O POVO
"Interesse público ou pessoal?", copyright O Povo, 18/11/01
"Na última terça-feira (13), O Povo publicou, no caderno Vida e Arte, mais uma das crônicas do colaborador Airton Monte. O artigo foi tema de polêmica o dia todo, uma vez que o colaborador expôs publicamente um problema familiar. Ele falou das angústias de não estar perto da filha, que não tem contato com ele há vários anos, especialmente num dia como aquele – era o aniversário da garota. A pedido da mãe da adolescente, não vou falar aqui de nomes. O resumo do problema é que a mãe da adolescente não admite a exposição da filha, não quer ver sua história pessoal nas páginas de jornal e entende que o cronista e O Povo, que publicou o material, desobedeceram o artigo 17 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). O artigo fala do direito ao respeito, que consiste na inviolabilidade da insanidade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, idéias e crenças, dos espaços e objetos pessoais.
Com base nesse argumento, a mãe da adolescente exigiu um pedido público de desculpas do jornal pela publicação da crônica. Consultei não apenas o advogado do jornal, Mauro Sales, mas também profissionais que trabalham diretamente com a aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente. A avaliação geral é que o jornal não tem do que se retratar, uma vez que não está clara uma situação vexatória para a adolescente. À mãe da adolescente foi feito o convite para escrever um contraponto à crônica de terça-feira, o que ela não aceitou, por não querer um debate público. Ela garantiu que acionará a Justiça, pois entende que o Estatuto justifica uma retratação. À Justiça caberá, portanto, uma avaliação mais criteriosa sobre o caso.
A discussão, porém, possui aspectos muito mais abrangentes do que uma relação conflituosa em uma família. Fora a exposição para milhares de leitores de um problema grave de relacionamento familiar, o caso levanta uma questão muito mais importante e até desafiadora para o jornal. A pergunta é a seguinte: um colaborador, ou colunista do jornal, pode utilizar seu espaço fixo num veículo com milhares de exemplares para tratar de assuntos de interesse particular?
Essa reflexão foi feita pelo diretor-executivo da Redação, Carlos Ely, em conversa na semana passada sobre o episódio, no que nós dois concordamos: não, o espaço do jornal não pode ser utilizado para tratar de assuntos que dizem respeito diretamente ao colunista e/ou colaborador, em nível pessoal ou comercial. Descartar essa constatação é desrespeitar o Código de Ética dos Jornalistas em pelo menos três pontos. O Código diz, por exemplo, que a informação divulgada pelos meios de comunicação pública se pautará pela real ocorrência dos fatos e terá por finalidade o interesse social e coletivo.
Outro ponto: o jornalista não pode exercer cobertura jornalística pelo órgão em que trabalha, em instituições públicas e privadas, onde seja funcionário, assessor ou empregado. Por fim, o jornalista deve evitar a divulgação de fatos com interesse de favorecimento pessoal ou vantagens econômicas. Ainda que o Código de Ética seja o da categoria de jornalistas, acredito que as regras mencionadas, por se tratarem de conduta ética, também se aplicam a colaboradores fixos ou eventuais do jornal, ainda que eles não sejam jornalistas.
Polêmica antiga
O interesse pessoal por trás do material publicado provoca um debate espinhoso, que de forma alguma é recente dentro do jornal. Em 1998, o então ombudsman Lira Neto já alertava: ?Coluna não é, definitivamente, lugar para defesa de interesses estritamente pessoais do colunista. Mas essa regra ética nem sempre é cumprida. Em vez da análise de especialistas, o que se vê é a incidência renitente das colunas feitas de pequenas notinhas, os chamados gossips, balões de ensaio que, boa parte das vezes, reproduzem interesses inconfessáveis. Ou, o que é pior, servem de veículo para interesses absolutamente explícitos? (trechos de coluna publicada em 9 de março de 1998).
No caso da crônica de terça-feira, havia interesse pessoal do cronista na medida em que ele queria passar um recado familiar num espaço público privilegiado – o jornal. Outro caso explícito de interesse pessoal (mais que isso, comercial), e portanto de deturpação do que diz o Código de Ética, é quando há menção do restaurante Ugarte na coluna Reportagem, assinada por Lúcio Brasileiro. Uma consulta ao Banco de Dados do O Povo revela um número impressionante. O Ugarte foi citado 111 vezes na coluna Reportagem, do início deste ano até o dia 10 de novembro. Em 314 dias, a média é de uma citação a cada 2,84 dias. Em abril deste ano, tratei deste mesmo assunto nesta coluna: ?Os 45 anos de jornalismo social de Lúcio Brasileiro são uma garantia do prestígio e do sucesso de seu estilo entre os leitores que apreciam colunismo social. O que não pode acontecer é que esse vasto currículo seja imunidade para a publicação de informações que não condizem com as próprias diretrizes do jornal. Leitores percebem auto-publicidade, e isso pega mal não só para o colunista, mas principalmente para a empresa.’
A crônica de terça-feira foi o caso mais recente dessa mistura incômoda entre público e privado. Esse exemplo de utilização do espaço de interesse público (jornal é um veículo voltado obrigatoriamente para assuntos de interesse público) para usos pessoais é uma tremenda contradição para um jornal como O Povo, que leva tão a sério uma questão fundamental em termos de ética jornalística: um jornalista não pode ser assessor de um órgão e trabalhar na redação do jornal em uma área em que possa fazer matérias sobre assuntos de interesse do assessorado. Ética pode ser relativizada?"