EUA EM GUERRA
"Oportunidade perdida", copyright Folha de S. Paulo, 6/10/01
"Nos dias seguintes aos ataques terroristas a Nova York e ao Pentágono, George W. Bush proclamou uma ?cruzada? contra o terror, em defesa da ?liberdade? e dos ?valores da civilização ocidental?. A rede de TV CNN pintou a sua tela com os tons da bandeira americana e editou as reportagens alternando a dor dos parentes das vítimas a manifestações patrióticas e declarações oficiais de guerra. ?América em guerra? foi, durante duas semanas, a chamada ubíqua da tela da CNN.
A proclamação da ?cruzada? desatou ondas de agressões e humilhações contra cidadãos americanos de origem árabe ou religião muçulmana. A ?cruzada? foi suprimida e Bush, em busca de adesões estratégicas à sua ?coalizão contra o terror?, passou a enfatizar que os Estados Unidos não estão em guerra contra o islã. Acompanhando a flutuação na política oficial, a ?América em guerra? desapareceu da tela da CNN, substituída pela ?guerra contra o terror?.
Mesmo assim uma pesquisa Gallup divulgada no final de setembro registrava que 49% dos americanos aprovavam a idéia de obrigar os americanos de origem árabe a circular com identificação especial.
As Cruzadas representaram etapa decisiva na construção histórica e cultural da identidade do Ocidente. Um marco fundador da Europa moderna foram os decretos dos reis católicos da Espanha, em 1492 e 1501, determinando a conversão ou expulsão dos judeus e muçulmanos. Bem mais tarde, no século 19 e na moldura da expansão imperial das potências européias, o Ocidente construiu a representação do Oriente (árabe e muçulmano) por meio da operação das dicotomias: razão e irracionalidade, luz e sombras, clareza e mistério.
T.E. Lawrence, o ?Lawrence da Arábia?, amava o Oriente. Numa carta de 1918, descreveu o espírito dos árabes: ?Eles pensam para o momento e esforçam-se por passar pela vida sem dobrar esquinas ou subir montanhas. Em parte, isso significa uma fadiga mental e moral, uma raça esgotada (…). Sei que sou um estrangeiro para eles -e sempre serei-, mas não posso acreditar que sejam piores (…)?. A produção imaginária de um Oriente funcionou como recurso para a produção do próprio Ocidente.
O tema do ?choque de civilizações? ressurgiu, em 1991, na obra superficial mas aclamada de Samuel Huntington, que construiu conjuntos culturais excludentes e sugeriu que o sistema internacional orientava-se para um eixo principal de conflito entre o Ocidente e o islã.
A cobertura da crise aberta pelos ataques terroristas pela mídia nacional pautou-se pela alteridade simplista entre o Ocidente e o islã. A revista ?Veja?, que tem por norma tratar o leitor como ignorante absoluto, continuou engajada na ?cruzada? mesmo depois que a gafe de Bush foi suprimida da cobertura americana. Órgãos mais sérios rejeitaram a ?cruzada? desde o início, mas não conseguiram escapar da armadilha da alteridade.
Jihad não é ?guerra santa?, mas o esforço do fiel muçulmano para submeter-se a Deus e difundir a sua fé. Só em casos extremos pode ser uma ?guerra justa?. O fundamentalismo islâmico atual emanou, em primeiro lugar, da monarquia absolutista e repressiva saudita. Por meio da noção de ?unidade do islã?, essa monarquia, sustentada pelos Estados Unidos, procurava dissolver o projeto laico da unidade árabe do egípcio Gamal Abdel Nasser.
O fundamentalismo afegão foi financiado diretamente pelos Estados Unidos, durante a guerra contra a ocupação soviética. O Taleban e Osama bin Laden surgiram logo depois, como peças de uma engrenagem destinada a colocar o Afeganistão sob a dupla influência do Paquistão e da Arábia Saudita, ambos aliados dos Estados Unidos.
Os leitores praticamente não foram informados de nada disso. Presa a uma tradição cultural pervasiva, a mídia nacional reproduz polaridades imaginárias como o Ocidente e o islã, a razão e o fanatismo, a liberdade e a jihad etc. Em graus diversos, mimetiza a CNN, que é parte de um conglomerado privado, mas se comporta como porta-voz oficioso dos Estados Unidos.
Perde, assim, a oportunidade de decifrar os significados da narrativa histórica que fundou a civilização ocidental.
Demétrio Magnoli, 42, doutor em geografia humana pela USP, é editor do boletim ?Mundo Geografia e Política Internacional?."
"A renúncia de julgar", copyright Folha de S. Paulo, 6/10/01
"Talvez um dos ensinamentos a extrair de boa parte da cobertura da imprensa seja o ressurgimento de um antiamericanismo superficial, que mistura razões de ordem ideológica com uma pretensa crítica dos fatos. Em vez de um julgamento do terror propriamente dito -cujas raízes parecem indicar a Ásia Menor, se for, como tudo indica, confirmada a sua autoria por Bin Laden, com apoio dos talebans-, vimos uma série de artigos e reportagens julgando e criticando o bombardeio iminente de civis no Afeganistão.
E boa parte desses artigos e reportagens mascarava a condenação dos atentados do World Trade Center com uma adversativa, um ?mas?, um ?entretanto?, plenos de significado: ?Os EUA fazem a mesma coisa?; ?tudo é culpa do neoliberalismo?; e ?a globalização é a verdadeira responsável?. Ao banalizar-se o conhecimento, na verdade banalizava-se o mal.
Vejamos um fato exemplar pelo seu caráter caricatural. A crítica aos bombardeios americanos de populações civis afegãs ganhou o estatuto de um fato, ou seja, era como se esse tipo de bombardeio já estivesse acontecendo. Ora, já se passaram semanas do ocorrido e não houve nenhum bombardeio de populações civis. No entanto, se formos verificar a cobertura feita e as análises produzidas durante esse período, constataremos que elas se voltaram, em parte, para o ?juízo? de um fato inexistente.
Houve uma confusão elementar: a identificação entre uma possibilidade e um fato, como se o juízo operasse da mesma forma, ou seja, tomou-se a possibilidade pelo fato. Feita essa ?confusão?, estava livre o caminho para esse surto de antiamericanismo.
O que preocupa em uma tal posição é, na verdade, a renúncia de julgar os autores do atentado e o que eles representam. O fanatismo religioso nessa sua forma mais violenta necessita ser condenado sem nenhuma ambiguidade, sem nenhuma relativização, pois ele põe em questão princípios básicos da convivência humana, como os direitos humanos, o cosmopolitismo e a tolerância religiosa, simbolizados naquelas pessoas que foram dizimadas, como poeira, naquelas torres que desabavam e desapareciam no ar. Pessoas numa pizzaria, indivíduos desembarcando de uma estação de trem, homens e mulheres de várias nacionalidades e credos indo para o seu trabalho.
Não deixa de causar indignação moral observar intelectuais e políticos se regozijarem ou explicarem tais fatos à luz da pretensa destruição de um símbolo do ?capitalismo?. E os 6.000 mortos, inocentes, com suas famílias enlutadas?
Questões de princípio não podem ser negociadas nem relativizadas, pois são precisamente isso: critérios, parâmetros de nossos juízos. Se hoje as relativizarmos, amanhã estaremos aleijados de nossa capacidade de julgar. Sem critérios, ficaremos igualando todos os fatos, errando pelo mundo, escancarando as portas para embates partidários, cujo desfecho pode ser o uso da violência ?política? em suas formas mais aterradoras em nosso próprio país.
Se parte da intelectualidade brasileira resignar-se diante de tais fatos, condenando o atentado em uma linha e dedicando 41 a críticas aos EUA, o futuro se verá atrelado partidariamente. De posse de tais princípios, estaremos em condições de julgar qualquer ação americana que venha a atentar contra esses mesmos princípios. Isso não implica um apoio antecipado e irrestrito à política externa americana, mas uma posição que nos permita julgá-la na ação que se avizinha de justa eliminação de focos terroristas -uma ação que preserve os civis e não puna os inocentes.
Para além dos equívocos e erros normais de apreciações intelectuais e jornalísticas, que devem ser considerados normais nesse tipo de situação excepcional -sempre e quando venham acompanhados de seu reconhecimento-, o que está em questão é o uso político e partidário que tais apreciações estão produzindo entre nós. Do regozijo de uns à falta de visão de outros, podemos nos encaminhar para um tipo de situação onde, em nome da luta contra a globalização e o neoliberalismo, tudo é permitido, inclusive desfigurar e volatizar o que a humanidade produziu de mais elevado: os preceitos morais de validade universal, os direitos humanos -válidos para qualquer religião, raça e sexo- e a democracia.
A poeira das milenares estátuas de Buda destruídas pelos talebans era um prenúncio do que estava por vir. Nessas milenares estátuas e nas modernas torres, ruíram símbolos da civilização, oriental e ocidental. Não nos enganemos de alvo, sob pena de virmos a repetir uma tal experiência. (Denis Lerrer Rosenfield, 50, doutor pela Universidade Paris 1, professor titular de filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, editor da revista ?Filosofia Política? e pesquisador do CNPq, é autor, entre outros livros, de ?Política e Liberdade em Hegel?)"
"Guerra alavanca ibope de TVs que reproduzem imagens da CNN", copyright Folha Online, 7/10/01
"A cobertura ao vivo dos ataques dos EUA ao Afeganistão duplicaram a audiência média dominical de emissoras como a Rede TV! e Record em vários períodos do domingo à tarde. As duas emissoras usaram imagens ao vivo da CNN, com quem têm acordo.
A Rede de TV!, que geralmente registra dois pontos de média no domingo, bateu os 4 de média, segundo dados preliminares de ibope. A Record teve uma média (não consolidada) de 6 pontos.
A Globo manteve a dianteira na cobertura da guerra, com média extra-oficial de 29 pontos durante os flashes ao vivo dos ataques norte-americanos.
Cada ponto equivale a 80 mil telespectadores na Grande São Paulo.
Na guerra entre os programas dominicais, entre SBT e Globo, esta última levou a melhor. Fausto Silva venceu com um especial Sandy e Jr., por 28 a 27.
Durante o jogo da seleção brasileira, a Globo massacrou o SBT, por 35 a 19."