GUERRA & HISTÓRIA
Ulisses Capozzoli (*)
É uma metáfora poderosa o fato de a primeira grande guerra do século 21 estar sendo travada no berço da História.
Apesar de o Iraque estar na mira da direita americana desde que os Estados Unidos perderam o interesse por Saddam Hussein, seu antigo aliado na contenção do Irã dos aiatolás, com a lua minguante ainda clara os disparos das baterias antiaéreas de Bagdá, que anunciaram o início da guerra, na quarta-feira (19/03), pareciam fogos de artifício.
A explosão dos mísseis da invasão, o som surdo e os incêndios que criaram, mostraram que era tudo real.
George W. Bush, o 43? presidente norte-americano, pediu a benção divina antes de ordenar que a mais destrutiva coalizão militar já organizada entrasse em ação calcinando alvos que, como em todas as guerras, são referência só para os primeiros disparos.
Astronautas em órbita podem enxergar os incêndios que se alastram por Bagdá, que um dia já foi a maior cidade do mundo, com 1 milhão de habitantes.
Entre as chamas avermelhadas deslocando-se a quase 30 mil quilômetros/hora e o brilho sem cintilação das estrelas espalhadas em todas as direções do céu, mesmo homens disciplinados, como astronautas, são sensíveis à emoção.
Até onde a sensibilidade da visão alcança, o corpo da Galáxia está repleto de estrelas. Em estrelas bem jovens, como a gigante Sírius, a mais brilhante do Cão Maior, provavelmente a vida ainda não teve tempo de se formar.
Estrelas amareladas como o nosso próprio Sol podem abrigar outras inteligências. Em astros envelhecidos e próximos da morte, caso de Aldebarã, o olho do Touro, na constelação conhecida por este nome, a vida já pode ter sido extinta.
Pouco se sabe sobre a história da vida no Universo. Na Terra ela se manifesta numa infinidade de espécies que a ciência ainda não teve tempo para contar.
Artes divinatórias
Espiando pela vigia de seu abrigo orbital, um astronauta pode ver, certamente com desolação, que a guerra é uma ameaça à continuidade da vida e, em sua solidão silenciosa, não encontrará, mesmo no fundo de sua consciência, nenhuma razão capaz de justificá-la.
De alguma maneira, a memória de todo o mundo está depositada na Mesopotâmia, a planície aluvial drenada pelos rios Tigre e Eufrates que agora conforma quase todo o território do Iraque.
Onde o presidente americano enxerga parte do "Eixo do Mal" a história nasceu há 5 mil anos, gravada em blocos de argila, na ausência de madeira e de rochas mais consistentes.
As gravações cuneiformes, inicialmente ligadas à contabilidade, deram origem à escrita, envolvendo registros sociais que materializaram a história.
Há 6 mil anos, camponeses que provavelmente desceram os Cáucasos ocuparam a planície dos rios que ajuntam suas águas no que agora é a cidade de Al-Qurnah, e dali seguem num único leito até o Golfo Pérsico, entre o Kuait e a Arabia Saudita a oeste e o Irã, a leste.
Nessa fase da pré-história, climatologias e historiadores asseguram que na Mesopotâmia as pastagens eram abundantes, a água de boa qualidade e os peixes fáceis de serem pegos.
Os historiadores avaliam que foram necessários séculos de trabalho na terra até que os descendentes desses primeiros ocupantes, enriquecidos pelo comércio com seus vizinhos, formassem os primeiros centros urbanos, as cidade-estado organizadas em torno de um palácio real ou de um templo religioso.
Nessas cidades que chegaram a reunir 15 mil pessoas, um príncipe governava e um sacerdote dialogava com os deuses e os espíritos, falando em nome da divindade.
As artes divinatórias e a astrologia, recursos para sondagem do futuro, têm suas raízes na Mesopotâmia, de acordo com o conteúdo decifrado de muitas das placas de argila.
Era de ouro
Nas cidades-estado, uma sociedade e administração hierarquizadas geriam as riquezas. Da necessidade de administrar corretamente esses bens é que nasceram os registros de contabilidade e, daí, a escrita e a História.
Como ocorre com outras culturas, também na Mesopotâmia são pouco conhecidas as formas como a organização social levou a um desenvolvimento artístico, acompanhado de expansão das artes, incluindo a literatura e a cosmologia, e muito desses conteúdos estão na base de valores culturais e religiosos atuais.
Abrahão pode ter vivido em Ur, próximo à margem direita do Eufrates, ao tempo de Hamurabi, o grande legislador que emprestou seu nome ao Código de Hamurabi. Os historiadores crêem que ele assimilou a cultura de antepassados dos judeus, muito antes de eles terem, de fato, formado um povo coeso em torno de seus valores.
Os mesopotâmicos podem ser a fonte para mitos bíblicos como o do Dilúvio e a Torre de Babel. Os historiadores avaliam que há 2.500 anos, quando Nabucodonosor, rei da Babilônia, deportou os judeus, o pensamento hebraico ficou profundamente marcado pelo que se pode considerar como uma cultura literária e científica dos babilônios, embora aqui a palavra "ciência", para abranger um conhecimento do mundo, tenha significado muito diferente do atual.
Os gregos, cujos conhecimentos estão na base da civilização ocidental, herdaram parte de seu legado da Mesopotâmia, e dali conheceram possivelmente as primeiras notações musicais, segundo um registro em cerâmica de 3.500 anos atrás.
A riqueza cultural do Iraque fez com que a Associação Americana para Pesquisa em Badgá levasse recentemente ao Pentágono e ao Departamento de Defesa informações sobre mais de 4 mil sítios arqueológicos, num esforço para preservar suas integridades, segundo apurou o repórter Reinaldo José Lopes, da Folha de S.Paulo (21/3, pág. A12).
Uma das dificuldades para isso, de acordo com o arqueólogo norte-americano McGuire Gibson, da Universidade de Chicago, é o elevado número desses sítios. O departamento de antiguidades do governo iraquiano tem um registro de 10 mil sítios, mas eles se referem apenas ao que já foi escavado até agora em 15% do território iraquiano com algum tipo de levantamento, segundo Gibson relatou ao repórter.
O temor do arqueólogo, além dos mísseis e bombas lançadas por aviões, é o empobrecimento ainda maior da população, provocado pela guerra. Como já ocorreu na Guerra do Golfo, conduzida por George Bush pai, em 1991, a expectativa é que o patrimônio arqueológico seja dilapidado. "Um colecionador de Nova York diz que esta é a era de ouro desse ramo", relatou Gibson.
Associação estreita
A Mesopotâmia, ao longo de séculos e milênios, assistiu a guerras e sucessões de impérios, cada um deles corroído pelo tempo como peças de mobiliário carcomidas por insetos. Os assírios chegaram em 689 a.C., após a invasão e destruição da Babilônia. Em 539 a.C. Ciro, rei dos persas, anexou a Mesopotâmia como a província mais rica de seu império que, em 331 a.C., passou para a Grécia sob o domínio de Alexandre Magno, o pupilo de Aristóteles.
Em 130 a.C. novas tribos persas derrotaram os gregos até que em 637 da era cristã os muçulmanos conquistassem a região e anos depois anunciassem Bagdá como centro cultural do Islã.
Hordas de mongóis se apoderaram de Bagdá e destruíram a cidade quase inteiramente, em 1258. Menos de 300 anos depois, em 1533, a cidade passa para o controle dos otomanos, que a mantiveram até a queda do império, em 1918.
Pela impotência das antigas armas em produzir grande destruição, Bagdá guardou memória do passado, mesmo sobre ruínas calcinadas pelo fogo de saqueadores. As poderosas bombas da guerra destes dias, disparadas por navios e submarinos, a centenas de quilômetros de distância, acenam com um horror maior: o da destruição completa, embora a terminologia militar fale de "precisão cirúrgica".
As edições de jornais da segunda-feira (24/3) trazem relatos independentes e imagens de bairros residenciais e da velha universidade de Al Mustansiriya, fundada no século 13, atingidos por bombas. Trazem ainda relatos de agentes da CIA sobre pressões do governo Bush para a produção de relatórios falseados, sob medida para os planos bélicos de Washington.
O fato mais recente é uma tentativa de fabricar a notícia de que o Iraque tentou comprar uma partida de urânio da Nigéria. As outras insinuações retomam o desejo de associar Saddam Hussein à al-Qaeda de Osama bin Laden.
Um curto retrospecto histórico, no entanto, mostra que quem esteve estreitamente associado tanto a Saddam Hussein quanto a bin Laden foram os próprios Estados Unidos. Na verdade, os EUA foram os verdadeiros criadores desses homens que agora repelem por terem escapado do controle como uma versão atualizada de Frankenstein.
Sem dormir
As bombas da coalizão no bairro discretamente decadente de Zukah, em Bagdá, estão num relato contundente de Robert Fisk, do jornal inglês The Independent, reproduzido pela Folha (24/3, pág. A15). Veterano de muitas guerras, Fisk produziu parte dos melhores trabalhos sobre a recente invasão do Afeganistão.
Tirando partido de técnicas do que já foi chamado de "novo jornalismo", estilo inaugurado por Norman Mailer e Truman Capote, além de Tom Wolff, entre outros, Fisk funde literatura e realidade em relatos perturbadores.
Do outro lado do mundo, médicos, em São Paulo, especulam que as queimaduras de uma criança cuja foto apareceu na edição de domingo da Folha de S. Paulo são mais antigas e não resultariam do brutal bombardeio de Bagdá nestes últimos dias.
Não faz qualquer diferença a esta altura dos acontecimentos.
Não muda a realidade nem minimiza um massacre engendrado pelos "falcões", a direita americana que inclui o secretário Rumsfeld e Wolfowitz, seu vice, além do próprio vice-presidente dos Estados Unidos, Dick Cheney ? gente que se acha, de alguma maneira, os privilegiados do mundo.
As forças invasoras do Iraque encontram mais resistência que o esperado. Jovens soldados norte-americanos, pouco mais que garotos, podem perder a vida no deserto em nome de uma operação que não representa mais do que interesses restritos dos pretensos donos do mundo.
Talvez, mais que nunca, seja interessante reler o que publicou Randolph Bourne (1886-1918), um anarquista e intelectual refinado que escreveu sobre literatura para várias publicações de destaque, nos Estados Unidos, antes de morrer muito jovem, aos 32 anos. Seus melhores escritos foram reunidos no volume Os Intelectuais e a Guerra.
Em A Guerra e a Saúde do Estado, Bourne escreve que a guerra "coloca em movimento, automaticamente, em toda a sociedade, aquelas forças irresistíveis que buscam a uniformidade e cooperam com o governo entusiasticamente na tarefa de coagir grupos minoritários e as pessoas isoladas sem identificação com o grupo, obrigando-as a obedecer".
"Os mecanismos de governo", considera, "não só estabelecem as punições mas aplicam-nas fazendo com que as minorias sejam silenciadas pela força ou passem por um processo sutil de persuasão que acabará por convencê-las de que foram convertidas."
Mas Bourne previne que esse esforço de convencimento pode ter efeitos contrários:
"…as minorias se tornam teimosas e algumas opiniões intelectuais são duras e satíricas. Mas de um modo geral, em tempos de guerra, a nação atinge uma uniformidade de sentimentos, uma hierarquia de valores que culmina com o ápice do ideal de Estado, o que só pode ser obtido pela guerra".
Outros valores da vida…
"…como a criação artística, o conhecimento, a razão e a beleza, a melhoria das condições de vida, são imediatamente sacrificados, quase sempre por unanimidade, e as classes mais altas que se constituíram, elas próprias, em agentes do Estado ocupam-se não apenas em sacrificar esses valores, mas em fazer com que os outros também sacrifiquem".
Como se vê, escrito em 1918, o texto de Bourne, na essência, não perdeu nada de sua atualidade.
As pessoas poderiam decidir-se, aqui, e em todo o mundo, a carregar braçadeiras negras e pendurar véus negros em suas janelas como forma de protestar contra uma guerra estúpida, como são todas as guerras, e assim rejeitar, durante as 24 horas do dia, uma violência inaceitável, que não nos deixa dormir.
E que ainda não sabemos para onde pode nos levar.