JORNALISMO & HISTÓRIA
Victor Gentilli
Eles mudaram a imprensa ? depoimentos ao CPDOC, de Alzira Alves de Abreu, Fernando Lattman-Weltman e Dora Rocha (organizadores), 400 pp., Editora da Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 2003; URL <www.editora.fgv.br>; preço R$ 44
Os depoimentos de Evandro Carlos de Andrade, Alberto Dines, Mino Carta, Roberto Muller Filho, Augusto Nunes e Otavio Frias Filho certamente oferecem novas abordagens e novos elementos para uma melhor compreensão da história recente da imprensa brasileira.
O título Eles mudaram a imprensa é feliz, embora possa levar à compreensão de que outros não o fizeram ou de que a mudança na imprensa é uma só. Os depoimentos deixam claro que, no período a que se circunscrevem ? basicamente a partir dos anos 1950 ? ocorreram mudanças da imprensa em direções não necessariamente as mesmas e nem mesmo em períodos de tempo iguais.
Há, em certa medida, uma linha condutora a partir da primeira reforma do Jornal do Brasil, comandada por Odylo Costa, filho (no livro, com várias outras grafias) e consolidada durante os quase 12 anos em que Alberto Dines comandou o jornal. A reforma do Jornal do Brasil pode ser significativa do mesmo processo que começou com a reforma de O Estado de S.Paulo, comandada por Cláudio Abramo e a da Folha de S. Paulo, cujo momento de concentração é claramente delineado e concentrado entre 1975 e 1977. O processo não chegou a completar três anos, mas ficou condensado neste período tudo o que havia de jornalisticamente moderno e politicamente contemporâneo aos tempos que se viviam no Brasil.
Não à toa, foram nestes mesmos três anos que Mino Carta foi demitido da Veja, também neste mesmos três anos a imprensa alternativa viveu seu esplendor. Movimento, aliás, surge em 1975, e Opinião encerra suas atividades em 1977. Como os depoentes não trabalharam na imprensa alternativa, praticamente dela não se fala no livro, embora o termo tenha sido cunhado por Alberto Dines, em seu Jornal dos Jornais.
Golbery nos bastidores
Assim, o período relatado por Otavio Frias Filho em seu depoimento trata de outro momento e, a rigor, refere-se a uma contra-reforma àquela comandada por Cláudio Abramo na Folha de S. Paulo na segunda metade da década de 1970. Longe desta resenha a intenção de diminuir a importância de Augusto Nunes na imprensa brasileira. Mas seu trabalho em O Estado de S.Paulo é posterior ao Frias Filho na Folha e caudatário deste. Sua significação tem mais relação com os fenômenos idiossincráticos que marcaram o domínio da família Mesquita em O Estado de S. Paulo do que propriamente numa mudança da imprensa. Desse ponto de vista, Cláudio Abramo de fato promoveu uma reforma no Estado e enfrentou as idiossincrasias dos Mesquita com mais sucesso e de forma mais blasé. E isso se operou nos anos 1950, auge da Guerra Fria, Abramo trotsquista e o Estado porta-voz da oligarquia paulista e do ideário udenista. Nesse aspecto, Nunes enfrentou menos dificuldades.
Retomando o período da distensão de Geisel, parcelas significativas da imprensa pareciam modernas, mas estavam a serviço do "bruxo" Golbery do Couto e Silva. O ingresso de Elio Gaspari no Jornal do Brasil, em 1973, substituindo Alberto Dines, que fora demitido, não deixa de configurar um momento marcante desta presença, em que um projeto de poder apropria-se de um projeto jornalístico. A criação da IstoÉ, em especial seu período já semanal, e a curta experiência do Jornal da República, que não excede quatro meses, simbolizam bem este momento.
O papel desempenhado pelo chefe da Casa Civil do general Ernesto Geisel passa "batido" no livro, como se não fosse definitivo e definidor. Ainda sobre o período, as sucessões de crises em comandos de jornais não são vistas como um fenômeno inter-relacionado. Não foi mera a coincidência que produziu a saída de Alberto Dines do Jornal do Brasil em 1973, de Mino Carta da Veja, em 1975, e de Cláudio Abramo da Folha de S. Paulo, em setembro de 1977.
Claro, a obra não se pretende esclarecedora destes episódios. Oferece relatos de história oral significativos para sua compreensão e ponto. Missão cumprida. Mas é evidente pela leitura que havia uma pauta comum para todos os entrevistados. Uma pena que essa pauta comum não permitisse, por exemplo, um mergulho mais fundo no episódio da greve dos jornalistas de São Paulo, em 1979. Roberto Müller Filho e Alberto Dines referem-se à greve e oferecem novos elementos para sua compreensão. Os demais não foram perguntados sobre o assunto, embora certamente tivessem o que dizer. Como todos tinham o que dizer da presença de Golbery nos bastidores da imprensa nos anos da chamada distensão.
Leitura envolvente
Há pequenos equívocos que, infelizmente, não se limitam à grafia de nomes, como o já citado Odylo Costa, filho. Evandro Carlos de Andrade, ao falar dos comunistas abrigados no jornal de Roberto Marinho (pág. 35), induz o leitor a erro ao referir-se a Franklin Martins. Sua fala parece referir-se aos anos de chumbo, e é neste período que o seqüestrador do embaixador americano Charles Burke Elbrick usava uma espessa barba. Mas, ao que consta, inclusive em sua página na internet, Martins só foi trabalhar em O Globo alguns anos depois da anistia, quando nem mais era militante do MR-8.
A entrevista com Alberto Dines omite um ponto fundamental na história das mudanças da imprensa, que foi a produção, a sangue quente, do livro Os idos de março e a queda em abril. Trata-se de uma obra que inaugura no Brasil uma experiência de jornalismo como efetivamente história do presente, que apenas algumas poucas tentativas mais tarde reproduziriam, jamais com a mesma densidade. Mas a ausência de qualquer referência ao livro, até mesmo nas perguntas, permite supor certa desatenção incompatível com a seriedade do trabalho desenvolvido pelo CPDOC (Centro de Pesquisa e Documentação) da FGV (Fundação Getúlio Vargas), em particular por Alzira Alves de Abreu e Fernando Lattman-Weltman.
Não apenas na sua dimensão (é o único que ocupa mais de 100 páginas), o depoimento de Dines é o mais rico e informativo. No caso, além de conduzir uma reforma sem paralelo num jornal, ele comandou o Jornal do Brasil numa série de momentos de crise, mas deles quase não se fala. Não há um olhar mais focado nos momentos que antecedem e imediatamente sucedem março de 1964, aliás, magnificamente relatados no já referido Os idos de março e a queda de abril.
O mesmo ocorre no fim de 1968, com a culminância do AI-5 e o golpe dentro do golpe. A ênfase nas questões pessoais é importante, e permitiu obter informações preciosíssimas que certamente se perderiam. Mas não pode justificar a falta de um olhar mais sintonizado com as circunstâncias e com a forma como os jornais (e os jornalistas que os comandavam) agiam diante delas.
A rigor, o livro não merece o tom crítico que marca esta resenha. Pelo contrário, oferece informações novas e fundamentais para a compreensão deste período recente da história do Brasil e do jornalismo. Aliás, a inclusão da imprensa como objeto de estudo do CPDOC da FGV já revela sua importância na história brasileira. Na verdade, a leitura é tão envolvente e trata de questões tão fundamentais que o leitor fica sempre com a impressão de que entrevistados e entrevistadores poderiam ter ido mais fundo.
As críticas, assim, são reveladoras dos méritos da obra.
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