Saturday, 28 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Deonísio da Silva

GALINHADA NAS ARCADAS

"O estudante, a galinha, a prefeita", copyright Jornal do Brasil, 17/08/03

"O Largo São Francisco, em São Paulo, estava em festa. Era 11 de agosto, segunda-feira, e corriam bem as comemorações do centenário do Centro Acadêmico XI de Agôsto, que prefere manter na denominação o algarismo romano e o acento no nome do oitavo mês que, aliás, já foi o sexto, como se vê pelo que lhe segue, setembro, do latim september. Na antiga Roma, no século VIII a.C., por determinação de Rômulo, o ano começava em março e tinha apenas dez meses. Assim, antes de homenagear o imperador Caio Júlio César Otaviano Augusto, filho adotivo de Júlio César, agosto era denominado sextilis.

A prefeita Marta, sempre citada com o sobrenome do ex-marido, o senador Eduardo Suplicy, desacompanhada também do segundo nome, Teresa, e do sobrenome original, Matarazzo, prestigiava as celebrações. Além dos cem anos do diretório dos alunos, eram festejados também os 176 anos da Faculdade de Direito, a mais antiga do Brasil. Na penúltima gestão, concluída ano passado, coube a Ivette Senise Ferreira ser a primeira mulher a ocupar a direção.

O famoso Largo tem muitas histórias, algumas delas solenes, outras trágicas e algumas apenas curiosas. Ali estudaram muitos autores brasileiros que até hoje são exemplos da arte e da técnica de escrever. E que souberam fazer da palavra uma eficiente ferramenta de trabalho e de protesto. O caso mais célebre talvez seja o de Castro Alves, que fez da abolição o tema solar de muitos poemas e apregoou o valor da escrita: ?Oh! Bendito o que semeia/ livros… livros à mão-cheia…/ e manda o povo pensar!?

Outros deram contribuição mais prosaica. Casemiro Pinto Neto, natural de Bauru, então aluno da Faculdade famosa, criou o sanduíche que leva o nome de sua cidade natal. O lanche espalhou-se pelo Brasil. A receita original, que foi adaptada às diversas regiões, era a seguinte: pão francês, rosbife frio e malpassado, tomate, pepino, queijo e orégano. E bauru, designando comida rápida, foi parar nos dicionários. E hoje é alternativa nos cardápios onde impera o inglês fast food.

O incidente de segunda-feira passada não fez jus à reputação da Faculdade. Um aluno de apenas 18 anos notabilizou-se por ato que dá bem a idéia de certa grosseria que vem tomando conta de alguns jovens, para os quais protestar é fazer qualquer coisa. No caso, atirou uma galinha preta no palco onde estavam as autoridades. O alvo era a prefeita, a essa altura já vaiada com o neologismo Martaxa, que tinha o fim de combinar Marta com taxa, referência às novas taxas municipais criadas em sua gestão.

Por eflúvios de agosto, nada é tão ruim que não possa piorar. E coube justamente a uma figura muito querida de docentes e alunos, o ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos, respeitado advogado, que se notabilizou na defesa do Estado de Direito durante a ditadura militar, lavrar emenda pior do que o soneto. É verdade que ele teve a dignidade e a humildade de reconhecer que a declaração tinha sido infeliz. Mas já era tarde. ?Era como se um homem falasse e jogassem um veado?, disse o ministro, reconhecendo que o protesto passara dos limites. E que para ofender o homem, o bicho é outro, o que também é reprovável.

O ministro percebeu que a ave escolhida tinha o propósito de insulto adicional. Para ofender a mulher, são invocados bichos domésticos. Além da galinha, aparecem no rol a cadela, a vaca e a perua, a primeira destinada também a homens promíscuos. Tais injúrias são sintomas de neurose típica da sociedade patriarcal, que ainda quer confinar a mulher aos limites domésticos.

O fato é que essas palavras são de largo uso na Língua Viva."

 

"Fama de galinha", copyright Folha de S. Paulo, 17/08/03

"Ao atirar uma galinha contra a prefeita Marta Suplicy, na segunda-feira, durante as comemorações do centenário do Centro Acadêmico XI de Agosto, o estudante Ernest Hellmuth transformou-se na celebridade da semana. Virou estrela da mídia e um político chegou a lançá-lo candidato a vereador.

Na carona da notoriedade fugaz do filho, o engenheiro Harold Hellmuth declarou, satisfeito, à imprensa: ?Demos boas gargalhadas. Ele é precoce até em obter seus 15 minutos de fama?.

Mas o que faria Harold se, ao entrar na cozinha de sua casa, a sua brincalhona empregada lhe atirasse um galinha? Certamente não daria risadas -tocaria a empregada para a rua e diria que ela enlouqueceu. Por que ele não só tolera mas incentiva o filho a agir com uma irreverência que transborda para o desrespeito?

Quem convive com educadores que trabalham com jovens de classe média sabe que a brincadeira de Hellmuth não é um episódio isolado. A irreverência que redunda em deboche é rotina em sala de aula e faz do professor uma vítima -vítima também dos pais, que não conseguem ou não querem lidar com os limites de seus filhos.

A dificuldade de perceber e respeitar o outro acaba de ser medida por uma pesquisa da Ipsos Brasil em nove capitais brasileiras com estudantes de escolas privadas. O resultado é estarrecedor. Entre os entrevistados, 59% disseram que ?fazem o que querem e não se preocupam com os outros?.

É um enfrentamento das regras de convivência. Isso explica por que, segundo a pesquisa, 45% dos alunos das escolas privadas dizem que, ?em alguns momentos, é aceitável desobedecer à lei?.

Apenas num ambiente de percepção da impunidade tantos jovens desenvolveriam tamanho desdém: 82% deles vêem falhas na Justiça e acreditam que a impunidade seja a regra, o que, no seu entender, explica por que a criminalidade chegou tão longe.

A violência fez os muros subirem e as grades serem implantadas, distanciando ainda mais o outro. O espaço de convivência público é o espaço da ameaça nos grandes centros.

Nas reuniões reservadas das escolas, professores e psicólogos falam frequentemente da sensação de impotência diante da atitude de alunos. Percebem uma desmotivação crônica, gerada pela falta de valores e de objetivos, assustam-se com o consumo de drogas e de álcool nas festas, constatam a dificuldade crescente, para os jovens, de entrada no mercado de trabalho, cada vez mais exigente.

Muitas vezes, a escola é mais um dos cenários de marginalidade, incapaz de se adaptar ao novo ritmo de conhecimento. A era da informação, com sua multiplicidade de estímulos, está gerando jovens hiperativos, com dificuldade de selecionar informações relevantes, mergulhados na avalanche diária de dados: assistem à TV, submetida ao ritmo de metralhadora giratória do controle remoto, ao mesmo tempo em que falam ao telefone, ouvem o rádio, plugam-se na internet e ainda tentam fazer a lição de casa.

Nesse ambiente interativo, virtual e tridimensional, adaptar-se à linearidade do livro é um suplício. Como é um suplício a aula de apenas uma dimensão, na qual o professor, que sabe tudo, fala para o aluno, que não sabe nada.

As escolas que têm conseguido lidar melhor com esse desdém coletivo são aquelas que, além de abrir canais de diálogo com os pais e os alunos, aproximam o cotidiano da sala de aula e, além disso, estabelecem laços com a comunidade, fazendo da rua uma extensão do aprendizado.

É extraordinária a transformação dos estudantes quando participam de trabalhos comunitários e vivenciam o valor do conhecimento. Daí que esse tipo de atividade deveria ter, na grade curricular, seu status equiparado ao de matérias como ciências, português ou matemática, pois ensina a perceber o outro e a saber conviver com ele um requisito indispensável de civilidade.

Não distinguir a ofensa da irreverência é algo que se deve à falta de percepção do outro, sintoma de um culto ao individualismo, o que hoje se mistura ao narcisismo dos tais 15 minutos de fama, que fazem um jovem e uma galinha subitamente virarem estrelas.

A pouca consistência dessa fama faz lembrar a inconstância atribuída a homens e mulheres que não param de ?ciscar? com qualquer um e em qualquer lugar -e tornaram galinha um adjetivo próprio para designar aqueles que agem com superficialidade.

A fama de galinha é o que melhor expressa a ansiedade pela notoriedade rápida e a qualquer custo."

 

"Palavras, palavras", copyright Folha de S. Paulo, 14/08/03

"Bastante glosado na imprensa, o episódio da galinha preta mostra como há um automatismo perverso no pensamento politicamente correto. Ao condenar a estripulia de universitários que atiraram a ave na direção da prefeita Marta Suplicy, o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, disse que ?seria como se um homem estivesse falando e jogassem um veado?. Caso memorável de emenda pior que o soneto, como veio a reconhecer o próprio ministro, tido por pessoa esclarecida e elegante. Traído por uma associação de idéias, seu lapso foi acorrer com uma analogia sexual, ausente, parece, na motivação dos estudantes e que só veio à luz do dia, de toda maneira, graças a sua intervenção infeliz. A doutrina politicamente correta parte do pressuposto de que a discriminação é reforçada e reproduzida pela linguagem. Sua conclusão é a de que a linguagem precisa, logo, ser erradicada de todo preconceito. Levada às últimas consequências, como em certos ambientes norte-americanos, essa tendência funciona como uma polícia do pensamento. Mas os conteúdos mentais não podem ser erradicados. Freud falava em retorno do reprimido, efeito bumerangue em que o recalcado ressurge na forma de sonho, mas também como ato falho ou piada. Não por acaso, a associação de idéias do ministro trouxe um contrabando de caráter sexual, o que faria o bruxo vienense sorrir de felicidade. Ao estigmatizar termos e expressões por serem preconceituosos, o pensamento correto os combate ali onde eles são invencíveis, nas profundezas da mente. Proibidos, acabam por exercer sedução ainda maior. É somente quando a prática social deixa de ser preconceituosa que o deslize de linguagem se torna anódino, um tigre de papel.

Voltou à moda um discurso de esquerda segundo o qual a democracia é o regime em que o conflito social se explicita. Até aí se trata de um truísmo do qual nem o rei Luís 16 teria discordado, até por tê-lo provado na própria pele. A consequência, porém, é que a democracia não se contém nos limites da lei, mas deve ultrapassá-la.

Ou seja, a democracia é o regime em que os grupos sociais forçam os limites da lei e criam, assim, novos direitos. Segundo uma versão do mesmo raciocínio, exposto com toda candidez, os grupos oprimidos não só podem como devem violar a lei na defesa de seus interesses, algo que é, porém, vedado aos demais grupos.

Fica implícito que a esquerda é a intérprete mais adequada do interesse da maioria oprimida e que esse interesse arrasta a sociedade consigo porque ele é portador do futuro histórico. Essa tese pode ser defensável e até pertinente no debate intelectual, mas, ao ser colocada na discussão política, ela passa a gerar efeitos práticos e nada intelectuais.

A direita também tem sua teoria. Para ela, sempre que a esquerda atinge o poder, decai a inovação tecnológica, socializa-se a miséria e se instala uma ditadura. Conforme a esquerda se julga autorizada a estimular a violação da lei, o mesmo pode acontecer com a direita. Quantas vezes já se viu esse filme? Quantas vezes já se chorou esse leite derramado?"