Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Descartes a serviço do príncipe

DO RECURSO AO MÉTODO

Waldemar M. Reis (*)

Dando continuidade à recente abertura da galeria de citações francesas, iniciada com Napoleão (na inauguração da mostra de arte da China, em São Paulo), o Partido dos Trabalhadores nos brinda com cascata surpreendente de pensamento cartesiano.

Quem assistia ao Jornal Nacional da terça-feira (25/2/03) por certo jamais esquecerá do belo rosto de voz cândida recitando, num dos intervalos do programa, passagens inteiras de ? nada mais, nada menos ? O discurso do método. O argumento está no início da segunda parte e serve de introdução aos quatro preceitos de que decide Descartes valer-se para a reestruturação do seu conhecimento, uma vez admitir-se incerto quanto a todo o aprendido até aquela idade, a dos vinte e poucos anos. Ei-lo, na tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior: "É certo que não vemos em parte alguma lançarem-se por terra todas as casas da uma cidade, com o exclusivo propósito de refazê-las de outra maneira".

O texto do vídeo desenvolve em minúcia a metáfora (circunstanciando-a na casa, cujas paredes devem ser substituídas uma a uma até sua completa renovação), assim crendo justificar como aparente a imobilidade em que se encontra a gestão petista do governo federal e já pavimentando o caminho para expor o motivo de tal estagnação, o qual seria a condução de uma transição com o menor transtorno possível (signifique isso lá o que possa significar!) para o povo brasileiro.

Não fora a indicação do próprio Descartes, pouco adiante ("… persuadi-me de que verdadeiramente não seria razoável que um particular intentasse reformar um Estado, mudando-o em tudo desde os fundamentos e derrubando-o para reerguê-lo"), e porventura não atinaria a assessoria de imprensa do Planalto ? por certo mais versada em argumentos leninistas e trotskistas ? para o viés político da argumentação. Com tão boa conversa com certeza foram para a cama todos os eleitores acalentando uma vez mais o sonho socialista.

Poucos o perceberam, mesmo reconhecendo o timbre do francês na locução da moça, mas as implicações de tal escolha ? muito além de estabelecer os trilhos do bom senso ? descortinam uma nova face do que se convencionou chamar de maquiavelismo, agora tingido de dedução, signo máximo da irrefutabilidade racional. Dando continuidade à leitura do Método, ou melhor, voltando-se um pouco nela, depara-se, na primeira parte, com um dos primeiros de sucessivos exemplos da franca modéstia do autor quando afirma: "O meu desígnio não é ensinar aqui o método que cada qual deve seguir para bem conduzir sua razão, mas apenas mostrar de que maneira me esforcei por conduzir a minha", pois, "entre alguns exemplos que se podem imitar se encontrarão talvez também muitos outros que se terá razão de não seguir".

Ora, enquanto "prestação de contas" do seu primeiro mês e meio de genuína consolidação das políticas da gestão anterior (que continua ainda ocupando muitos cargos na atual), o governo não está a oferecer ao cidadão a escolha que Descartes dá ao seu leitor, mas tão-somente a informar, primeiro, a ocorrência de transtorno e, depois, sua intensidade, ou seja, a menor possível. Em cartada única a razão é colocada a serviço de dois dos ingredientes das receitas coletadas no anedotário histórico pelo secretário florentino: a prevalência da astúcia e a noção de justiça como o interesse do mais forte.

E, já bem advertido do preço dessa reengenharia do seu conhecimento, o filósofo trata de mostrar como os quatro preceitos ("jamais acolher alguma coisa como verdadeira que eu não conhecesse evidentemente como tal"; "dividir cada uma das dificuldades que eu examinasse em tantas parcelas quantas possíveis e quantas necessárias fossem para melhor resolvê-las"; "conduzir por ordem os meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir, pouco a pouco, como por degraus, até o conhecimento dos mais compostos"; e, por fim, "o de fazer em toda parte enumerações tão completas e revisões tão gerais, que eu tivesse a certeza de nada omitir") só se cumprem no contexto de uma moral rigorosa, estóica, quatro de cujas máximas são o objeto da terceira parte do seu discurso.

Reféns da (boa) fé

Assim, primeiro, manter-se-ia em consonância com as leis e costumes do seu país, bem como com as de sua religião, segundo, seria o mais firme e resoluto possível, mesmo seguindo opiniões duvidosas, se a tanto se tivesse decidido, terceiro, venceria a si próprio, modificando os próprios desejos, antes de lutar contra a fortuna ou contra a ordem do mundo, quarto, por fim, tendo passado em revista todas as ocupações que exercem os homens à procura da melhor, continuaria na prática em que se achava, a do culto da razão e do conhecimento da verdade.

O estoicismo, por sua vez, também não é doutrina que se imponha sobre a conduta do homem por ação de outro mais forte, mas tão-só pelo bom senso, capacitado a extrair empiricamente do mundo os seus princípios e somente eles. Desde os tempos do pórtico a doutrina estóica é assim transmitida, constituindo opção ao também bem fundado hedonismo epicurista, seu contemporâneo.

Em suma, trata-se de escolha. O grande feito de Descartes teria sido, portanto, o restabelecimento, mediante argumentação de roupagem mais moderna, do fundamento epistemológico da opção estóica e a demonstração de sua utilidade na contínua decifração dos fatos em ciência, cuja finalidade maior seria corroborar, de volta, a mesma ética estóica, empiricamente deduzida e negativa por princípio, ou seja, certa da nulidade humana (patente na terceira máxima na parte três do seu discurso) perante o universo. O grande problema, entretanto, foi ter o francês fornecido as bases da ciência positiva, o que vale dizer, em consonância com o adágio hindu, ter-se perdido no fascínio de Maya (a ilusão), ter sucumbido à crença de poder, com seu instrumento (organon, segundo Aristóteles e Bacon), modificar o mundo: prova-o o restante do método, quando envereda pela enumeração celerada de suas descobertas mecânicas e fisiológicas, entre outras, cegamente tropeçando, tamanha a precipitação, no que à investigação futura caberia o desmentido, contrariando também outra de suas resoluções, a de, "como um homem que caminha só e nas trevas… ir tão lentamente, e usar de tanta circunspecção em todas as coisas que, mesmo se avançasse muito pouco, evitaria pelo menos cair".

Como é evidente, os redatores de discursos do Partido dos Trabalhadores (e agora da Presidência da República), assentados que estão em seu epicurismo farto de percentuais cujos favores não descem a rampa jamais, intentam seduzir-nos à austeridade do método, talvez até advertidos de seu futuro colapso, quando por fim tomaremos ciência de toda a trama, muito embora demasiado tarde para mudá-la e sem termos claros detalhes cruciais de como funcionou, aos quais trarão nova luz gerações futuras a quem reste talvez lamentar.

Trata-se, na verdade, do mesmo jogo maquiavélico a que já se está habituado há tantos mandatos, desde a ditadura decadente: o do aperto dos cintos dos que não subiremos a rampa jamais. De diferente, o seu canto, de todo desprovido de imperativos categóricos, insuflando-nos melodias com apelo imediato ao que de melhor pensamos possuir e de cujas certezas somos reféns: a (boa) fé!

(*) Músico, regente, compositor e pianista, professor da ESPM-Rio