Roberto Belisário (*)
Tenho, neste espaço, tentado abordar os assuntos de forma a dar ao leitor melhores condições de usar sua capacidade crítica com relação às notícias científicas, centrando-me na crítica à imprensa. Porém, muitas vezes as informações vindas da própria comunidade científica contribuem para a desinformação, especialmente em temas controversos. No fim de julho, houve um exemplo raro de um tema controverso dentro de uma área tão bem estabelecida quanto a Teoria da Relatividade. Pretendo aqui chamar a atenção para a necessidade de o leitor estender sua postura crítica também à divulgação especializada, além da imprensa.
No dia 20 de julho apareceu na revista Nature um artigo relatando um experimento que produziu um pulso luminoso que se propagava cerca de 300 vezes mais rápido do que a velocidade da luz no vácuo (aproximadamente 300 mil km/s). O artigo é assinado por L. J. Wang, A. Kuzmich e A. Dogariu, pesquisadores do Instituto NEC, em Princeton, Estados Unidos.
A importância do trabalho vem do fato de que a Teoria da Relatividade Especial ou Restrita ? um dos pilares da Física Moderna ? estabelece a velocidade de 300 mil km/s como a velocidade-limite da Natureza. Isso significa que nenhuma relação causa-efeito pode envolver velocidades maiores do que essa, ou seja, velocidades superluminais (desde que o observador não esteja acelerado e que não haja campos gravitacionais apreciáveis ao redor). Bem entendido: a Relatividade só proíbe a transmissão de informações causais com velocidades superluminais. Sinais que não transmitem informação alguma podem viajar a qualquer velocidade. Diversos exemplos de sinais desse tipo podem ser encontrados no site <http://math.ucr.edu/home/baez/physics/FTL.html>.
A questão fundamental então é se podemos usar o artifício de Wang e seu grupo para transmitir algum tipo de informação causal. Se isso for possível, a Teoria da Relatividade estaria em xeque. A imprensa seguiu a opinião dos autores de que não há nenhuma violação da Relatividade nesses experimentos (vide, por exemplo, Folha de S.Paulo, 20/7/00 e O Estado de S.Paulo, 24/7/00).
Lacuna na divulgação especializada
A principal falha na divulgação pela mídia foram tentativas demasiadamente sucintas de explicar o conteúdo da Teoria da Relatividade, que resultaram em parágrafos de compreensão muito difícil ? notadamente na Folha de S.Paulo (20/7/00). Mas a característica singular do episódio esteve no papel dos pesquisadores. A surpresa do leitor diante da afirmação de que não há violação da Relatividade, apesar da presença ostensiva de uma velocidade superluminal, é deixada sem resposta pelos press releases e declarações à imprensa, e mesmo pelo artigo original na Nature.
É importante chamar a atenção para isso, porque os cientistas divulgadores também participam do processo de formação do texto da notícia, posto que representam o primeiro passo na trajetória da informação desde o laboratório até o jornal (usando uma imagem simplificada do processo). A sociedade costuma adotar uma postura bastante crítica com relação a algumas áreas específicas da ciência ? como a biotecnologia, a ecologia e a medicina ?, mas, em outros casos, ela dá uma confiança desmedida às informações vindas do cientista, como ocorre com a maior parte da Física (e ainda mais numa área indelevelmente associada ao mistificado gênio de Albert Einstein).
A questão "por que não há violação da teoria da relatividade" também não foi respondida em outros episódios semelhantes. O trabalho de Wang e seu grupo não foi o primeiro a apresentar velocidades superluminais. Pelo menos desde o início da década de 90 esse tipo de fenômeno vem sendo observado, com ou sem repercussão na mídia (ver, por exemplo, Folha de S. Paulo, 28/5/95 e a revista Galileu de dezembro de 1998). O experimento de 1995, que resultou na transmissão da 40? Sinfonia de Mozart a 4,7 vezes a velocidade da luz, provocou muita impressão no público. Verificou-se, entretanto, a mesma lacuna na informação.
A divulgação especializada não peca somente por omissões desse tipo. Tome-se como exemplo o artigo do físico brasileiro Marcelo Gleiser, na Folha de S.Paulo (6/8/00). Os trabalhos com velocidades superluminais que precederam o estudo de Wang foram controversos porque os pulsos luminosos se deformavam acentuadamente enquanto propagavam. A deformação era tal que o "topo" do pulso deslocava-se para a frente em relação ao pulso como um todo, e assim viajava com velocidade maior do que a da luz no vácuo. Há muitas dúvidas sobre se uma mera deformação no pulso pode ser usada para transmitir informação.
A grande novidade do trabalho do grupo de Princeton é que o pulso teve uma deformação desprezível ao longo do trajeto e o argumento acima não é mais válido. Porém, ao explicar como funcionava a experiência de Wang, Kuzmich e Dogariu, Gleiser ignorou a característica que distinguia o seu trabalho dos anteriores, descrevendo-o como se fosse do mesmo tipo. "A parte frontal do pulso foi deformada radicalmente", explicou, ao contrário do que realmente aconteceu.
Nota: O artigo de Wang, A. Kuzmich e A. Dogariu foi publicado na edição 406, 277 (2000) da revista Nature e pode ser encontrado no site da publicação em <http://www.nature.com>
(*) Físico, e-mail: rbdiniz@terra.com.br
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