Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Deslizes conceituais e referências controversas

ALMANAQUE ABRIL

Deonísio da Silva (*)

O Almanaque Abril 2002 (em dois volumes impressos, apresentando versão também em cedê) está em sua 28? edição. Tornou-se ao longo dessas quase três décadas uma fonte muito consultada, principalmente nos circuitos escolares. Sua diretora de redação, Márcia Tonello, diz na apresentação deste ano: "Com mais páginas, melhor papel e inteiramente colorido, o novo Almanaque Abril reúne todas as qualidades para atender os leitores mais exigentes".

Há controvérsias. É verdade que algumas correções indispensáveis vêm sendo feitas. Durante vários anos, o Almanaque informava que a costa oeste do Brasil era banhada pelo Oceano Atlântico. Mas se foi corrigido um erro grave numa disciplina essencial como a Geografia, em Literatura os problemas se acumulam ano após ano. O Almanaque opera com um conceito controverso para definir o que é Literatura, excluindo, por conseguinte, obras pertinentes de nossa historiografia literária e incluindo outras baseadas em conceitos ainda mais discutíveis.

Aos exemplos. A certidão de nascimento do Brasil, a Carta de Pero Vaz de Caminha, nossa primeira produção literária, é metida num espartilho teórico em que textos fundadores de nossas letras são espremidos e expressados assim: "Os primeiros registros de atividade literária escrita no Brasil não são obras literárias, e sim textos informativos". Neste caso, por que o padre Antônio Vieira aparece no século seguinte com os seus Sermões? Sermão é literatura, relato de viagem não é? Por quê? Se excluirmos homens de Letras como os viajantes, os padres, os cronistas (não foram nossos primeiros jornalistas?) e anônimos autores de relatórios destinados originalmente às vezes a um leitor apenas, mas que em seu conjunto expressaram a terra e o homem brasileiros, nossa Literatura sofrerá a amputação de conseqüências nefastas a seu percurso histórico.

Nos registros do século 18, o equívoco conceitual leva a um desacerto maior. Com efeito, a redação incorre em falta ainda mais grave do que a da Inquisição que, ao degolar e queimar em auto-de-fé o nosso Antônio José da Silva, o Judeu, em praça pública, quando o dramaturgo tinha apenas 34 anos, pelo menos reconheceu-lhe, paradoxalmente, a existência e os escritos. E o Almanaque não lhe concede nem a graça do mero registro. Como ignorar um autor de tal estatura intelectual e literária? Para não citar explicitamente o editor deste Observatório, se até Os Vínculos do Fogo são ignorados, o que dizer daquelas obras que sequer obtêm um mísero registro na imprensa? Antônio José da Silva tem, ao menos, a mesma importância dos outros citados. Aliás, pagou com a vida, perdida no esplendor de seu ofício, a ética que o guiou, tanto no ato de escrever como no de professar suas convicções.

Tal como viria a ocorrer no Brasil do governo Ernesto Geisel (1974-1978), críticos e professores universitários igualmente desinformados, muitos deles financiados com dinheiro público, não sabiam quem eram os autores relevantes e os livros que publicavam, mas as chamadas forças de segurança não os ignoravam e tinham conhecimento até mesmo dos endereços de editores e autores para amargurá-los com perseguições diversas, das quais a interdição dos textos que escreviam não era o pior flagelo que impunham aos perseguidos. E muitos jornalistas do período, diga-se de passagem, escreveram páginas de gloriosa resistência àqueles desmandos. Lembrai-vos de que a ditadura ousou prender a redação inteira de O Pasquim, Wladimir Herzog foi assassinado sob tortura e o escritor Renato Tapajós, depois de ter seu livro proibido, foi recolhido ao xadrez, em São Paulo, pelo então secretário de Segurança, o coronel Erasmo Dias. A sociedade brasileira, especialmente a paulista, pode estar insegura hoje em dia, e tem motivos para isso, mas quando o secretário de Segurança era esse senhor, as coisas era muito piores!

Nem cruzes nem tumbas

Nos registros do século 19, a coisa segue piorando. De nada adiantou o engenheiro e escritor Alfredo D? Escragnolle Taunnay, mais conhecido como Visconde de Taunnay, ter nos legado o relato de uma das maiores retiradas militares do mundo, a Retirada da Laguna, e outros livros como o romance Inocência. Esta lacuna, apenas esta, sem alusão a outras igualmente graves nos apontamentos do mesmo século, inviabiliza o verbete.

No século 20, o tropeço conceitual do que seja literatura prossegue com seu séquito de tombos e contradições. Se nossas primeiras manifestações literárias, ocorridas ainda no século 16, foram jogadas ao limbo por serem obras de viajantes esclarecidos e padres letrados, no século 20 o conceito dá uma cambalhota e inclui, acertadamente, aliás, mas incoerente com o conceito abraçado pelo Almanaque, o relato de outro engenheiro, também militar e para sorte da memória nacional também escritor, sobre outra expedição ? esta, sim, ao contrário de Retirada da Laguna, vergonhosa para nosso exército ?, o massacre de Canudos, eternizado em Os Sertões, de Euclides da Cunha.

Exclusões incompreensíveis e sobretudo inaceitáveis continuam no século 20. Excluem a ninguém menos do que quem inventou o monólogo interior antes de James Joyce, ignorado por ter a desvantagem de ter escrito em língua portuguesa, um dialeto da Galáxia Gutenberg. Mas quando vamos mudar isso, se somos nós mesmos a excluir os nossos grandes nomes? Refiro-me a Adelino Magalhães. Por ser de Niterói, talvez nossos pesquisadores, financiados pelo CNPq ou pelo que eu-não-sei-pra-quê pensem tratar-se de monólogo do interior, a quem ninguém dá a devida importância pelo único motivo de seu autor não estar ao alcance da capital paulista. Vários dos escritores citados pelo Almanaque na breve nota sobre o século 20 não têm a mesma importância desse excluído.

Não serão necessários mais exemplos dos equívocos, mas como escrevo para meus contemporâneos, antes do que para os pósteros, convido os navegadores deste Observatório a julgar por si mesmos, à luz do que vêm lendo, para avaliar as referências literárias do Almanaque Abril para a segunda metade do século 20, pois muitos autores são nossos contemporâneos. É justo que um escritor como Rubem Fonseca não apareça nos registros, ainda que sumários, referentes à década de 1960, em que surgiu com sua obra inventiva e vulcânica, aprofundada na década de 1970, quando a proibição de seu livro de contos Feliz Ano Novo tornou-se um caso-síntese das lutas que escritores e censores travaram, inclusive nos tribunais? E que o mesmo autor seja indexado na década de 1980 apenas como destaque "no gênero policial"? Pior é o caso de Benito Barreto, autor de um verdadeiro monumento literário que são os quatro volumes de Os Guaianãs, ao lado de Dyonélio Machado, autor de Os Ratos, que não merecem uma única linha, enquanto nomes sem a mesma importância deles infestam o Almanaque todos os anos.

Os equívocos não param. Pero Vaz de Caminha não fez literatura com a Carta, nem os padres letrados com suas poesias e obras de catequese, mas Fernando Morais fez com Chatô, merecendo o destaque negado a outros igualmente importantes. Nas referências do romance histórico, retomado na década de 1980, não há cruzes nem tumbas que memorem os nomes de autores como Ana Miranda, Márcio Souza, Luiz Antônio de Assis Brasil, Tabajara Ruas e muitos outros que se dedicaram ao gênero e obtiveram reconhecimentos importantes, no Brasil e no exterior. Nenhuma referência ao Prêmio Internacional Casa de las Américas, concedido por Cuba a escritores do mundo inteiro, inclusive a vários brasileiros, em comissões julgadoras respeitáveis, integradas por nomes como José Saramago e Rubem Fonseca. Bem, esta lacuna é das mais graves: nenhuma referência a este prêmio, em nenhum dos muitos anos em que foi atribuído a escritores como Moacyr Scliar e Valter Galvani. Este último, aliás, contemplado ano passado por Nau Capitânia, referência internacional para nossas letras. Menos para os redatores do Almanaque Abril 2002.

Fonte de pesquisa

Não sei se os navegadores sabem, mas Ignácio de Loyola Brandão, autor de várias dezenas de livros, vários deles traduzidos para diversas línguas, e nomes como Raimundo Carrero, (traduzido pela Avon Books ainda nos anos 80), Antônio Torres (condecorado na França), Salim Miguel (vencedor do prestigioso Prêmio Passo Fundo, o maior da Literatura brasileira, em 2001, com Nur na Escuridão, sobre a saga árabe de uma família), João Antônio (aliás, dublê de jornalista e escritor, tendo integrado a notável equipe da revista Realidade) e Betty Milan (que fez de Carlito Maia a figura solar de seu livro mais recente, Clarão) não são referência de nada para o Almanaque Abril.

Espero que mãos semelhantes em atenção e cuidados que os leitores fazem por merecer, que levaram a deslocar o Oceano Atlântico da costa oeste, onde ele estava equivocadamente posto, para a costa leste, onde ele nos banha desde tempos imemoriais, interfiram na próxima edição do Almanaque Abril e entreguem a seção Literatura a quem entenda do assunto. Talvez pudessem começar reconhecendo a esplêndida renovação por que passam nossas letras com nomes como Luís Rufatto, Marçal Aquino e Nelson Oliveira, sem exigir-lhes antes o atestado de óbito como condição para o reconhecimento, como requereram de Qorpo Santo, no século 19, e de João Antônio, no século 20.

De resto, não se conclua sem o reconhecimento de que o Almanaque Abril 2002, malgrado a irresponsabilidade editorial no item espécifico de Literatura ? devemos dar às coisas os nomes pelas quais são conhecidas ? é uma copiosa, complexa, rica e formidável fonte de pesquisa para os outros quesitos, sendo consultado principalmente nos circuitos escolares.

Que os responsáveis pelo Almanaque Abril 2003 possam corrigir a falha. Então, sim, poderemos dizer que ele "reúne todas as qualidades para atender os leitores mais exigentes". A Editora Abril, por suas muitas e inegáveis qualidades editoriais, não merece tamanho equívoco. E não merece principalmente pelo cuidado que vem dando a autores e livros desde a sua fundação.

(*) Escritor e professor da Universidade Federal de São Carlos, doutor em Letras pela USP; livros mais recentes: De Onde Vêm as Palavras, Orelhas de Aluguel, Os Guerreiros do Campo