LÍNGUA PORTUGUESA
“Um ônibus no jardim”, copyright Jornal do Brasil, 15/06/03
“O presidente norte-americano John Kennedy criou um programa de ajuda à América Latina denominado Aliança para o Progresso. Ou Alianza para el Progreso, em espanhol. O nome surgiu-lhe do título de um jornal do Texas que leu num ônibus. Um de seus assessores sugeriu-lhe que o programa deveria chamar-se Alianza para el Desarollo, mas o presidente, de origem irlandesa, tinha dificuldade de pronunciar desarollo, que em português significa desenvolvimento, e preferiu progresso, equivalente ao inglês progress.
A viagem das palavras raramente é sem escalas. O presidente dos EUA, quando concebeu o famoso programa de ajuda, percorria o país de ônibus. Presidente e ônibus são palavras que vieram do latim. Presidente veio de praesidente, declinação de praesidens, aquele que preside, dirige. No Império Romano, o título praesidens era dado aos governadores de suas províncias. Durante muito tempo, também os governadores de Estados brasileiros foram chamados presidentes. O vocábulo serve para designar muitas outras funções, atinentes a comandos, como, por exemplo, os presidentes de tribunais, câmaras, assembléias e outras instituições, públicas ou privadas.
No Brasil os presidentes da República têm mais poderes do que imperadores e várias curiosidades marcam a presidência, a começar pelo processo que os eleva ao cargo. O primeiro subiu ao poder por golpe militar, no que foi imitado por vários outros, de que é exemplo o ciclo dos generais de exército no período que vai de 1964 a 1985, quando oito deles ocuparam a presidência da República, sendo três em junta militar. Junta militar ou médica é sempre caso de desespero para o enfermo. Os nomes de presidente mais repetidos foram João e José, mas, com exceção de Prudente José de Morais Barros, nenhum João ou José foi eleito pelo povo. Joões e Josés chegaram por golpes ou como vices, como é o caso de José de Alencar, vice do presidente Lula, e de José Sarney, que fez a transição da ditadura para a democracia entre 1985 e 1990. A década passada trouxe-nos dois Fernandos, ambos eleitos por voto direto. Mas Fernando Collor de Mello foi afastado um ano antes de cumprir sua missão. E Fernando Henrique Cardoso repetiu o mandato, como se fosse sobremesa.
Algumas videntes previram que Jânio Quadros e José Sarney voltariam à presidência da República. O primeiro já morreu. E não temos ainda uma emenda que autorize um presidente morto a governar o país por psicografia. Ele era professor de Português, autor de uma gramática e criador de expressões insólitas, de que é exemplo a frase ?fi-lo porque qui-lo?, cuja complicada sintaxe lhe foi atribuída. José Sarney, que é romancista e não gramático, dá-se melhor com a jardinagem das palavras do que com a botânica. Atualmente é presidente do Senado e pode de repente fazer com que a vidente acerte a profecia. Mas à semelhança de sociólogos, economistas e futurólogos, as cartomantes erram feio em suas previsões.
Nesta viagem das palavras, chegamos a ônibus, do latim omnibus, para todos. Inicialmente, foi nome de uma casa comercial, de propriedade de um francês chamado Omnes. Ele mandou afixar uma placa com os dizeres Omnes omnibus. Seu estabelecimento passou a ser muito freqüentado. Então, o dono de um serviço de transporte para banhistas também escreveu a palavra omnibus num de seus carros. Foi um sucesso. Quando John Kennedy viu num ônibus o jornal que lhe inspirou o célebre programa, os ônibus percorriam Londres e Nova York desde 1829. A princípio não foram aceitos, mas já na segunda metade do século 19 eram os mais populares meios de transporte, devido à criação de lugares para trabalhadores e demais pessoas humildes.
Mas como foi que jardineira virou sinônimo de ônibus? Pois jardineira veio de jardim, do francês jardin, que designa jardim, mas também horta, pomar, quintal. Tanto que os franceses criaram a expressão cultiver son jardin (cultivar seu jardim) para referir estilo de vida de quem se retirou da balbúrdia da cidade para levar uma existência menos agitada.
Porém, os franceses que não cultivavam o jardin apenas por entretenimento, mas com o fim de produzir flores, legumes, verduras e tubérculos, precisavam vender todos esses produtos nas cidades. E os transportavam até os mercados urbanos em veículo de duas ou quatro rodas denominado jardinière. Quando a jardinière, em vez de transportar o que os agricultores tinham colhido, levava as pessoas às cidades, conservou a denominação. Na Itália, virou giardineira. E na Espanha, jardinera. Imigrantes espanhóis e italianos enriqueceram nossa língua com a variante jardineira.
No carnaval de 1938, embora as jardineiras já fizessem as vezes dos ônibus, a homenageada era outra: ?ó jardineira,/ por que estás tão triste?/ Mas o que foi que te aconteceu?/ Foi a camélia,/ que caiu do galho,/ deu dois suspiros/ E depois morreu?. Sem errar concordância nenhuma, os versos continuavam: ?Vem, jardineira,/ Vem, meu amor,/ Não fiques triste,/ Que este mundo/ É todo teu,/ Tu és muito mais bonita/ Que a camélia que morreu?.
Quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva migrou do Nordeste para São Paulo, o pau-de-arara fazia as vezes de jardineira e de ônibus. Talvez outro carnavalesco possa cantar ao presidente: não fiques triste, que este Brasil é todo teu, tu és muito mais bonito que o candidato que perdeu.”
“Vamos contingenciar o eufemismo”, copyright No mínimo (http://nominimo.ibest.com.br), 17/06/03
“Todo brasileiro deve conhecer alguém que, em crise de empregabilidade agravada pelo crescimento negativo do PIB, foi forçado a fazer um contingenciamento de despesas para não mergulhar na miserabilidade. Existem até os que, temendo engrossar as fileiras da população de rua, conformam-se em engavetar seus diplomas e trabalhar como hair stylists ou make-up artists, por exemplo. A essa conjuntura econômica desfavorável some-se o preconceito, que torna a situação ainda mais difícil para todas as minorias, dos afro-brasileiros aos portadores de necessidades especiais.
O parágrafo anterior não contém nenhuma mentira propriamente dita, mas está carregado de falsidade. O problema é o excesso de eufemismos, isto é, expressões que tentam embelezar ou pelo menos atenuar a crueza (real ou imaginária) das coisas que designam. Fala-se em crise de empregabilidade quando se deveria falar, caso a intenção fosse estabelecer uma comunicação honesta, em desemprego. Da mesma forma, temos crescimento negativo por queda, contingenciamento de despesas por corte, miserabilidade por miséria, população de rua por mendigos, hair stylist e make-up artist por cabeleireiro e maquiador, e por aí vai.
O leitor atento terá notado que nenhuma dessas expressões foi inventada aqui. Algumas são criações de autoridades governamentais, outras de intelectuais acadêmicos, umas tantas de profissionais de comunicação. E todas circulam livremente em nosso ambiente cultural, como se fossem legítimas expressões da inteligência humana. É mais provável que sejam expressões da humana (desculpem a falta de vocação para o eufemismo) estupidez.
Não se trata de defender a grosseria vocabular. O eufemismo é um recurso civilizado, indispensável ao bom convívio social. Como tantas outras coisas, ganhou seu nome na antiga Grécia – eu (bom) + phemi (dizer) – mas é certo que já existisse antes disso. Imagine-se o momento em que o primeiro homem primitivo teve pudor de comentar com os outros membros da tribo o caráter imperativo de seus movimentos intestinais, optando por um ?vou dar um pulo ali na moita?. Deve ter nascido mais ou menos assim o eufemismo. Foi bem-vindo.
Pena que esse velho recurso da delicadeza se preste tão bem a trabalhar pela tapeação, pela mistificação e pela hipocrisia, como acontece com a maior parte dos eufemismos modernos. O primeiro parágrafo deste artigo é um saco de gatos, mas apenas porque são variados os discursos eufemísticos. O do tecnocratês, buscando embaralhar o juízo do ouvinte, inventa coisas como ?crescimento negativo?. Já o lero-lero quase sempre anglófilo do marketing, que só pretende ataviar seu produto para vendê-lo, parte para hair stylist e outras graças do gênero.
Faltou mencionar, claro, a onda politicamente correta, que teve seu auge nos anos 90 e foi responsável por uma explosão de perífrases pudicas. A maioria delas morreu afogada em seu próprio ridículo, mas a moda deixou seqüelas em expressões como ?população de rua?. São os casos em que a hipocrisia se destaca. Sejamos sinceros: quantas pessoas olham duas vezes ao passar por um mendigo agonizando na calçada? Quantas fazem alguma coisa para tentar salvá-lo? Uma em cem? Agora, lesar a auto-estima do infeliz com a rude palavra ?mendigo?, isso nunca!
A questão pode parecer menor, um modismo lingüístico irrelevante, mas essa impressão é apenas uma das faces do problema. Ele tende a se agravar quando não nos damos conta de que chamar as coisas pelo seu justo nome, da forma mais simples e direta possível, contribui para a inteligência coletiva. Um quadro feio não se embeleza quando a linguagem o falseia: continua feio e, o que é pior, fica menos compreensível.
Todo mundo tem o direito de borrifar perfume no seu peixe. Que um economista insista em falar em ?crescimento negativo?, entende-se. Indefensável é que boa parte da imprensa, fugindo à obrigação de traduzir bullshit em linguagem de gente, passe adiante os eufemismos mais emperiquitados pelo valor de face, achando normalíssimo chamar de promoter aquele notório bicão, de ?modelos? certas garotas de programa. Uma dosezinha de maus modos nos faria bem.”
CARTIER-BRESSON
“Foto, jornalismo”, copyright no míninimo (http://nominimo.ibest.com.br), 14/6/03
“Para os fotógrafos, o foto-jornalismo é o ramo mais importante do jornalismo. Pouco importa que a imprensa tenha existido durante séculos sem fotografias, ou que mesmo hoje publicações respeitáveis prescindam de fotos. E, para eles, não há fotógrafo melhor no gênero do que Henri Cartier-Bresson.
Em homenagem a meus amigos fotógrafos, fui ver a exposição do mestre na Biblioteca Nacional. Cartier-Bresson está em evidência. Além da exposição, com mais de 600 fotos, foi publicado um livrão pesado com tudo de significativo que ele fez. Também foi criada uma fundação com o seu nome, onde estão expostas as fotos de outros fotógrafos de que ele mais gosta.
Cartier-Bresson está vivo. Tem 84 anos. Não fotografa há três décadas. Mora na rua de Rivoli. Todas as manhãs desce ao jardim de Tuileries em frente para desenhar fachadas. Andou dando umas entrevistas engraçadas. ?Qualquer um com uma câmera é um fotógrafo?, disse ele numa delas. A boutade retoma, com ironia, uma das suas observações mais agudas, exposta num ensaio de 1952, ?O momento decisivo?. Para ele, fotografia é intuição. Há um momento em que a cena se organiza na frente do fotógrafo, que a capta ou não. Nesse instante decisivo, a câmara fica em linha com o cérebro e o coração.
O mestre reclamou da exposição na Biblioteca Nacional. Com razão: o espaço é pequeno para tantas fotos. Ainda mais para aquelas fotografias, que têm pouco de jornalismo e tanto de arte. As propriamente jornalísticas, como as de Gandhi minutos antes de seu assassinato, poderiam ser feitas por qualquer um com uma câmera na mão. Já as cenas de rua, as de piqueniques ou de Paris depois de uma chuva, são de um formalismo geométrico inacreditável. São fotos de desenhista. Ou de pintor.
No ano passado, Cartier-Bresson tirou algumas fotos. A pedido da revista ?Vanity Fair?, participou de uma foto-reportagem sobre fotógrafos com mais de 80 anos. Coube-lhe fotografar Helmut Newton, que faz fotos eróticas, de temática sadomasoquista no mais das vezes. Helmut Newton conta que Cartier-Bresson pegou sua velha Laica, apontou para ele e bateu as fotos, sem um segundo de dúvida ou preparação. As fotos saíram um pouco tremidas. O mestre não se deu por achado. ?O foco é um conceito burguês?, explicou.”