LÍNGUA PORTUGUESA
"Neologismos sem padrões", copyright Jornal do Brasil, 6/07/03
"O inglês, por força da vasta e complexa influência dos Estados Unidos em escala mundial, está cumprindo um papel semelhante àquele que coube ao latim há quase dez séculos. Mas se o português veio do latim, hoje o inglês, em muitos casos, não é visita, é invasor, pois entra em nossa casa sem ser convidado.
Com efeito, no alvorecer do segundo milênio, embora o latim ainda fosse a língua oficial em documentos que demandavam fé pública, tais como testamentos e escrituras de posse, um dialeto latino, que recebeu a denominação de galego-português, dava origem à língua portuguesa.
Bastante diferenciado do castelhano, origem do atual espanhol, o dialeto não contava com o mesmo prestígio da língua de padres, monjas e outros letrados de algum modo ligados à Igreja ou à Coroa. Assim, a dura língua dos palácios foi cedendo aos encantos das ruas, da fala popular, dos trovadores, das cantigas.
As navegações dos séculos 15 e 16 consolidaram um projeto grandioso. Portugal enriqueceu sua língua ao levá-la a tão distantes lugares, em percurso assim resumido por Camões: ?na quarta parte nova os campos ara,/ e, se mais mundo houvera, lá chegara?. Quer dizer, a globalização portuguesa precedeu em muitos séculos a dos EUA. O que fez o português diante das novas línguas? Manteve sua independência. Aceitou as contribuições que o enriqueceram, mas não se submeteu aos neologismos.
O que faz hoje a língua do Brasil? Por vezes se descaracteriza diante da devastação processada, não pelas línguas que chegaram, mas pela avassaladora hegemonia do inglês. Assim, compreende-se a presença de palavras como bufão, pizza (do italiano), abajur, conhaque, plataforma (do francês), sabiá, perereca (tupi), espeto (alemão), azeitona (árabe), atabaque (persa) e motel (inglês), que, aliás, mudou de sentido no Brasil. Da aglutinação de motorists?s hotel, hotel de motoristas, construído em geral à beira de estradas, passou a designar os hotéis de alta rotatividade e demais estabelecimentos que alugam quartos para encontros amorosos, aposentando o francês garçonnière.
Às vezes é o nome da pessoa que vem parar em nossa língua e passa a funcionar como substantivo, de que são exemplos holerite, brechó e gari. Holerite procede do nome do inventor da máquina para imprimir o contracheque, o engenheiro norte-americano Herman Hollerith. Deu-se o mesmo processo com brechó e gari, palavras que vieram de sobrenomes de pessoas. De Belchior, proprietário do primeiro brechó, e Gary, do sobrenome dos irmãos Luciano e Aleixo Gary, que venceram a concorrência pública para recolher o lixo do Rio, ainda nos tempos imperiais.
Mas por que razão adotar os desjeitosos printar (em vez de imprimir), delivery (em vez de entrega), backup ou back up (em vez de cópia de segurança, reserva, assistência) e play off (em vez de finais)? Na intenção de afiar nossa língua, alcançam o objetivo inverso, o de afear o idioma, conspurcando a reconhecida estética da ?última flor do Lácio, inculta e bela?.
Por falar em final, o técnico Leão, do Santos, precisa melhorar também seu português e não apenas as táticas: ?esse agradecimento da torcida vem de encontro (sic) ao nosso trabalho. Esperamos continuar sendo merecedores dos aplausos?. No futebol, talvez. No português, não. O técnico disse o contrário do que pensou ter dito. ?Vir de encontro? equivale a contrariar. Para merecer os aplausos, o agradecimento da torcida precisaria ter vindo ao encontro de seu trabalho.
Bom domingo a todos e até de repente!"
JORNAL DA IMPRENÇA
"Matando cachorro a grito", copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 3/07/03
"Sepultado sob o título Fila de candidatos a coveiro, dizia o texto de O Globo: ?Atraídas por um salário que varia de R$ 600 a R$ 700 quase 17 mil pessoas se inscreveram no concurso do serviço autárquico funerário de Londrina (PR), que oferece 19 vagas para cargos como coveiro e preparador de cadáver. O que mais chamou a atenção da Administração dos Cemitérios e Serviços Funerários de Londrina (Acesf) foi o alto grau de qualificação dos candidatos. Para as três vagas de coveiro, por exemplo, que exige o antigo Primeiro Grau incompleto e oferece salário de R$ 650, dos 1.204 inscritos, 28 cursam o ensino superior e três têm diploma universitário.?
Janistraquis, que já foi lixeiro e ?tirador de espírito? em Caruaru, nos tempos daquele slogan ?Ninguém Segura Este País?, leu a notícia e comentou: ?Considerado, jornalista é mesmo um bicho arrogante e orgulhoso; você acredita que com essa barra pesadíssima não tinha nenhum inscrito na lista do Serviço Funerário? Nem pra coveiro nem pra preparador de cadáver. Ora, tá certo que coveiro assusta um pouco, porém na Imprensa já existe o ?preparador de textos?.?
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Buraco fundo
Petrobrás – Mais um poço no México, noticiou o Correio Braziliense. Aí o diretor de nossa sucursal, Roldão Simas Filho, que não dá sossego ao jornal nem que a vaca tussa, leu e foi logo protestando: ?A notícia se refere à exploração de petróleo no golfo do México e não no México, país onde ainda prevalece o monopólio estatal do petróleo. O título está, portanto, errado.?
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Soltando ventos
Segundo o site MSN, a atriz Julianne Moore teria afirmado que o lamentável presidente Bush é ?anti escolha?. Especialista em traduções, o diretor de nossa sucursal paulistana, Daniel Sottomaior, examinou a besteira e descobriu: ?A moça realmente disse que o presidente é contra o aborto, pois ?pro-choice? é o rótulo dos favoráveis ao aborto?.
Outra patacoada: ?os ventos da política estão soprando a nossa maneira?. Além de não colocar a crase esperável (embora não obrigatória, pois no Brasil o uso de artigos antes de possessivo é mais que usual), a tradução achou que há alguma maneira especial de soprar ventos.
?My way? também significa ?para o meu lado? e era isso o que a bela atriz tinha em mente. O cinema já explorou diversas vezes esse duplo sentido e uma das cenas mais memoráveis é no filme Young Frankenstein, de Mel Brooks. É quando o corcunda pede ao monstro (o impagável Gene Wilder) para segui-lo, ?this way?. E Wilder vai, mancando como o corcunda.?
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Morrer de raiva
O poeta e jornalista Nei Duclós costuma morrer de raiva sempre que deita os olhos num necrológio, conforme narra nesta mensagem:
?Ainda bem que temos o jornalismo para nos informar. Na página D4 da Folha de S. Paulo de hoje, sexta-feira, 27 de junho, temos um antológico final de segundo parágrafo, na notícia sobre a morte do jogador camaronês: ?…Mas um porta-voz da Fifa disse que o coração de Foe parou?. Com uma explicação dessas, quem disse que os porta-vozes – e as agências de notícias – são desnecessários?
Lembro de outra maravilha que li nos anos 70 (quando labutava na Ilustrada) e que saiu na primeira página de O Globo, numa chamada sobre a morte de Elvis Presley: ?Mas ele morreu sem voltar a si?.
A morte, desse jeito, deixa de ser um mistério.?
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Navio Negreiro
O leitor Carlos Roberto Motta enviou trecho subtraído (no bom sentido) à revista Época, com algumas passagens da entrevista na qual o historiador Roberto Martins defende a cota para negros nas universidades. Cercada por lápis vermelho, a pergunta: ?A questão não precisa ser mais debatida??. E a resposta do especialista: ?Esse é um argumento falacioso. A única maneira de debater é fazer. O movimento negro tenta debater há décadas e ninguém se interessou. Essa é a primeira vez que se ouve falar disso, na rua, na fila do banco. As reclamações de quem ficou de fora são naturais. Cota é o aspecto mais polêmico da ação afirmativa. Se alguém propuser celebrar a contribuição do negro para a cultura ou criar um memorial Zumbi, ninguém reclama. Quando alguém faz ação afirmativa de verdade, há reações.?
Li em voz alta, porém Janistraquis interrompeu a última frase:
– O historiador é negro ou branco, considerado?
– Branco, branquíssimo.
– Então, não devemos mesmo levar a sério; afinal, como diz o leitor, não há racismo pior do que falar em defesa dos negros sem ser negro e sem ser convidado para isso. Dá a impressão de que os negros não têm competência pra lutar por seus direitos, né mesmo? Afinal, da cruzada de Castro Alves só restaram os versos…
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Pé de que???
Recém-empossado diretor da sucursal desta coluna em Fortaleza, em concorrida cerimônia na Praça do Ferreira, o jornalista Celso Maia Gondim Neto estréia com esta notícia publicada no Diário do Nordeste – Dupla de assaltantes é capturada em Icó, dizia o título; abaixo, trechos elucidativos:
?Uma dupla de assaltantes e arrombadores foi capturada por policiais civis deste Município, na madrugada de ontem, após tentarem assaltar um fiscal do Mercado de Carne e, inclusive, efetuado disparos contra ele. Os presos são José Marcelo Silva Ferreira, 18 anos, e Silvano Antônio de Araújo, de 19, que vinham aterrorizando comerciantes e moradores de Icó(…)De acordo com o delegado Marcos Sandro Nazaré de Lira, a dupla integra uma quadrilha que está sendo desarticulada. Também foram apreendidos um ?pé-de-bode? e uma marreta.?
Janistraquis, que nos tempos de menino no interior de Pernambuco costumava dar uma de ventanista quando a barriga roncava, deitou falação: ?Considerado, na verdade os bandidos estavam armados só com a marreta e o repórter do jornal não confundiu pé-de-cabra com pé-de-bode, como imaginou nosso diretor Celso Neto. Os dois ladrões não estavam no mercado de carne? E apois? Mortos de fome, passaram um quarto de bode na cara, ali mesmo no local do crime; quando a polícia chegou, do quarto só encontrou o pé?.
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Nota dez
O melhor texto da semana é do Mestre (Mestre de verdade) Deonísio da Silva, em sua coluna intitulada Língua Portuguesa, do Jornal do Brasil, transcrita no Observatório da Imprensa: ?Recentemente, Lula voltou a aludir à sexualidade em outro de seus já célebres improvisos. ?A coisa que eu mais queria na vida, quando casei com minha galega, era um filho. Ela engravidou logo no primeiro dia do casamento, porque pernambucano não deixa por menos.?
Houve manifestações de repúdio à fala machista, proferidas em defesa da humilhação imposta à primeira dama. Mas dona Marisa, que tem muito mais compostura do que muitos dos críticos de seu marido, sorriu sem nenhum constrangimento diante das câmeras, pois entendeu perfeitamente que a fala do marido não se destinava a humilhá-la.?
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Errei, sim!
?MUDOS CANTAM – Obra-prima de O Estado do Maranhão: Surdos-mudos cantam e recebem bênção do sumo Pontífice. O miraculoso título estava, obviamente, errado; o texto esclarecia que os surdos-mudos tocavam numa banda, em homenagem a Sua Santidade. (dezembro de 1992)
Colaborem com a coluna, que é atualizada às quintas-feiras: Caixa Postal 067 – CEP 12530-970, Cunha (SP) ou moacir.japiassu@bol.com.br)."
CASO FÁTIMA FELGUEIRAS
"O que é jornalismo (não) público?", copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 3/07/03
"O XIS DA QUESTÃO – A propósito da cobertura jornalística da RTP ao caso ?Fátima Felgueiras?, um ministro do governo português falou na necessidade de se discutir o que é ?jornalismo público?. Ora, na sua totalidade, e não apenas em parcelas supostamente ?virtuosas?, o jornalismo tem, por natureza e vocação, o predicado de ser público. Porque públicas são as suas razões de ser.
1. A história e a voracidade
LISBOA, 3/7/03 – Entre as mal faladas, a hoje mais citada figura da cena política portuguesa é uma senhora chamada Fátima Felgueiras, presidente da Câmara Municipal da cidade minhota que, por mera coincidência, leva o mesmo nome de quem a governa – Felgueiras.
Antes, porém, que a confusão se crie, impõe-se a necessidade de um esclarecimento e de uma correção. Esclarecimento: o cargo de presidente da Câmara Municipal, que em Portugal tem natureza executiva, corresponde ao de prefeito, no modelo político brasileiro. Correção: Fátima já não governa Felgueiras. Sob investigação por suspeita de corrupção, e já na condição de argüida pela Justiça portuguesa, deu no pé. Fugiu para o Rio de Janeiro, para escapar de ser presa. Refugiou-se nos encantos cariocas, protegida pela retórica agressiva do um advogado que sabe brigar (o mesmo que devolveu Guilherme de Pádua à liberdade) e pelos direitos particulares da dupla cidadania.
Nascida no Brasil, com ascendência lusitana, conseguiu a cidadania portuguesa e em Portugal se estabeleceu, mais precisamente em Felgueiras, próspera cidade localizada nas verdes encostas do Minho. Casou, teve filhos, fez carreira política. Mulher ?bem apanhada? (como dizem os portugueses, amantes de um bom eufemismo, para qualificar mulheres atraentes), desembaraçada na fala e nos movimentos, chegou com brilho próprio ao topo do poder municipal. Ao que parece, porém, meteu as mãos pelos pés, dizem que as meteu também em outros lugares, onde não deviam ter entrado. A verdade é que, pelo que fez ou não fez, caiu nas malhas da Justiça e na boca do mundo.
O caso ?Fátima Felgueiras? tem sido prato cheio para as conversas do escandalizado zé povinho. Conversas, aliás, generosamente alimentadas pelo incansável esforço jornalístico de aproveitamento dos ingredientes da história. Do Rio, tanto a falante Fátima quanto o seu não menos falante advogado têm tirado o melhor proveito dessa voracidade mediática.
2. Embuste moralista
Mas o jornalismo, mais especificamente o jornalismo da televisão oficial, caiu no exagero. A direção do jornalismo da RTP (Rádio Televisão Portuguesa) resolveu enviar ao Brasil a mais refulgente estrela da casa, a apresentadora Judite de Sousa, para, em uma hora de entrevista, dar voz, prestígio e palanque à famigerada senhora Felgueiras – e isso no mais conceituado programa da emissora, a ?Grande Entrevista?, habitualmente reservado aos notáveis da Nação.
Foi um Deus nos acuda. Com argumentos fornecidos pelo articulismo da mídia impressa (e sobre a força dos articulistas portugueses escreverei na próxima semana), o despropósito da cobertura oferecida pela RTP à fugitiva de Felgueiras tornou-se o grande assunto das conversas em cafés e praças portugueses.
A RTP viu-se colocada no banco dos réus. Até o governo, pela fala do ministro Morais Sarmento, responsável pelos ordenamentos na área da comunicação social, pediu explicações à administração da emissora oficial. A discussão se ampliou, porque a intervenção autoritária do governo tinha cheiro e jeito de pressão indevida sobre algo considerado sagrado: a autonomia do jornalismo da RTP.
Nos rescaldos da discussão, já na fase dos panos quentes, o mesmo Morais Sarmento soltou uma frase de efeito, dessas formuladas para serem manchete. Disse ele: ?Falta discutir o que é jornalismo público?.
A sentença ministerial foi mesmo manchete num dos jornais, mas não incomodou os portugueses. Me serviu, porém, de motivo para a decisão de escolher o assunto Fátima Felgueiras como tema da coluna, esta semana.
Ora, se existe a possibilidade de admitir e conceituar um jornalismo qualificado de ?público?, que seria o ?virtuoso?, teremos, então, que admitir e qualificar um jornalismo ?não público?, situado na esfera (?não virtuosa?) do ?privado?.
Eis aí um embuste moralista disfarçado sob rótulos de ?pensata intelectual?, que certa vez também inspirou a nossa TV Cultura, de São Paulo. Aconteceu isso quando, há talvez dois anos, com alarido mercadológico, a TV Cultura inventou uma certa ética particular para o seu ?jornalismo público?, como se houvesse uma ética ?maior?, a do jornalismo da TV pública, e uma ética ?menor?, para o jornalismo da televisão ?não pública?.
3. Um só jornalismo
Apesar da materialidade de suas técnicas e estruturas, o jornalismo é objeto abstrato, de difícil definição, dadas as complexidades dos processos sócio-culturais a que serve e nos quais está inserido. Como espaço e linguagem de conflitos públicos, dele se exige a eficácia da confiabilidade e da clareza, para o sucesso dos confrontos discursivos, socializados pelos mecanismos da notícia. Um desses mecanismos é o da difusão, sobre o qual já aqui escrevi, semanas atrás. Outro mecanismo, entre outros, o da construção e preservação da veracidade, garantida por um conjunto de procedimentos técnicos e fundamentos ético-deontológicos, que constituem aquilo a que podemos chamar de cultura jornalística.
Ao fim e ao cabo, narrar (para o relato) e argumentar (para o comentário) são as artes do ofício de ser jornalista. Em ambos os casos, as razões do fazer jornalístico são impostas pela procedência irrecusável das expectativas do cidadão destinatário da informação e da análise.
Por causa dessas expectativas sociais, sustentadas em direitos, tradições e pressupostos universalmente estabelecidos, o jornalismo tem de ser veraz, honesto, independente, crítico, rigoroso e claro, vinculado a razões éticas – qualquer que seja a natureza (pública ou privada) do meio de comunicação que o difunde.
Na sua totalidade, e não apenas em parcelas supostamente ?virtuosas?, o jornalismo tem, por natureza e vocação, o predicado de ser público. Porque públicas são as suas razões de ser.
NOTA DE RODAPÉ – Em decisão unânime, tomada na sessão plenária de 2 de julho, em Brasília, o Supremo Tribunal Federal acolheu parecer do ministro Celso de Mello, recusando às autoridades portuguesas a extradição de Fátima Felgueiras. Na mesma decisão, porém, o STF admite que a senhora Felgueiras poderá ser processada no Brasil pelos crimes de que vier a ser acusada em Portugal."