LEITURAS DA VEJA
Deonísio da Silva
Não é bem o samba do crioulo doido. Mas Capitu é a Virgem Maria. E acabou de dar à luz um menino que mudou a tal ponto a História que passou a servir de divisor fatal entre o que houve antes e depois dele. E um padre faz o papel do anjo do Senhor. Ou melhor, arcanjo. Respeitemos a hierarquia, preservada até no Céu. Aliás, sobretudo lá.
Os três estão na capa da Veja (número 8/10/2003) que chegou às bancas. O arcanjo Gabriel, também conhecido nas orações como o anjo do Senhor, é Marcelo Rossi, o padre mais popular do Brasil. A Virgem Maria é Giovanna Antonelli, que viveu em recente novela das oito as vicissitudes comuns a uma garota de programa moderna, cujo nome foi inspirado na heroína de Dom Casmurro, um dos mais célebres romances de Machado de Assis, autor que deslumbrou o crítico americano Harold Bloom, inconformado com a existência de talento tão solitário justamente no Brasil.
Voltemos à Veja e sua matéria de capa. O texto é de Marcelo Marthe e Ricardo Valladares. É daquelas leituras indispensáveis que nos fazem pensar que a Veja se lembra de vez em quando que é a maior revista de informação nessas plagas. Com efeito, o forte do texto assinado, longe do ramerrão que a vitimou em outros tempos, é a informação que presta aos leitores.
Além de tudo o que já é, Marcelo Rossi tornou-se também estrela de cinema. O filme teve orçamento de R$ 6,8 milhões. O título é Maria, mãe do filho de Deus. Dinheiro não faltou. Xuxa e os duendes custou R$ 3,8 milhões. E Carandiru, R$ 12 milhões.
O ator principal já avisou que haverá muitas lágrimas. Presente à pré-estréia em Natal (RN), semana passada, ele avisou à multidão que o esperava nas ruas e lotou as sete salas de cinema: "Espero que vocês tenham trazido o lenço, porque a história faz chorar".
Figura controversa
Já não se fazem padres como antigamente. Nossa maior referência até o presente era o padre Antônio Vieira, cujos Sermões são bibliografia indispensável nos circuitos escolares, principalmente nos cursos de Letras. Daqui pra frente é de se esperar que os professores recomendem os cedês gravados por padre Marcelo Rossi. Mas não é necessário. Um deles, Músicas para louvar o Senhor, já vendeu 3,2 milhões de unidades. Será que foi pirateado? É provável que sim.
Outras estrelas têm seu brilho esmaecido diante de tanto fulgor. É o caso de José Dumont, que faz o papel do Diabo. Nas entrevistas que já começou a dar, padre Marcelo diz que recusou as asas do arcanjo. Alegou que poderia ser motivo de gozação dos colegas.
Nossa Senhora é uma figura controversa nas hostes cristãs. Exclusiva dos católicos, tem sido ignorada e às vezes ferozmente combatida entre os evangélicos. Recentemente, como lembram os autores da reportagem, um pastor da Igreja Universal chutou diante das câmeras de televisão uma imagem de Nossa Senhora e deu o maior qüiproquó. Mas a Virgem Maria tem entre seus aliados o comandante de um dos exércitos mais poderosos da Terra. Apesar de Stálin ter perguntado quantas divisões tem o papa, é preciso lembrar que, por não ser uma instituição democrática, Sua Santidade atual, João Paulo II, já viu passar, ao longo de seu reinado, muitos presidentes, ditadores, xeiques, sultões, primeiros-ministros.
Gritarias e saculejos
Ele só sairá dali morto. E credita aos poderes de Nossa Senhora ? de quem adotou o lema Totus Tuus (Todo Teu) ? ter-se livrado da bala terrorista que o alvejou em Roma em 1981 e que lhe deixou seqüelas que agora na velhice o incomodam muito. Refeito, o papa recebeu Ali Agka, o autor dos disparos, ouviu-o em confissão e o perdoou. Mas o que terá confidenciado o terrorista ao papa, além do que tinha sido filmado e fotografado pelas câmeras e transmitido instantaneamente ao mundo inteiro? Muitos anos depois o papa diria que o atentado de que fora vítima tinha sido o terceiro segredo de Nossa Senhora de Fátima.
Padre Marcelo Rossi está com 36 anos. Formou-se padre em 1994. Tem um perfil completamente diferente dos antigos seminaristas. Não se destacou por seus dotes intelectuais, mas por aeróbica, dança e cantoria. Encontrou sempre extraordinária receptividade entre os novos fiéis que arregimentou e entre aqueles que podem ser classificados como pertencentes à tendência carismática da Igreja. Seu mentor principal e consultor do roteiro do filme é ninguém menos do que o bispo de Santo Amaro (SP), Dom Fernando Antonio Figueiredo.
Telepadres, telebispos, telefiéis. Precisamos refletir sobre os novos rumos das pequenas e da grande Igreja. Estão todas na mídia. E todas acham que fora da mídia não há salvação. É o princípio de um totalitarismo muito perigoso e, sobretudo, controverso. Não por estarem na mídia, mas pela forma adotada. Num mundo de crescente hedonismo, falsa sociabilidade e egoísmos galopantes, trocar o recolhimento e a transcendência que nos diferem de um pé de alface por gritarias e saculejos nos templos, "cousa é que admira e consterna", como diria Machado de Assis, que, aliás, era agnóstico.
No proscênio
O modelo retomado é o de Bizâncio. Nas paredes de igrejas e catedrais, o rosto de Cristo era o mesmo do imperador cristão. E os dos apóstolos, os de seus ministros. Quando Constantinopla caiu, altas autoridades reunidas discutiam o sexo dos anjos enquanto os cristãos morriam num mar de sangue.
A Igreja deu inegavelmente marcha à ré. Esta a Teologia da Libertação perdeu feio. Mas foi nas comunidades eclesiais de base, em tudo contrárias às práticas dos carismáticos, que se formaram os grandes contingentes de católicos politizados que deram contribuição decisiva à eleição de Lula.
O debate está posto. O Brasil ainda é a maior nação católica do mundo. O reflexo no Congresso é notório. Há 175 parlamentares, entre deputados e senadores, que formam a bancada dos católicos. Os 55 deputados e os 2 senadores da bancada dos evangélicos votam em bloco com muita freqüência. O prezado leitor e eleitor já parou para avaliar o que significa um bloco suprapartidário de 57 parlamentares no Congresso?
Nosso dever como intelectuais é ordenar a discussão desses temas, refletir sobre eles. Como não fazia há muito tempo, a Veja trouxe-nos elementos muito pertinentes para o proscênio.
No caminho com Maiakóvski
Há muitos anos, em artigos, entrevistas, salas de aulas, conferências, simpósios, alguns intelectuais têm, sempre que possível, alertado para o terrível engano que resultou em insólita pirataria: saquearam o jardim literário de um grande poeta brasileiro, dos melhores que temos, e atribuíram a Maiakóvski os seus belos versos. Ninguém lhe pagou nada. Nem sequer o tributo da cortesia.
Os versos de Eduardo Alves da Costa foram exibidos como de outrem até mesmo em universidades brasileiras. E também em cursos de letras! E quando a Folha de S.Paulo despertou recentemente para o engano, um redator teve a coragem de acrescentar um advérbio: “finalmente”. Finalmente a autoria tinha sido reconhecida.
Finalmente? Neste mesmo Observatório, como lembrou o sempre atento Luiz Egypto, foi registrado o engano tantas vezes repetido alhures. Alhures é um lugar que fica bem longe do Observatório. E de qualquer instância jornalística que tem por hábito excluir procedimentos de macacos e papagaios, citando e publicando sem conferir.
Parabéns à Geração Editorial pela iniciativa de publicar a poesia de Eduardo Alves da Costa (No caminho com Maiakovski, 288 pp., R$ 34,80; lançamento em 12/10 na Livraria Argumento, no Rio).
E um registro melancólico: fui aluno de Guilhermino César, grande poeta do ciclo de Cataguases que, confinado no Brasil meridional, passou esquecido de muitos por excesso de modéstia, como outro dia reconheceu José Mindlin. Eduardo Alves da Costa sofre de excesso de modéstia. Excesso de modéstia de uns poucos intelectuais brasileiros em vôos solitários, bem longe dos bandos de pavões que se autoproclamam poetas incompreendidos. Se o Brasil ao menos tivesse tantos leitores como tem poetas, o panorama seria menos desolador. A César, o que é de César. E a Maiakóvski o que é de Eduardo? Não! Mas haverá reincindências!
O mais desconcertante é que a maioria repetiu uma epígrafe errada. Corrigida, jamais alcançou aqueles que a transcreveram.
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