LITERATURA & IMPRENSA
"Liberdade é condição primordial", copyright O Estado de S. Paulo, 30/12/01
"Em 2002 completarei 28 anos de vida literária e bodas de prata com meu editor, Pedro Paulo de Sena Madureira. Tenho dito e repetido ao longo destes anos todos que, para mim, o escritor não escreve o que houve, nem o que ouve. Escreve o que sente, com muita emoção.
Meu romance recente, Os Guerreiros do Campo, publicado em 2000, ambienta-se entre os sem-terra, mas sua narrativa começa às portas do céu, onde São Pedro, porteiro, com estabilidade no emprego, encarrega-se de cadastrar mortos brasileiros que acabaram de chegar. Num romance anterior, A Cidade dos Padres, que começa no século 13, em Portugal, e vem até o governo João Figueiredo, no Brasil da década de 80, apresentei um herói boquirroto, o marquês de Pombal, às voltas com diálogos insólitos na eternidade, trovando e polemizando com jesuítas como os padres Antônio Vieira e Ignácio de Loyola, uma bruxa lésbica afogada pela Inquisição em Veneza. Em Avante, Soldados: Para Trás, história de amor entre inimigos, ocorrida durante o trágico e polêmico episódio da Guerra do Paraguai, a Retirada da Laguna, inventei personagens fictícios, entre os quais a líder de um suposto batalhão feminino de Solano López, chamada Mercedes, que ama e é amada desesperadamente pelo coronel Carlos de Morais Camisão, este um personagem real daqueles eventos, cujo corpo está enterrado no Rio, depois de levado do cemitério provisório dos heróis da Retirada, em territórios hoje localizados em Mato Grosso do Sul.
Situo esses exemplos para melhor me explicar aos leitores. Não me considero modelo de nada, não me considero filiado a corrente nenhuma e acho nossa vida literária rica e complexa, mas carente de mínimas organizações. É verdade que por destino o escritor deve ser um solitário enquanto escreve.
Não há outro caminho a não ser o da solidão, se o escritor, seja poeta ou ficcionista, quer desempenhar bem o seu ofício. Mas poderíamos, por exemplo, à semelhança de outros ofícios, negociar um contrato de direitos e deveres mínimos, estabelecer alguns outros tipos de congregação para além das academias. Elas, as academias, têm suas funções, e somente com má vontade é que deixaremos de reconhecer que estão mudando para melhor e que já espelham com mais vigor as sutis complexidades de nossa vida literária. Basta ver a presença da mulher nas Academias, a ABL teve na presidência a escritora Nélida Piñon não faz muito tempo e lá estão escritoras como Rachel de Queiroz e Lygia Fagundes Telles que entraram, não por serem mulheres, mas porque são autoras de obras relevantes para nossas letras.
Tenho colegas escritores que abominam academias e outros que as cultuam e veneram, esperando serem convidados a entrar. Entre aqueles que as recusam há alguns que gostariam, à semelhança de Sartre e o Prêmio Nobel, serem convidados para poderem delas abdicar. Os escritores brasileiros, de um modo geral, não têm teoria alguma. Vivem no esplendor de sua intuição. Quanto a mim, talvez pelo duplo ofício de escritor e professor de letras, procuro entendê-los para além de sua intuição, de suas queixas e de suas alegrias, em geral, essas últimas, motivadas por prêmios, reconhecimentos e resenhas favoráveis. Todos nós dependemos muito ainda do comentário. A razão principal é que as reservas analfabéticas tendem a aumentar e os poucos que lêem, têm de ler tudo o que é publicado. Por isso, nossas tiragens, com raras exceções, estão muito aquém de suas possibilidades.
A imprensa cumpre, então, um papel fundamental. A mortalidade infantil na literatura brasileira está diretamente relacionada ao espelho que os livros obtêm ou não na imprensa. Em poucos países é tão crucial o comentário na imprensa. No Brasil, a situação se agrava um pouco mais porque escolas e universidades vivem esquecidas dos autores vivos. Parecem exigir o atestado de óbito do autor como condição indispensável à entrada. Nossos reconhecimentos são quase sempre póstumos. Ou ainda não ocorreram. Não é o caso de citá-los aqui, dada a brevidade do espaço, mas autores, mortos e vivos, talentosos, que escreveram obras pertinentes e vigorosas, continuam esquecidos. Ou são lembrados apenas em efemérides ou por motivos extraliterários.
Passados esses anos, continuo convicto de que a questão da liberdade é mais importante do que a do direito autoral, a da aferição da qualidade de nossos livros deve preceder essa conhecida obsessão pelo comentário e por autoridades que não foram constituídas por nenhum poder a não ser pelo acaso que pôs alguns indivíduos, às vezes muito arrogantes, julgando o que não podem julgar, não porque os detestemos quando falam mal de nós, ou os amemos quando nos louvam, mas porque não foram preparados, nem se prepararam para o que fazem, apesar de as empresas em que trabalham remunerarem melhor as insanidades que dizem do que os eventuais direitos autorais recebidos pelos autores que espinafraram. O direito da crítica é sagrado e indispensável, mas deve ser exercido à luz de competências específicas. Até nesse terreno, porém, sou um otimista, porque vários jornalistas se encarregaram, por si mesmos, de fazer mestrado, doutorado, especializações, sinceramente interessados em aprimorar seus instrumentos de análise e interpretação.
Comecei minha vida de escritor condenado a dois de prisão no governo Geisel por ter escrito um conto considerado ofensivo aos bons costumes, à moral e aos militares. A esse tempo, o jornal que ora publica esse depoimento estava obrigado a substituir várias de suas matérias por receitas culinárias e versos de Camões na primeira página. Hoje o Presidente da República é um dos autores que o ministro da Justiça daquele antigo governo proibiu. Penso que não é nenhum exagero reconhecer que, salvo todas as diferenças inerentes a uma sociedade democrática, é preciso discernir que este é um grande indicador dos tempos que ora vivemos. Nem o jornal precisa publicar receitas culinárias e trechos de Os Lusíadas para preencher os buracos provocados pelos censores, nem este escritor precisa comparecer aos tribunais periodicamente para ?comprovar que não tornou a delinqüir?.
Em resumo, houve inegáveis mudanças para melhor. (Deonísio da Silva é escritor e professor da Universidade Federal de São Carlos, doutor em Letras pela USP e tem mais de 20 livros publicados, entre os quais ?Avante, Soldados: Para Trás? que em júri presidido por José Saramago recebeu o Prêmio Internacional Casa de las Américas)"
POLÊMICAS
"Segunda visão", copyright Folha de S. Paulo, 3/01/02
"Os jornalistas -como os seus protegidos, os economistas que não acertam uma e continuam tratados como oráculos- não se entenderão jamais. O que poderia ser bom, para gerar o sempre necessário debate, mas discordância entre jornalistas brasileiros só produz agressões, frequentemente levianas.
Deu-se há tempos, porém, uma exceção. Elio Gaspari suspeitou que uma referência nesta coluna fosse dirigida a artigo seu e, como convinha a um ser adulto, ao nos encontrarmos tocou no assunto para nos esclarecermos. E foi o que aconteceu: esclarecemo-nos. Hoje, aquele episódio me leva à certeza de que posso, por minha vez, fazer uma exceção e expor, sem suscitar agressões imbecis como ?brigada carlista? e outras, ponto de vista frontal e explicitamente contrário ao de Elio Gaspari, publicado ontem na Folha.
Para situar as visões discordantes, a de Elio Gaspari, em resumo, consiste em que o Brasil ficou isento de uma crise à la Argentina pelo mérito, que ?se deve pagar? a Fernando Henrique e Pedro Malan, ?ao primeiro, por não ter dolarizado a economia?, como lhe era sugerido, e ao segundo por ?ter-se recusado a desempenhar o papel de salvador da pátria?, que ?Cavallo aceitou?.
À parte o fato de ser a situação brasileira de imunidade verdadeira ou nem tanto, a meu ver o mérito da relativa tranquilidade no Brasil não recai sobre pessoas identificáveis. É muito difuso.
Não houve dolarização, propriamente, mas durante todo o primeiro mandato de Fernando Henrique o Brasil não foi mantido à distância da dolarização senão por uns poucos décimos de centavo, que iam um pouco para lá ou para cá. A consequência dessa política veio em cadeia. Com o real supervalorizado, as exportações despencaram, por falta de preço conveniente à competição no mercado internacional (só agora estão melhorando, mas até hoje não puderam se recuperar).
Sem os dólares decorrentes de exportações, mas deles necessitado para as importações crescentes e para as obrigações do brutal acordo da dívida externa, o governo passou a tomar bilhões atrás de bilhões no exterior, dezenas de bilhões sobre dezenas de bilhões. No exterior e no interior. O endividamento comprometeu o futuro e os seus juros comprometem também o presente.
Desde o início do governo, a política cambial suscitou críticas. Com o passar dos meses e a evidência dos seus efeitos ruinosos, a par das críticas emergiram pressões empresariais pela flexibilização da moeda, para sustar a queda das exportações. Gustavo Franco defendeu sozinho, com jeito garnisé, o falso valor do real, mas tal política era, obviamente, de quem estava acima dele, Fernando Henrique e Pedro Malan. Tanto que, iniciado o segundo mandato, os dois resolveram ceder às críticas e aos protestos. Liberaram Gustavo Franco para voltar ao anonimato e o real para cair na real.
Um adendo, que a oportunidade é boa. Por que a flexibilização do real teve que esperar até o começo do segundo mandato de Fernando Henrique, se mais de um ano antes estava solidamente comprovada a necessidade de adotá-la? Porque havia a certeza de que o dólar subiria, e convinha a Fernando Henrique evitar a possibilidade de repercussão, no eleitorado, dessa desvalorização do real.
Aos críticos do real falsificado e aos empresários que pressionaram contra a falsificação deve-se, creio eu, que no Brasil tenha acabado em tempo a mesma inflexibilidade da moeda que destroçou a Argentina."