Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Dedicação às idéias e aos alunos

RENÉ DREIFUSS (1945-2003)

Eurico de Lima Figueiredo (*)

René Armand Dreifuss, um dos mais brilhantes cientistas sociais brasileiros de sua geração, faleceu em sua casa no domingo (4/5). Lutando durante quase três anos contra grave enfermidade, e tendo se submetido a duas operações no cérebro para extirpar o tumor que no final se mostrou invencível, jamais deixou de exercer suas atividades como professor e pesquisador até pouco antes de sua morte. Fez questão de continuar, em sua casa, sob penosas condições, dando aulas para os alunos de Relaç&ootilde;es Internacionais da Pós-Graduação em Ciência Política da UFF.

Em dezembro último, já apresentando sérias dificuldades para se locomover e para falar, fez questão de comparecer ao seu local de trabalho para presidir banca de mestrado que julgava a tese de um querido estudante. Nessa oportunidade, sua mulher, Estrela Bohadana, lia em voz alta os comentários e indagações preparados por ele.

Na intermitência da doença, encontrou forças para viajar pelo país e para o exterior, satisfazendo apenas alguns dos inúmeros convites feitos pelas mais prestigiadas instituições de ensino e pesquisa que sempre estavam sobre sua mesa de trabalho. Encontrando brechas no tempo que lhe era escasso, e vencendo o cansaço profundo ? causado pela ingestão de (ou a exposição a) drogas poderosas ?, descobriu suficientes motivações para escrever, contando sempre com a ajuda inestimável de sua mulher, seu último livro: Matrizes do Século XXI será a continuação dos seus penetrantes estudos e reflexões sobre o mundo contemporâneo, exposto às irrupções científicas e às explosões tecnológicas sob a égide ordem globalizada e que, por isso mesmo, estão a requerer a elaboração de novos paradigmas perceptivos. Sua mulher, seus amigos e colegas da UFF e alhures por certo se encarregarão de publicá-lo.

Memória viva

René teve uma vasta e sólida formação intelectual. Nascido em 1945 em Montevidéu, Uruguai, formou-se em História e Ciência Política pela Universidade de Haifa, Israel. Obteve, na Grã-Bretanha, sempre na área da Ciência Política, o Mestrado na Universidade de Leeds, Inglaterra, em 1974, e seu Doutorado na Universidade de Glasgow, Escócia, em 1980. Seu currículo exibe uma ampla e diversificada participação em palestras, seminários, conferências, simpósios etc, tanto no Brasil como no exterior. Poliglota (falava e escrevia em espanhol, português, inglês, francês, alemão e hebraico), publicou, em revistas brasileiras e internacionais, várias dezenas de artigos sobre assuntos políticos nacionais e latino-americanos, forças armadas e sociedade e, nos últimos tempos, cultivando a abordagem multidisciplinar, relações internacionais.

Escreveu vários livros, sendo logo o primeiro um best-seller, que vem merecendo sucessivas edições: 1964: A Conquista do Estado (Vozes, 1981). Seguiram-se a Internacional Capitalista (Espaço-Tempo,1986); O Jogo da Direita na Nova República (Vozes, 1989); Política, Poder, Estado e Força ?- uma leitura de Weber (Vozes, 1993); e A Época da Perplexidade (Vozes, 1996).

Entre os diversos cargos por ele ocupados, destacam-se os de professor de Ciência Política da UFMG (1980/1984), membro-fundador do Núcleo de Estudos Estratégicos da Unicamp, pesquisador-visitante na área indisciplinar de energia da Coppe/UFRJ (1984/1986), assessor-técnico da Fundação Escola de Serviço Público (FESP) do Rio de Janeiro e, até há pouco tempo, conselheiro ad hoc do Ministério de Relações Exteriores da República Federativa do Brasil.

A partir de 2000 foi coordenador do módulo "Mudanças de Paradigmas de Ciência & Tecnologia" no Instituto Virtual Internacional de Estudos das Mudanças Globais da Coppe/UFRJ. Desde 1986 até o seu falecimento, foi professor do Departamento de Ciência Política da UFF, lecionando na graduação e na pós-graduação, onde, nos últimos anos, recebia da Faperj bolsa de apoio para suas pesquisas.

O autor dessa breves anotações foi colega e amigo pessoal de René Armand Deifuss por 27 anos. Foi, assim, testemunha viva do acidentado périplo cumprido pelo profissional exemplar, cultor de notável disciplina de trabalho, mas que, antes de mais nada, uma pessoa dotada de raro talento para o entendimento dos intrincados e tumultuosos processos que caracterizam a existência social da vida humana.

Como homem, René viveu como veio a morrer: valorizando a dignidade como valor central de sua conduta, democrata convicto, cientista interessado em investigar e buscar soluções para os problemas da pobreza e da miséria, tanto no plano nacional como no plano da sociedade mundial. Naturalizado brasileiro, tendo com o Brasil um caso de paixão que o fazia sofrer mas também se alegrar, aqui se casou por três vezes, tendo em seu primeiro matrimônio com Áurea Fuks seu único filho, Daniel. Passou seus últimos dez anos de vida com Estrela Bohadana, companheira que, até o instante derradeiro, esteve ao seu lado sempre, velando-o, confortando-o, amando-o.

Pouco depois de seu sepultamento, Bernardo Sorj, companheiro de René de todas as horas, abraçando-me com tristeza, disse-me, entre lágrimas, que estávamos os dois mais pobres. Sem conforto, vejo-me obrigado a reconhecer a justeza de suas palavras, sem sequer poder remediar a minha dor. Estamos todos nessa situação, seus parentes, seus amigos mais próximos e, em geral, as Ciências Sociais no Brasil e em toda a parte.

Cuidaremos, portanto, para que sua memória permaneça entre nós, providenciando a realização de solenidades que façam com que, na UFF e fora dela, seu espírito sirva e permaneça como exemplo e guia das novas gerações.

(*) Chefe do Departamento de Ciência Política Universidade Federal Fluminense