção.

Os apagões com que nos rondam constituem-se na perfeita metáfora das ameaças que pesam sobre nós. Não contentes em tentar confiscar-nos as luzes, buscam agora mergulhar-nos nas trevas. (Marco Aurélio Garcia é secretário de Cultura de São Paulo e professor do Departamento de História da Unicamp)"

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